Invocar Hannah Arendt, nos 45 anos da sua morte

porSofia Roque

04 de dezembro 2020 - 17:32
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A invocação de Hannah Arendt é um gesto de justiça para com o seu legado e também, egoisticamente, o apontar de uma saída para nós, actuais e futuros habitantes do planeta Terra.

Na noite de 4 de Dezembro de 1975, Hannah Arendt recebeu uns amigos para jantar, na sua casa, em Nova Iorque. Mais tarde, enquanto conversavam, Arendt foi surpreendida por uma tosse súbita e acabou por cair inconsciente. Aos 69 anos, o segundo ataque cardíaco custou-lhe a vida. Hoje, assinalam-se os 45 anos dessa derradeira noite que marcou o mundo com uma perda irreparável.

É certo que outras perdas houve e que todas as vidas são insubstituíveis. Porém, submersos nos nossos tempos sombrios, um desejo de impossível surge a partir do lamento e somos levados a pensar que Hannah Arendt poderia afinal ter vivido mais de 100 anos e estar aqui, agora, a ajudar-nos a pensar sobre este mundo em crise profunda e virado do avesso. Mais do que renovar o elogio público da genialidade e da coragem de uma pensadora raramente igualável na história do pensamento político, a invocação de Hannah Arendt é um gesto de justiça para com o seu legado e também, egoisticamente, o apontar de uma saída para nós, actuais e futuros habitantes do planeta Terra.

Ler a sua obra não será suficiente, pois não encontraremos aí qualquer prescrição medicinal que se possa aplicar directamente aos males que assolam as nossas vidas e as nossas sociedades, tornando-as cada vez mais precárias, vulneráveis e ameaçadas a vários níveis. Na verdade, as sombras do mundo contemporâneo são múltiplas e revestem-se de elevada complexidade. Refiro-me exemplarmente ao fenómeno das alterações climáticas, do aquecimento global e do desenvolvimento vertiginoso da tecnologia e dos meios de comunicação digital; ao Trumpismo e ao «poder ubuesco», tal como Francisco Louçã o descreveu recentemente, as «fake news», o negacionismo histórico e científico, e os algoritmos que alimentam a produção de ignorância nas redes sociais; à «guerra infinita» e a ameaça nuclear; ao terrorismo e a definição de novos «inimigos» mundiais que validam a ascensão do discurso islamofóbico e anti-imigração; ao número crescente de governos europeus compostos ou apoiados por forças de extrema-direita; aos numerosos campos de detenção de refugiados, apátridas e migrantes, como os instalados no coração da Europa ou nas suas fronteiras, no norte de África ou no território fronteiriço dos E.U.A., onde o Direito Internacional e os mais básicos Direitos Humanos são violados diariamente. Em causa está o próprio sistema democrático de representação política tal como o conhecemos, bem como a preservação da espécie humana e do planeta. A actual pandemia veio acelerar tudo isto.

No entanto, se acompanharmos a reflexão de Hannah Arendt sobre os sistemas totalitários que marcaram o século passado, a condição humana e o sentido da política – a liberdade –, o julgamento do responsável nazi A. Eichmann, as revoluções, o lugar da verdade e da mentira na política, e a vida da mente, entre tantos outros temas, estaremos mais preparados para enfrentar o que há de novo e sem precedentes no nosso tempo, bem como discernir sobre as semelhanças e as diferenças em relação aos eventos do passado mais recente. A memória da história não tem de indicar o caminho, contudo, deverá dizer-nos, pelo menos, o que não devemos repetir. Para podermos, então, julgar o passado e agir no presente, considerando tanto as acções individuais como as escolhas colectivas, é preciso simplesmente começar por pensar – não é um remédio, mas é um antídoto para o entorpecimento generalizado.

