A questão curda mantém-se

porBruno Candeias

29 de dezembro 2024 - 12:06
PARTILHAR

No Curdistão Sírio a experiência política de Rojava é o principal alvo de todas as forças regionais e imperialistas, porque o seu efeito de contágio seria profundamente transformador.

Caiu a dinastia Assad! Foram 54 anos de poder na Síria, primeiro com Hafez al-Assad (1970-2000), depois com o filho Bashar al-Assad (2000-2024), uma ditadura sanguinária que caiu como um castelo de cartas, podre e decadente. Desde o início da guerra civil em 2011 (ainda na força da “Primavera Árabe”), contam-se mais de 500 mil mortos, milhões de refugiados e deslocados, episódios de gaseamento do seu próprio povo e um sistema carcerário e de tortura por onde passaram milhares. Assad fugiu, estará em Moscovo, exilado na amiga Rússia de Putin. Termina assim o poder da minoria alauita (ramo do xiismo).

A ofensiva do Hayat Tahir Al-Sham (HTS) demorou apenas 12 dias desde o seu reduto Idblid, no noroeste, até à capital Damasco, sem resistência do exército do regime, desgastado por uma longa guerra civil e sem apoios externos. A Rússia deslocando o esforço de guerra para a Ucrânia e o Irão, desfalcado pela reduzida capacidade do Hezbollah no rescaldo do conflito com Israel, abandonaram o regime de Assad à sua sorte. O HTS avançou por entre os escombros de um regime moribundo e abandonado, com o apoio da Turquia (membro da NATO) e da Arabia Saudita (velha amiga dos EUA).

Desengane-se quem achar que os gritos populares de uma “Síria Livre”, legítimos e compreensíveis após mais de cinco décadas de opressão e morte, são compagináveis com o HTS. Liderado por Abu Mohammad al-Golani reagrupa várias fações Jihadistas dissidentes do Daesh, onde prepondera a frente Al-Nusra (ramo da Al-Qaeda), o HTS abandonou parcialmente a ideia de califado, mas mantem uma versão nacionalista do fundamentalismo sunita e da sharia.

Não obstante a satisfação e complacência ocidental esta não parece ser uma solução libertadora que garanta um estado secular e a diversidade étnica e religiosa da Síria. A operação mediática de reabilitação de al-Golani, de barba aparada e blazer, é uma moderação tática que não altera a sua matriz. Só o interesse hegemónico justifica a transformação de um terrorista procurado em rebelde heroico.  Foi assim na Líbia, no Iraque e no Afeganistão.

Neste contexto são evidentes os ganhos diretos de Israel e da Turquia e a quebra do Eixo de Resistência (xiita). O enfraquecimento do Irão, e seus proxys, beneficia a aliança entre os Estados Unidos e a Arábia Saudita, reforçando o poder americano e a afirmação sunita. Neste rearranjo do mosaico do Médio Oriente, com desfecho imprevisível, a relação de forças favorece os EUA, na perspetiva do binómio EUA-Rússia.

De forma “preventiva” Israel ocupou a zona-tampão dos Montes Golã avançando para a Grande Israel Bíblica, do Nilo ao Eufrates, um mapa ansiado pelo atual governo de extrema-direita sionista, liderado por Netanyahu. Nestes dias bombardeou depósitos de armas militares e químicas, bases terrestres e navais e isolou a zona costeira de Tartus e Lattakia (único acesso da Rússia ao mar Mediterrâneo). Com esta ofensiva reduz a capacidade de ressurgimento de milícias inimigas na Síria, neutraliza o Hezbollah e ganha força para o genocídio em Gaza.

A Turquia, que patrocinou toda esta operação, ensaia uma ilusão temporária de “transição pacífica” na Síria. Interessa-lhe um retorno voluntário dos refugiados sírios ao seu país e, sobretudo, alargar o seu projeto neo-Otomano para a região a este do rio Eufrates. É nesta região que vivem os povos Curdos, ainda sob grande influência do Partido dos Trabalhadores do Curdistão (PKK), principal inimigo político de Erdogan. O estado turco usa o seu braço armado, o Exército Nacional Sírio (SNA), para combater a autodefesa curda e impedir a sua autodeterminação. O SNA ajudou o HTS a conquistar Damasco e desferiu imediatamente ataques violentíssimos a Manbij, território livre da Administração Autónoma do Norte e Este da Síria (AANES).

Este ataque é só mais um dos que se têm vindo a acentuar desde 2018 no Curdistão Sírio, momento em que a resistência curda impõe a derrota ao Daesh. Cumprido este objetivo a presença militar norte-americana na região torna-se dispensável para Trump, de rédea solta a Turquia militariza a fronteira e reforça os ataques aéreos e terrestres ao território curdo a que resistem as Forças Democráticas da Síria (FDS) e as unidades de proteção curdas (YPG e YPJ).  O período pós Assad pode criar condições para a reativação de células do Daesh, na Síria ou desde o Iraque, nesta situação a primeira linha de combate à barbárie será novamente curda.

As placas tectónicas da geopolítica movem-se gelatinosamente, mas a questão curda mantém-se. No Curdistão Sírio a experiência política de Rojava é o principal alvo de todas as forças regionais e imperialistas, porque o seu efeito de contágio seria profundamente transformador. O “sultão” Erdogan quer ser o carrasco desta Revolução. O 7º Congresso do PKK (sob a influência de Abdullah Öcalan) substitui o Socialismo de Estado pelo Confederalismo Democrático. Esta nova forma de organização societária, teorizada por Murray Bookchin, em torno da ecologia social e do municipalismo libertário, assenta na democracia popular de base, em comunas autogestionadas, no feminismo e na ecologia, um sistema verdadeiramente livre. O apelo ao internacionalismo, à solidariedade sem fronteiras, tem que se estender ao povo Curdo e a Rojava. É urgente a nossa mobilização e apoio à autodeterminação dos povos, sejam eles Curdos, Palestinianos ou Ucranianos.


Artigo publicado no Público a 23 de dezembro de 2024

Bruno Candeias
Sobre o/a autor(a)

Bruno Candeias

Operador Industrial.
Termos relacionados: