A crise do capitalismo tardio e a banalidade do mal

19 de novembro 2024 - 14:50

A banalidade do mal fabricada pela alienação é o caminho aberto para o desastre que só a resistência contra-hegemónica pode e deve travar.

porFernando Rosas

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Fernando Rosas
Fernando Rosas. Foto de Ana Mendes.
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O conceito de banalidade do mal foi adiantado por Hannah Arendt no livro publicado em Maio de 1963 sobre o julgamento de Adolf Eichmann em Jerusalém entre Abril de 1961 e Maio de 1962, data em que foi executado após confirmada a sua sentença de morte. Eichmann era o tenente-coronel das SS, destacado na Gestapo, a polícia política da Alemanha nazi, onde se tornara o principal “especialista” da “questão judaica”, vindo a ser responsável pela gigantesca operação logística que implicou o extermínio da população judia da Alemanha e de todos os países sob ocupação do III Reich. Ou seja, o recenseamento e concentração coerciva dos judeus em cada país, a inventariação minuciosa dos seus bens com vista à expropriação pelo Estado nazi, o planeamento e efetivação do transporte ferroviário e distribuição pelos campos de extermínio ou de concentração e finalmente a recolha dos despojos rentáveis deixados pelas vítimas (joias, dentes de ouro, cabelos…) e seu encaminhamento para o Ministério da Economia e o Tesouro do Reich.

A banalidade do mal

09 de agosto 2020

O estudo do volumoso processo judicial contra o Obersturmbannführer responsável pela vertente logística do holocausto e a análise do seu comportamento em tribunal levaram H. Arendt a formular a ideia de que a barbárie criminosa do nazismo só fora possível mediante a disseminação generalizada, qual fungo, daquilo que designa como a banalidade do mal. Isto é, falência do pensamento crítico, a incapacidade de distinguir entre o bem e o mal, a normalização da barbárie, da prepotência, da injustiça, o sonambulismo social face à expulsão e à discriminação, em suma o “colapso moral” das atitudes e comportamentos dominantes. É importante precisar dois pontos essenciais na abordagem de Arendt sobre a banalidade do mal.

Julgamento de Eichmann
Hannah Arendt acompanhou o julgamento de Adolf Eichmann (à esquerda dentro da cabine) para a revista New Yorker e esses artigos viriam a resultar no livro “Eichmann em Jerusalém - Um relato sobre a banalidade do mal”. Foto do Governo de Israel

O primeiro, é que ela encara o mal em termos claramente seculares, ou seja, recusando qualquer explicação transcendental, “demoníaca”, fruto somente de monstros e demónios (as elites do nazismo) metafisicamente exteriores às realidades que os geravam. Pelo contrário, a autora resiste à facilidade de conferir um caracter mítico à banalidade do mal, considerando-o como inerente aos regimes totalitários emergentes no século passado, no fundo, um produto da capacidade destes totalitarismos contemporâneos “alterarem sistematicamente a natureza humana, tornando supérfluos os seres humanos, na sua pluralidade, espontaneidade e individualidade”1.

Sofia Roque
Sofia Roque

Invocar Hannah Arendt, nos 45 anos da sua morte

04 de dezembro 2020

O segundo ponto liga-se ao anterior: é impossível instalar-se a banalidade do mal sem a colaboração e a cumplicidade das vítimas, isto é, sem esse colapso moral resultante da incapacidade de pensar, julgar e comparar gerada pela alienação, pelo medo ou pela manipulação. O que transforma “pessoas vulgares”, insuscetíveis de cometer crimes em condições diferentes, em cúmplices por ação ou abstenção ou em co-autores das piores barbaridades e de formas extremas de injustiça e de arbítrio. As elites do nazismo e a sua vasta rede de servidores são obviamente responsáveis pelos crimes hediondos que cometeram. Mas aquilo que sobretudo inquieta Arendt é a capitulação moral da maioria e a sua incapacidade de precisar e refletir. É isso que historicamente caracteriza o mal nas sociedades totalitárias: a banalização do intolerável e consequentemente, a sua viabilização impune.

Para escândalo da sociedade israelita dos anos 60 do século XX e de boa parte da intelectualidade europeia ou norte americana, Arendt defendeu nesse trabalho que sem a cumplicidade dos conselhos judaicos no Reich e nos diversos países ocupados (que selecionaram, organizaram e pagaram as deportações das comunidades judaicas para os campos de extermínio e de concentração) a “solução final” não teria sido possível e o número de judeus massivamente assassinados teria sido claramente inferior ao que foi. Da mesma forma se há-de perguntar se seria possível a política de genocídio e massacre contra o povo palestiniano levado a cabo em Gaza e Cisjordânia pelo Estado de Israel apoiado pelos EUA, sem a cumplicidade silenciosa dos governos e de boa parte da opinião pública dos países da União Europeia e do Ocidente em geral. Novamente é a banalização do crime que não só o viabiliza como gera a sua impunidade a nível internacional. Na realidade, o conceito de banalidade do mal volta a ser central na análise atual da crise do capitalismo tardio.

O impasse do capitalismo tardio e o autoritarismo de novo tipo

É sabido que a crise do capitalismo na época do neoliberalismo decorre da sua prolongada incapacidade estrutural em superar um longo período de taxas de acumulação medíocres e de estagnação e inflação no seu crescimento global. Não obstante os níveis de concentração do capital sem precedentes e até do registo de taxas de lucro impressivas nos conglomerados ligados ás novas tecnologias digitais, em termos globais, a economia capitalista arrasta-se na estagflação: a natureza especulativa e parasitária do capitalismo dominante gera o seu próprio impasse.

Fascismo e Grande Capital

21 de janeiro 2024

Os gestores económicos e políticos do capital financeiro – o centro social-democrata e a direita tradicional em cada Estado ou nos organismos supranacionais – tentam superar o impasse sistémico reforçando autoritariamente a imposição da estratégia neoliberal contra qualquer tipo de resistência social ou política. A privatização dos setores estratégicos da economia ou dos serviços públicos universais para potenciar a acumulação parasitária e rentista; a especulação financeira em detrimento do fomento produtivo; o desagravamento fiscal das grandes fortunas; a ofensiva contra os direitos do trabalho para maximizar a extração da mais valia relativa e absoluta (precarização, urberização, despedimentos, deslocalizações, salários baixos, agravamentos das condições de trabalho, sobre exploração do trabalho imigrante, restrições ao direito à greve, à liberdade sindical e à contratação coletiva…); a corrida aos armamentos para disputar pela guerra esferas de domínio imperiais; a preservação do lucro sujeitando as políticas preventivas da catástrofe ambiental e climática: é todo um programa onde, a prazo mais ao menos curto, a democracia política e social é encarada como um obstáculo a remover.

Parte do centro e da direita clássica optam neste contexto por uma drástica viragem à direita para limpar autoritariamente as resistências sociais e políticas à única solução de que dispõem: aplicar sem peias nem concessões os programas de restruturação neoliberal, na prática, radicalizar o processo económico, social, político e cultural de regressão civilizacional já em curso. Parece estarem a fazê-lo por dois caminhos mais ou menos simultâneos consoante os países: adaptando programaticamente e na prática governativa as políticas e prioridades da nova extrema direita que tem vindo a cavalgar a crise e o descontentamento com sucesso, ou aliando-se a ela em entendimentos parlamentares ou governativos. Em ambos os casos, o papel da extrema direita fascizante ao conferir alguma base eleitoral e de massas à radicalização de uma direita clássica em declínio, torna essa aproximação quase inelutável e permite antever a emergência a curto ou médio prazo de regimes autoritários de tipo novo, talvez as novas formas de um fascismo adaptado às condições atuais. Na realidade, só a resistência social e política, nacional e internacional, das opiniões públicas e das mobilizações populares pode travar essa deriva fascizante que se alimenta a si própria com os sucessos que obtém: o triunfo de Trump nos EUA anuncia tempos difíceis para a democracia política e para as esquerdas socialistas e antifascistas em todo o mundo.

Meloni e Orbán
Giorgia Meloni e Viktor Orbán. Foto União Europeia

Uma subversão política deste teor, pela sua dimensão estrutural e impacto social exige não só a captura e reconfiguração autoritária do Estado por essa frente das direitas fascizantes, mas sobretudo, para se lograr impor, necessita da fabricação do consenso social que permita a aceitação, (ativa ou passiva) da ordem nova. Ou seja, precisa de conquistar a hegemonia ideológica, estabelecer uma mundivisão, um sistema de valores e representações que organize a adesão ou a sujeição. E, tal como no fascismo paradigmático, isso não se obtém só pela coerção, pela violência repressiva, exige a adequada combinação desta com a massiva arregimentação do acatamento a todos os níveis da vida social. Essa gigantesca ofensiva ideológica por parte das direitas neoliberais e fascizantes, essa guerra cultural contra a democracia, o socialismo e todas as expressões do pensamento emancipatório está em curso. A sua virulência e expansão são financiadas, equipadas e treinadas pelo espantoso poder dos conglomerados que controlam oligopolisticamente as novas tecnologias digitais e promovem com sucesso, através das redes, sociais e não só, a manipulação algorítmica e o condicionamento dos comportamentos, a exploração dos instintos primitivos, a mentira, a demagogia, a intimidação, o culto acéfalo do chefe bufão e histriónico.

O facto é que este circo parece ir ao encontro do medo, da raiva, do descontentamento dos vastos setores intermédios e assalariados da população vítimas do rasto de destruição económica e social do capitalismo neoliberal ou ameaçados por ela, mas que se sentem abandonados pela governança das elites tradicionais do centrismo social-democrata e da direita clássica e descreem da capacidade de uma esquerda enfraquecida se constituir como alternativa. A velha direita tendencialmente aliada á nova extrema direita, cavalgam por isso, com sucesso, os sentimentos de frustração generalizados, devidamente aplanados e instrumentalizados, por mais paradoxal que isso pareça, em apoio das formas mais radicais e violentas de exploração e prepotência política. Esse sucesso radica na socialização do medo e da insegurança, na difusão da crença irracional acerca das “virtudes” da desigualdade, da lei do mais forte, da impiedade social, como se fossem uma expressão da “ordem natural” das coisas. É uma espécie do retorno político e cultural do darwinismo social contra a solidariedade e a ação coletiva, desdobrado no recrudescer do racismo, da misoginia, da homofobia e no fomento de novas formas de obscurantismo geradoras da apatia e da falência do espírito crítico face à barbárie e ao arbítrio. E por aí se regressa, nesta época do capitalismo tardio, à banalidade do mal. A essa espécie de grande colapso moral que faz de boa parte das vítimas aliadas do Apocalipse contra si próprias. A banalidade do mal fabricada pela alienação é o caminho aberto para o desastre que só a resistência contra-hegemónica pode e deve travar.

Militarismo

Os tambores de guerra estão a rufar na Europa

por

MIGUEL URBÁN, ERIC TOUSSAINT e PAUL MURPHY

10 de junho 2024

Tentarei ilustrar brevemente o problema atual da banalidade do mal relativamente a duas questões cruciais que hoje se colocam nacional e internacionalmente: a questão da guerra e da paz e a questão da conciliação ou do conflito de classes.

A questão da guerra e da paz

Não há provavelmente nos dias que correm melhor exemplo daquilo que resulta do sonambulismo cívico e do colapso moral da cidadania rendida à barbárie do que a atitude da governança britânica e europeia e de largos setores da opinião pública “civilizada” e “liberal face à guerra genocida conduzida pelo Estado do Israel contra o povo palestiniano. Perto de 45 000 mortos (70% dos quais mulheres e crianças) resultantes dos bombardeamentos e da invasão militar ilegal de Gaza e da Cisjordânia; recurso massivo  à tortura, ao assassinato e às prisões arbitrárias; cerco total à população de Gaza massacrada e sem fuga possível; bloqueio da ajuda humanitária e proibição da intervenção da agência das Nações Unidas responsável por organizar e distribuir o apoio alimentar, médico e sanitário (com a prisão e assassinato de vários dos seus funcionários); violação sistemática dos direitos mais elementares da população árabe – todo este rasto sangrento de crimes de guerra e genocídio começou por merecer da União Europeia, da maioria dos governos que a integram, do governo britânico e de boa parte dos seus apoiantes uma vergonhosa aprovação sob o pretexto de se tratar do “direito de defesa” do governo fascizante de Israel. Quando o protesto mundial e até a condenação dos tribunais internacionais cresceram, a aprovação das elites ocidentais transformou-se em silêncio hipócrita. Vergada à suserania imperial dos EUA, a “Europa dos direitos” e do “império da lei” tornou-se cúmplice ativa do crime de genocídio e extermínio do povo palestiniano, desculpou e banalizou a barbárie permitindo a impunidade da matança e da violação do direito internacional. A banalidade do mal instalou-se para apoiar a agressão. Com a vitória de Trump nas eleições presidenciais norte-americanas pode passar-se impunemente e com apoio reforçado aos passos seguintes do programa da extrema-direita sionista: a anexação de Gaza, da Cisjordânia e de parte do Líbano ao “Grande Israel” e o ataque militar ao Irão. Daí para a guerra mundial pode ser um pequeno passo. A banalização e a impunidade do genocídio desaguam na guerra. Hoje como em 1939.

Escombros em Gaza
Na manhã seguinte ao bombardeamento israelita, moradores procuram por sobreviventes entre os escombros em Khan Younis. Foto Haitham Imad/EPA

A questão da desigualdade e da consciência de classe

Só aparentemente há contradição entre o culto ideológico das “virtudes” da desigualdade e da competição proclamada pelos políticos e publicistas da direita e da extrema-direita e a apologia que todos eles fazem do fim da luta de classes e da harmonia essencial entre o capital e o trabalho. Na realidade, a difusão neocorporativa e organicista das conceções defensoras do “abraço” entre patrões e trabalhadores como fruto da “ordem natural” das coisas e da luta de classes como anomalia artificialmente induzida pela subversão socialista é a porta aberta para a imposição das formas mais brutais da desigualdade e injustiça social e para a criminalização como “comportamento desviante” de qualquer forma de organização e resistência de classe. Hoje como no passado, no fascismo clássico, o corporativismo é o caminho para a sujeição do trabalho ao capital.

Por duas razões óbvias. Porque com a sua pregação sobre a conciliação de classes, os oligarcas preparam a neutralização ou a proibição da liberdade sindical, a limitação ou a interdição do direito à greve, o esvaziamento da contratação coletiva, a facilitação dos despedimentos, a desvalorização real dos salários, a generalização da precariedade e da uberização, o agravamento das condições e da duração do trabalho, em suma, a maximização da extração da mais valia e do lucro

Em segundo lugar, porque para atingir esses objetivos eles necessitam de anestesiar a consciência de classe do mundo do trabalho, fazer com que o proletário deixe de se reconhecer como sujeito transformador da sociedade e se assuma como “classe média” colaborativa com o patronato. Ou seja, o capital precisa de impor um ambiente ideológico de desmobilização e alienação, de virar os trabalhadores contra os seus próprios interesses, de banalizar a exploração. Desde logo a do trabalho imigrante, lançando os trabalhadores “nativos” contra os imigrantes, sem que eles percebam que tendencialmente esse padrão de exploração é o que o patronato quer impor globalmente.

Para essa ofensiva ideológica – que tem progredido com sucesso no mundo ocidental – contribui a própria estrutura do capitalismo neoliberal e os seus efeitos na natureza e na consciência da classe operária: a desmobilização e dessindicalização decorrente da hegemonia das ideias de ausência de alternativa ao capitalismo financeiro vitorioso do pós-Guerra Fria; a progressiva falência dos PCs de obediência soviética e dos seus aparelhos sindicais sem se constituir uma alternativa à esquerda suficientemente forte para resistir com sucesso ao refluxo e à deriva para a direita (salvo, na Europa, o caso da França Insubmissa); o processo objetivo de segmentação, precarização, uberização, deslocalização e desemprego do mundo do trabalho assalariado, com reflexos profundos na sua unidade e mobilização.

O mundo do trabalho mudou objetiva e subjetivamente na época presente do capitalismo tardio. E essas alterações contribuem para o recuo da consciência de classe, para o sonambulismo social e a conciliação, para a desmobilização. É esse o fruto da banalização da exploração e da aceitação das piores formas de injustiça e desigualdade. Mais uma vez a banalidade do mal anda de mãos dadas com a regressão social e civilizacional. A esquerda socialista tem de encontrar as soluções políticas e sindicais adequadas a contrariar essa tendência. No rescaldo do triunfo do trumpismo nos EUA têm surgido pontos de vista que propõem o regresso a um certo economicismo reformista e o abandono da ligação da luta do trabalho aos combates feministas, anti-racistas e anti-homofóbicos. Não parece ser esse o caminho. A exploração e a opressão do capitalismo agem como um todo. A centralidade da luta pela emancipação do trabalho é inseparável do combate ao patriarcalismo, ao racismo e à homofobia. A luta pelo socialismo, pela transformação da sociedade, só pode ser a luta toda. A esquerda que se enganar acerca disto caminha inevitavelmente para a irrelevância.


1António Araújo e Miguel Nogueira Brito, “Introdução. Arendt em Jerusalém”, in Hanna Arendt, Eichmann em Jerusalém. Uma Reportagem sobre a Banalidade do Mal, Ítaca, 2017, p. 32

Fernando Rosas
Sobre o/a autor(a)

Fernando Rosas

Historiador. Professor emérito da Universidade Nova de Lisboa. Fundador do Bloco de Esquerda
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