Síria

Muitas incertezas e uma certeza: Rojava deve sobreviver

16 de dezembro 2024 - 21:24

Aquilo a que a Turquia chama uma guerra especial é uma luta contra as aspirações do povo curdo. O objetivo é impedir a consolidação da autonomia administrativa no nordeste da Síria e a implementação de processos de reconstrução, bombardeando e destruindo qualquer progresso que possa conduzir a uma melhoria das condições de vida.

por

Tino Brugos

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Protesto da comunidade curda em Bruxelas.
Protesto da comunidade curda em Bruxelas. Foto de OLIVIER MATTHYS/EPA/Lusa.

A queda do regime de Bashar al-Assad na Síria gerou múltiplas reações e respostas nos últimos dias e será, sem dúvida, um elemento de debate nas próximas semanas e meses, uma vez que se trata de um acontecimento destinado a gerar movimentos geopolíticos numa zona de máxima instabilidade e onde convergem os interesses de diferentes potências mundiais e regionais. O vazio criado por esta queda obrigará a uma série de ajustamentos e mudanças em que todos os atores políticos estarão envolvidos.

O efeito de conflitos como o da Ucrânia e a ofensiva israelita na sequência dos atentados do Hamas, em outubro de 2023, foram repetidamente citados para explicar o enfraquecimento dos aliados em que o regime de Bashar se apoiava. Com efeito, tanto a Rússia, atolada na sua guerra na Ucrânia, como o Irão e a milícia libanesa Hezbollah têm dificuldade em manter inalterado o funcionamento das alianças tradicionais.

No entanto, tem havido menos especulação sobre o calendário. Se considerarmos a Turquia como a principal responsável pelo timing da operação, parece pertinente perguntar o que levou Erdogan a dar luz verde, no mínimo, a este processo. A pouco mais de um mês da mudança de presidência nos EUA, com o regresso de Donald Trump a gerar múltiplas incertezas sobre o seu novo mandato, parece que Erdogan decidiu colher os benefícios, para usar o jargão dos investidores bolsistas, antes da chegada do novo presidente, a fim de consolidar as vantagens alcançadas no último período.

Admitindo que assim seja, coloca-se a questão de saber se esta decisão poderá provocar reações de outros atores políticos envolvidos na região e gerar novas instabilidades. Se a queda de Bashar for interpretada como um avanço do islamismo, na versão do Hayat Tahrir al Sham, a existência de outras fações islamistas de cariz salafita e jihadista pode estimular uma espiral de instabilidade que conduza a uma nova fase do conflito, em vez de o encerrar e iniciar um processo de estabilização e reconciliação. Assistimos a isso durante os anos mais difíceis da guerra civil e não está fora de questão que uma escalada intervencionista semelhante possa voltar a acontecer.

Síria, Levante ou al Sham?

O risco imediato de fragmentação da Síria é consensual tanto entre os que se declaram apoiantes do regime deposto como entre os que apostam na abertura de um novo episódio na história do país. Em ambos os casos, a principal preocupação é como manter a integridade territorial e a unidade da Síria, o que levanta a questão da solidez do Estado sírio.

Um olhar sobre o passado recente revela que a Síria, tal como a conhecemos hoje, é o resultado da divisão colonial do Império Otomano durante a Primeira Guerra Mundial entre a França, o Reino Unido e a Rússia czarista do Império Otomano (Acordo Sykes-Picot), que teve lugar durante a Primeira Guerra Mundial. Dessa divisão e subsequentes ajustamentos resultou o mandato francês sobre a Síria, que se tornou independente no decurso da Segunda Guerra Mundial.

Trata-se de um Estado artificial criado, como tantos outros, durante a época colonial. Antes disso, não era um território articulado tal como o conhecemos atualmente. Nessa altura, era a região de Al Sham, o Levante - equivalente ao Sul ou Midi francês - do Império Otomano, que se estendia de norte a sul, paralelamente à costa mediterrânica, pelo interior montanhoso. Esta zona do Levante coincide com a parte ocidental da meia lua ou crescente fértil, expressão tradicionalmente utilizada pelos geógrafos e historiadores. Uma caraterística importante é a presença de um clima árido que obriga a população a instalar-se a grandes altitudes para beneficiar das escassas chuvas. Este habitat a grande altitude no interior articulou o território sob a forma de um eixo que se mantém até hoje na direção norte-sul: Alepo, Hama, Homs, Damasco, na Síria, e Irbid e Amã, na Jordânia. Foi ao longo deste eixo que foi construído o caminho de ferro de Meca, pouco antes da Primeira Guerra Mundial, para integrar a Península Arábica no conjunto otomano, tal como o caminho de ferro entre Bagdade e Baçorá foi construído a leste para articular a Mesopotâmia otomana.

Para os geógrafos, falar de montanhas significa frequentemente referir-se a zonas que historicamente serviram de refúgio a numerosas minorias perseguidas e, no caso em apreço, encontramos a presença de drusos e alauítas, comunidades ancoradas em zonas altas e marginais onde mantêm as suas caraterísticas identitárias longe dos centros políticos opressores. A isto junta-se a sobrevivência de várias comunidades cristãs em zonas remotas e marginais (jacobitas e assírios).

De cada lado deste eixo montanhoso, existem duas periferias: a zona costeira ocidental, onde a atual Síria se abre para o Mediterrâneo, onde a França criou um Estado alauíta integrado finalmente na Síria, e, a nordeste, a região de Djazira, literalmente a planície, que se tornou uma zona de colonização agrícola, o celeiro da Síria e onde se encontram os escassos recursos petrolíferos do país.

Assim, quando falamos da Síria, estamos a referir-nos a uma construção política recente, inexistente há um século. Um produto da colonização francesa e do seu desenvolvimento pós-independência. O que não é de estranhar, uma vez que a Inglaterra teve de seguir um processo semelhante para articular a região da Mesopotâmia e construir o atual Estado, também artificial, do Iraque.

O nacionalismo árabe após a independência

As potências coloniais tiveram de recorrer a um novo conceito político, o Mandato, para se referirem aos territórios da atual Síria, Jordânia e Iraque. A promessa feita aos árabes de lhes oferecer a independência após a Primeira Guerra Mundial e de construir um Estado árabe desde as montanhas Taurus até ao sul da Península Arábica nunca foi cumprida. De qualquer modo, não era possível transformar esses territórios em novas colónias na ausência de um governo autóctone. Assim, foram estabelecidos governos autóctones sobre esses territórios, que deveriam tornar-se nações independentes num curto espaço de tempo. Esta é a origem dos Mandatos e a explicação para a rápida independência da Síria ou do Iraque.

No caso da Síria, a França cedeu às pressões unificadoras e federalizantes do nacionalismo árabe. Assim, os territórios drusos e alauítas foram incorporados na Síria em construção. Para evitar a rejeição da comunidade alauíta, foram feitos esforços políticos e teológicos para a integrar, eliminando os vestígios de opressão e perseguição do passado. Assim se forjou o quadro da atual Síria, embora a França não tenha conseguido impedir que o distrito de Alexandretta fosse absorvido pela Turquia, facto que o nacionalismo árabe ainda hoje não aceita.

Será o Estado pós-colonial que prosseguirá o processo de construção da nação na Síria. O Partido Socialista e do Renascimento Árabe (Ba'ath) tentou manter o sonho do pan-arabismo como objetivo, mas rapidamente se revelou inviável na prática. Várias tentativas de unidade (República Árabe Unida) foram frustradas e, no final, mesmo nos Estados governados pelo Ba'ath, foi impossível alcançar a unidade. Assim, a Síria e o Iraque deram origem a partidos baathistas concorrentes.

Perante o nacionalismo socializante, só existia a alternativa do islamismo. A Irmandade Muçulmana tornou-se uma realidade em todo o mundo árabe. No entanto, surgiram também particularismos. Assim, enquanto na Jordânia a Irmandade acabou por ser integrada no sistema político, na Síria a tendência foi sempre para o golpe e a insurreição.

Após um período de grande instabilidade, a revolução baathista teve lugar em 1963 e, a partir de 1970, através de um golpe de Estado militar, Hafez el-Assad instaurou um modelo autoritário que perdura até à atualidade. A hostilidade para com Israel levou a várias guerras e à perda do território dos Montes Golã. Este facto serviu de pretexto para justificar a manutenção de um estado de emergência permanente. Os progressos na construção da nação nunca foram acompanhados pela construção de uma sociedade civil autónoma do poder político que pudesse desenvolver-se no quadro das liberdades democráticas.

A manutenção do Ba'ath no poder durante mais de cinco décadas explica-se pela utilização dos recursos do Estado para criar um aparelho de segurança em seu próprio benefício e pela inserção da Síria no jogo das alianças internacionais desde a época da Guerra Fria. Neste sentido, o legado deixado pelo Ba'ath, tanto na Síria como no Iraque, é o estabelecimento de regimes repressivos severos que sufocaram a sociedade civil, causando milhares de mortes. Em termos de política externa, a Síria, tal como o Iraque de Saddam Hussein, aproximou-se da União Soviética, com a qual mantinha estreitos laços comerciais e políticos.

No caso da Síria, a aliança com a URSS sustentou o regime do Ba'ath durante décadas. A política soviética de construção da Frente Nacional Progressista, que transformou os partidos comunistas em forças subsidiárias da burocracia no poder, foi aplicada neste caso, o que se transformou numa catástrofe a médio e longo prazo. Provocou divisões e perda de iniciativa política, mas a submissão aos interesses soviéticos tornou necessária a cumplicidade com o governo baathista que se apresentava como laico e progressista na região.

Para além do aspeto conjuntural, há um fator que os historiadores descrevem como de longa duração: o desejo da URSS de ter acesso às águas quentes do Mediterrâneo. A Síria baathista oferecia uma base estável para a marinha russa em Latakia, ao largo da costa de Chipre. Esta aspiração manteve-se após o fim da URSS. Assim, o desejo da Rússia de manter a sua presença na região obrigará Putin a intervir quando rebentpu a guerra civil, bombardeando as cidades controladas pela oposição. É possível que a Rússia faça um esforço de compreensão para com o novo regime, numa tentativa de garantir a continuidade das suas bases em território sírio.

Bashar al-Assad, a primavera frustrada

O regime Ba'ath tornou-se uma dinastia familiar e viu-se confrontado com a necessidade de uma sucessão. A figura de Bashar al-Assad gerou grandes expetativas. A sua formação académica e ocidental foi apresentada como um fator de modernização e inovação. As elites económicas (em Alepo e Damasco, cristãs e muçulmanas), o aparelho de segurança do Estado e o próprio Ba'ath concordaram com uma sucessão estabilizadora no seio da mesma família.

A nível social, as expectativas também eram elevadas. A esperança de abertura democrática, o reconhecimento das liberdades formais e uma reforma económica liberalizante eram os elementos em que se apoiava uma sociedade civil ávida de democracia e de participação. Este espírito espalhou-se por todo o país e deu origem à chamada primavera de Damasco, que precedeu a primavera Árabe. No entanto, as expectativas não se concretizaram e, em 2005, a repressão oficial tinha desmantelado as várias iniciativas das classes médias e profissionais urbanas. A frustração apoderou-se do país. Intelectuais como Michel Quilo, arquiteto da Declaração de Damasco, foram julgados e presos. Riad al-Turk, um veterano dirigente comunista, conhecido como o Mandela sírio por ter passado 17 anos na prisão, enfrentou novos processos após a sua libertação em 1998. Com 72 anos de idade, foi novamente julgado e condenado à prisão. Estes factos devem ajudar-nos a compreender por que razão, quando a primavera Árabe chegar, os protestos se deslocarão para o espaço ocupado pelo islamismo. Os sectores laicos da sociedade tinham sido esmagados anteriormente.

A revolta que começou em Dera'a, no sul da Síria, foi reprimida pelo regime. A população reagiu com raiva à forma brutal como o regime tratou os jovens que lideravam os protestos e seguiu-se um ciclo rápido de radicalização, que levou a confrontos generalizados entre milícias.

O islamismo tornar-se-á o protagonista da insurreição, dando continuidade à tradição da revolta contra o poder. Recorde-se que, em 1982, uma revolta civil em Hama, orquestrada pela Irmandade Muçulmana, causou nada menos que 20.000 mortos. Algumas fontes duplicam este número.

O mandato de Bashar al-Assad vai transformar o país de uma potência regional capaz de influenciar países como o Líbano num pária internacional que se sustenta na força dos seus aliados, no meio de sanções e condenações internacionais e da destruição de todas as infraestruturas. Milhões de pessoas fugiram da Síria em busca de refúgio, criando um grave problema de refugiados na Europa, numa escala nunca vista desde a Segunda Guerra Mundial.

O poder blindou-se por detrás do chamado "Eixo da Resistência" com o Irão, a Rússia, o Hezbollah e o apoio ao Hamas. Seguiu-se uma luta narrativa que continua até aos dias de hoje. O governo sírio alegou estar a lutar contra o terrorismo islâmico, mas fê-lo com uma repressão implacável, bombardeando até à exaustão as cidades controladas pela oposição. Calcula-se que 500.000 pessoas tenham sido mortas e que seis milhões se tenham tornado refugiados durante estes anos de guerra civil.

Do islamismo ao jihadismo (e vice-versa)

A queda da URSS inaugurou um novo mundo em que a emergência do fator islamismo assumiu um protagonismo até então insuspeitado. Os sectores salafitas radicalizados deram o salto para a prática violenta, em muitos casos indiscriminada. Os confrontos sectários no Paquistão, o jihadismo no Afeganistão e em Caxemira, a emergência de propostas fundamentalistas entre a resistência palestiniana, o projeto de estabelecimento de um Califado universal e a estratégia da Al Qaeda para enfrentar o Ocidente após a derrota da URSS no Afeganistão e o seu posterior desmantelamento são dados que nos permitem intuir a evolução desta corrente política.

Durante a guerra civil, diferentes fações entraram em conflito na Síria, com apoios externos e patrocínios políticos do exterior do país. Assim, a proposta salafita da Arábia Saudita enfrentava-se com a Irmandade Muçulmana, apoiada pelo Qatar. Entre os grupos ligados à Al-Qaeda, surgiu o ISIS ou Estado Islâmico, empenhado numa ofensiva militar que desafiava as fronteiras herdadas da colonização, com a proclamação de um Estado ou emirado islâmico e o exercício de uma violência insuportável aos olhos ocidentais. Se há algo que caracteriza o Isis, é a sua intransigência e dogmatismo relativamente à observância dos preceitos islâmicos.

O Ocidente procurou uma oposição laica e ocidentalizada, não querendo aperceber-se de que a ditadura baathista se tinha encarregado de a eliminar. Em todo o caso, é importante reconhecer que o laicismo, um valor promovido pelo governo baathista, continuou a ser um álibi para um governo apoiado por uma confissão minoritária (alauíta) contra uma esmagadora maioria sunita. O Ba'ath monopolizou o poder e controlou o exército e uma grande parte da função pública, apoiando-se na minoria alauíta em detrimento das aspirações de outros sectores sociais.

Tratava-se, portanto, de decidir de que lado se estava: com o governo ditatorial, laico mas criminoso de Bashar, ou com os movimentos fundamentalistas selvaticamente reprimidos. Alguns, como Erdogan, não tiveram muitos escrúpulos. Todas as propostas fundamentalistas, por mais radicais que pareçam, têm alguma utilidade para as aspirações da Turquia, quer para combater o governo sírio, quer para enfrentar a resistência curda. A conivência de Erdogan com todos os grupos islamistas foi assim denunciada, mas de pouco serviu. O aspirante a sultão tem o aval de ser o chefe de governo de um país membro da NATO que desempenha um papel estratégico fundamental na região.

Olhando para o futuro imediato, é difícil imaginar uma Síria em que o islamismo possa ser relegado para margens políticas estreitas. A ausência de sectores laicos e liberais permite esse protagonismo. Mesmo nos valores simbólicos, o fundamentalismo prevalecerá no futuro imediato: a nova bandeira síria, que vimos em todas as imagens televisivas nas mãos dos que saudaram a queda do regime baathista, é a que foi reconhecida aquando da independência. Cada uma das três cores representa um califado histórico, o omíada de Damasco, o abássida de Bagdade e o fatímida do Egito. As estrelas referem-se às entidades coloniais unidas que constituem a Síria, ao contrário das duas estrelas anteriores da era Ba'athista, que se referiam à falhada República Árabe Unida (RUA) que nunca se consolidou.

O grupo Hayat Tahrir al Sham (HTS), liderado por Mohamed al Jawlani, foi quem desencadeou a ofensiva relâmpago que forçou Bashar a abandonar o poder. Com uma militância ativa na organização Al Nusra, ligada à Al Qaeda, apresenta agora uma proposta moderada e flexível, seguindo um caminho semelhante ao percorrido pelos talibãs afegãos depois de terem sido expulsos do poder. Demonstra, assim, que o fundamentalismo pode alimentar trajetos de ida e volta em função dos resultados obtidos. Mais uma vez, o turco Erdogan desempenha um papel fundamental neste espetáculo de maquilhagem e branqueamento.

Os limites do branqueamento ideológico podem ser vistos no caso afegão. A ideia transmitida de ter suavizado as posições ideológicas originais durou o tempo necessário para consolidar novamente o poder. Passado esse prazo, foram retomadas as medidas legislativas fundamentalistas que eliminam os direitos das mulheres. Até onde pode ir o HTS é um enigma. Em todo o caso, o seu nome, Vida ou Força para a Libertação de Al Sham, remete claramente para posições integristas e fundamentalistas. A opção moderada pode ser verdadeira, embora ainda esteja por provar. Mas, mesmo nesse caso, essa moderação não poderá impedir o aparecimento de uma outra opção mais radical. Podemos ver isso novamente no caso afegão, onde a moderação dos Talibãs é contrariada pelo muito mais radical e intransigente Isis de Khorasan. Algo semelhante poderá acontecer no caso da Síria.

