Passou mais de um mês desde que Abu Muhammad al-Jolani, o líder do grupo militante Hayat Tahrir al-Sham (HTS), se tornou o líder de facto da Síria. Desde então, deixou de usar o seu nome de guerra e passou a usar o seu nome verdadeiro, Ahmed al-Shara, e trocou o traje militar por um fato e gravata.
A mudança de governo gerou um otimismo cauteloso entre os sírios que têm vindo a celebrar a queda do regime de Bashar al-Assad. No entanto, a ascensão do Islão político através de um líder e de grupos armados com raízes ideológicas jihadistas tem preocupado muitas pessoas das comunidades drusa, alauíta, cristã e curda da Síria.
Estas preocupações têm fundamento. O novo governo anunciou mudanças no currículo escolar da Síria que alguns críticos descreveram como dando uma “orientação islâmica ao ensino”. E, mais recentemente, foram partilhados nas redes sociais vídeos da província de Idlib, em 2015, que mostram o novo ministro da Justiça da Síria, Shari al-Waisi, presente na execução de mulheres acusadas de “corrupção e prostituição”.
Enquanto al-Shara consolida a sua autoridade em Damasco, o conflito armado está a intensificar-se no norte da Síria, particularmente em Manbij e nos arredores de Kobane. Os combates são travados entre o Exército Nacional Sírio (ENS), apoiado pela Turquia, e vários grupos militantes curdos, incluindo as Forças Democráticas Sírias (FDS), apoiadas pelos EUA.
Há um mês, a 17 de dezembro, o comandante-geral das FDS, Mazloum Abdi, recorreu às redes sociais para declarar o “firme empenhamento do grupo em conseguir um cessar-fogo abrangente em toda a Síria”. Escreveu também que as FDS estavam prontas “a propor o estabelecimento de uma zona desmilitarizada em Kobane” para responder às preocupações de segurança da Turquia relativamente aos grupos militantes curdos que operam perto das suas fronteiras.
A Turquia, que considera estes grupos como extensões do Partido dos Trabalhadores do Curdistão (PKK), que está proibido, rejeitou imediatamente o apelo de Abdi e prosseguiu as suas ações militares e o seu reforço na região. O Ministério da Defesa turco escreveu nas redes sociais que vai “continuar a tomar medidas preventivas e destrutivas” contra aquilo a que chama “organizações terroristas”.
Depois, em 30 de dezembro, as FDS realizaram as suas primeiras conversações oficiais com o HTS. Antes destas conversações, Abdi afirmou numa entrevista que as FDS não pretendiam dividir a Síria e que estavam “prontas a desempenhar o nosso papel na construção e participação no governo”.
No entanto, sublinhou que o grupo acredita que a Síria “deve ser um Estado descentralizado, pluralista e democrático, onde a identidade diversificada do país é constitucionalmente protegida”. Este modelo político foi estabelecido em 2013 em Rojava, uma região autónoma no nordeste da Síria.
NEW -- *big* shift in optics from #SDF leader Mazloum Abdi, who for the first time, placed a #Syria revolutionary flag behind him during a new interview. pic.twitter.com/2qoPmpiEeV
— Charles Lister (@Charles_Lister) January 10, 2025
Os pilares centrais do modelo de governação de Rojava são a democracia participativa, a ecologia e a igualdade de género. Estes princípios estão consagrados na Carta do Contrato Social de Rojava. No entanto, o conflito está a dificultar a sua aplicação.
Os confrontos nas proximidades da barragem de Tishreen, no rio Eufrates, deixaram a barragem à beira do colapso. Esta situação provocou a escassez de eletricidade e de água em algumas zonas de Rojava. Os danos estão também a ameaçar a produção agrícola, que é fundamental para a segurança alimentar na região.
Ali Demir, o diretor da barragem, avisou que os funcionários podem não ser capazes de conter uma corrente de água que poderia resultar no rebentamento da barragem de Tabqa, mais a jusante. Esta situação provocaria danos ambientais significativos, mesmo do outro lado da fronteira, no Iraque.
As mulheres de Rojava também se mostraram preocupadas relativamente aos progressos que têm feito no sentido da participação democrática. Estas preocupações devem-se principalmente às políticas do HTS em relação às mulheres em Idlib, onde o grupo governa desde 2017.
Estas políticas incluíam a aplicação rigorosa de códigos de vestuário conservadores, restrições à mobilidade, acesso limitado à educação e ao emprego e punições severas para as mulheres dissidentes. Nenhuma mulher ocupou cargos de direção durante os sete anos de governo do grupo.
Sardar Aziz, do Centro de Investigação Francês sobre o Iraque, sugere que al-Shara “poderá dar prioridade aos serviços e ao desenvolvimento em detrimento dos direitos humanos e da democracia” enquanto líder político da Síria. Preocupações semelhantes foram levantadas pelo analista político Aaron Zelin, do Washington Institute for Near East Policy, que afirma que “Jolani e as suas forças continuam a ser, no fundo, um grupo armado autoritário”.
Seja como for, as mulheres de Rojava estão determinadas a ter uma palavra a dizer na futura governação da Síria. Em consonância com este objetivo, o Conselho das Mulheres Sírias publicou uma declaração em que apela a todas as forças políticas da Síria para que garantam “a igualdade de participação das mulheres e de todos os diferentes grupos religiosos, culturais e étnicos” no futuro.
Perspetivas de paz
Ao mesmo tempo, a Turquia mantém a sua oposição a qualquer autonomia curda na Síria. No entanto, autorizou uma delegação do Partido Popular para a Igualdade e a Democracia (DEM), pró-curdo, a visitar Abdullah Öcalan, o líder do PKK que se encontra preso, em 27 de dezembro.
Este facto marca o início de um novo diálogo entre a Turquia e o PKK, após o fracasso do anterior processo de paz, há quase uma década. O fim desse processo foi seguido de nove meses de guerra urbana em várias cidades curdas.
O conflito resultou na morte de milhares de pessoas, incluindo mais de 1.000 civis, na deslocação interna de quase meio milhão de pessoas e na destruição generalizada de cidades curdas. A revolução de Rojava teve um papel crucial no enfraquecimento do processo de paz, uma vez que reforçou a perceção do governo turco de que os curdos constituem uma ameaça estratégica, tanto a nível interno como além fronteiras.
Ainda não se sabe qual será a natureza deste novo processo. A Turquia parece concentrar-se mais na renúncia ao terror e na dissolução do PKK do que na democratização e na paz. Mas os curdos continuam cautelosamente otimistas. Numa declaração escrita de 30 de dezembro, os delegados do partido DEM, Pervin Buldan e Sırrı Süreyya Önder, afirmaram estar “muito mais esperançados” nas novas conversações de paz do que em processos anteriores.
Mais recentemente, a 16 de janeiro, o comandante das FDS, Abdi, encontrou-se com Masoud Barzani, antigo presidente da região do Curdistão iraquiano. Nesta reunião, concordaram em prosseguir um processo de transição pacífica com Damasco. Tendo em conta os laços estreitos de Barzani com a Turquia, é legítimo supor que este encontro está também relacionado com o novo processo na Turquia.
Não é segredo que o futuro dos curdos na Síria está intimamente ligado à resolução da questão curda na Turquia. O que se segue para a Síria, a Turquia e os curdos da região tornar-se-á em breve mais claro.
Pinar Dinc é Professora Associada de Ciência Política, Departamento de Ciência Política e Investigadora do Centro de Estudos Avançados do Médio Oriente, Universidade de Lund. Artigo publicado em The Conversation. Traduzido por Luís Branco para o Esquerda.net.