Precisamente por isso, uma incerteza para o futuro imediato são as dúvidas sobre a abertura de um processo de paz e reconciliação ou a possibilidade de sectores radicalizados abrirem caminho para o confronto sectário entre fundamentalistas sunitas e minorias como os alauítas de origem xiita, não o esqueçamos, ou os yazidis, refugiando-se em rancores historicamente acumulados.

Uma certeza: Rojava deve sobreviver

Há vinte e cinco anos, Hafez el-Assad decidiu pôr termo à política de acolhimento do líder do PKK, Abdullah Öcalan, invocando a pressão turca e o seu desejo de evitar uma guerra entre os dois países. Hoje, o resultado é desolador: Öcalan está preso na Turquia num regime de isolamento penitenciário que viola os direitos individuais e impede a sua participação num processo de paz entre o movimento curdo e a Turquia.

A entrega da cabeça de Öcalan não impediu a guerra, nem a queda da dinastia Assad. Pior ainda, à destruição total junta-se a ocupação de zonas como Afrin, de onde a população curda foi expulsa e a integridade territorial foi posta em causa para o futuro imediato.

Se alguma coisa se revelou durante estes anos, foi a visão neo-otomana promovida por Erdogan, que aspira a recuperar para a Turquia a influência em zonas perdidas após a Primeira Guerra Mundial, mas nas quais nunca desistiu de intervir: a região de Mossul, no norte do Iraque, e Alepo, no norte da Síria. Para o efeito, não hesita em instrumentalizar as comunidades turcomanas que vivem na zona. Este fator, que faz parte da política tradicional da Turquia, é perfeitamente complementado pela necessidade da Turquia de esmagar a rebelião curda, o que significa alargar a guerra ao Curdistão iraquiano (Basur) e a Rojava na Síria.

A guerra civil na Síria proporcionou à população curda uma oportunidade de se incorporar no ativismo político de forma autónoma, com as suas próprias propostas de reconhecimento nacional. Seja qual for o futuro imediato da Síria, o povo curdo corre um sério risco de assimilação política e cultural. O liberalismo ocidentalizante dilui as identidades minoritárias numa entidade superior igualitária e assimilacionista, receita aplicada na Turquia e na qual se encontram muitas das raízes do atual conflito. A outra opção, o islamismo comunitário que iguala todos os crentes islâmicos numa mesma comunidade ou Unma, é igualmente uma proposta que nega a particularidade cultural curda. Perante ambas, só resta a opção da luta e da resistência.

A maldição geopolítica colocou o povo curdo na Síria numa situação especialmente delicada. Confrontado com a Turquia, com os diferentes integrismos religiosos: a variante xiita iraniana que renega os curdos no Irão e os enfrenta com o governo sírio de Bashar e os seus aliados libaneses do Hezbollah. Confrontada também com o fundamentalismo religioso sunita nas suas variantes turca, saudita ou do Qatar, a sua sobrevivência passa por impulsionar uma política de participação política democrática com abordagens multiétnicas que fomentem a integração ativa das mulheres num contexto cultural de negação destes direitos e por impulsionar iniciativas de sensibilidade ecológica numa região onde a emergência climática será fundamental nos próximos anos.

Aquilo a que a Turquia chama uma guerra especial é uma luta contra as aspirações do povo curdo. Esta guerra é uma combinação híbrida de abordagens militares, culturais, económicas e políticas. O objetivo é impedir a consolidação da autonomia administrativa no nordeste da Síria e a implementação de processos de reconstrução, bombardeando e destruindo qualquer progresso que possa conduzir a uma melhoria das condições de vida da população civil, com o objetivo de a encorajar a emigrar e a abandonar as suas terras ancestrais. Perante a guerra especial turca, o confederalismo democrático surge no horizonte como a única proposta laica e progressista na região. Por todas estas razões, é necessário dar o máximo apoio à sobrevivência da experiência de governo autónomo e soberano. Rojava deve sobreviver, o que nos obriga a tomar a iniciativa de encorajar as mobilizações em sua defesa.


Tino Brugos integra a redação do Viento Sur. Texto originalmente publicado no Viento Sur. Traduzido por Carlos Carujo para o Esquerda.net.