«Não há pensamentos perigosos; pensar é perigoso», diz-nos Hannah Arendt que define socraticamente esta actividade como o «diálogo silencioso entre mim e eu mesma», a partir do qual examinamos criticamente o mundo das aparências que re-presentamos na nossa consciência, com a ajuda da imaginação. O pensar, que se distingue da cognição e da actividade da ciência que procura conhecimento, lida com invisíveis e, de certo modo, retira-nos momentaneamente do mundo, suspende-nos num lugar e tempo incertos. «Tantôt je suis, tantôt je pense» («Ora sou, ora penso»), a frase de Valéry tantas vezes citada por Arendt, quando tenta descrever fenomenologicamente o gesto do pensar. Quem nunca «parou para pensar»? O perigo não está nesta espécie de alienação interior temporária, mas sim no resultado da reflexão, crítica por definição, e que deverá atingir, pelo menos hipoteticamente, um certo grau de negação ou destruição das opiniões, doutrinas e valores adquiridos, pelo teste das suas implicações e tácitas assunções. Porém, a aporia só será perigosa se for tomada como resultado final. A busca por sentido, a actividade própria do pensar, que é comum a todos os mortais e não uma prerrogativa dos filósofos ou dos inteligentes, é interminável e insatisfeita por natureza. Um perigo maior será ainda o que advém do não pensar, da recusa em pensar ou da incapacidade para pensar, da qual Eichmann, segundo a acusação de Hannah Arendt, é um exemplo paradigmático.

Na conclusão de um artigo publicado em 1971, intitulado «Thinking and Moral Considerations», Hannah Arendt fala-nos das circunstâncias especiais em que o pensar se torna político por implicação, exactamente por causa do seu poder destruidor, que tem um efeito libertador numa outra faculdade, a do juízo. Hannah Arendt caracteriza-a, com inspiração kantiana, como o verdadeiro árbitro entre o certo e o errado, o belo e o feio, o verdadeiro e o falso. Esta é a faculdade que nos permite lidar com os eventos particulares, sem os subsumir em regras gerais ou universais. É, portanto, a faculdade que nos permite encontrar novas categorias de análise para os novos fenómenos sociais e políticos, e encontrar critérios de acção em situações extraordinárias, sobretudo quando o que nos resta é o desamparo da falência tanto da racionalidade moral como da autoridade da tradição: «A manifestação do vento do pensamento não é o conhecimento; é a habilidade de distinguir o certo do errado, o belo do feio. E isto pode, de facto, prevenir catástrofes, pelo menos para mim, nesses raros momentos de excepção [when the chips are down].»1

Aquando da sua morte, Hannah Arendt trabalhava no seu último livro, The Life of the Mind (A Vida Mente), que só veio a ser publicado postumamente em 19782. O projecto original incluía dois volumes: um primeiro sobre o «Pensar» («Thinking») e um segundo sobre o «Querer» («Willing») e o «Julgar» («Judging»). Esta última secção sobre a faculdade de julgar ficou por escrever. Como nos conta a responsável pela edição póstuma desta obra, Mary McCarthy, no posfácio da sua publicação, Hannah Arendt morreu subitamente, uns dias depois de completar a versão não-revista de «Willing»3. Depois da sua morte, uma folha de papel foi encontrada na sua máquina-de-escrever, quase em branco, apenas com o título «Judging» e duas epígrafes. Muitos ensaios críticos têm sido escritos, em busca do que poderia ter sido o conteúdo de uma teoria do juízo arendtiana, considerando-se outros textos importantes da autora, onde o tema é tratado no âmbito mais próximo do seu pensamento sobre a política e a filosofia estética kantiana ou a partir da relação entre o pensar, a moralidade e o mal. Transcrevo aqui as últimas palavras dactilografadas por Arendt, as duas epígrafes, os únicos vestígios directos, embora enigmáticos, do seu pensamento sobre a faculdade de julgar. Por tudo o que afirmei em cima, talvez possam também ser pistas sobre o que nos faz falta para compreendermos o mundo em vivemos, já que sugerem a ideia da revisitação crítica do passado, não esquecendo os despojos do progresso, e também a necessidade de libertar a própria história das suas forças invisíveis. Talvez assim possamos recuperar a nossa dignidade e a possibilidade do juízo sobre o presente das nossas vidas:

Victrix causa diis placuit, sed victa Catoni

(A causa vencedora agradou aos deuses, mas a vencida agradou a Catão.)4

Könnt' ich Magie von meinem Pfad entfernen,

Die Zaubersprüche ganz und gar verlernen,

Stünd' ich, Natur, vor dir ein Mann allein,

Da wär's der Mühe wert, ein Mensch zu sein.

(Pudesse eu libertar-me da magia,

Esquecer as fórmulas de feitiçaria,

Como homem só a natureza olhar,

Então valia a pena humano ser.)5

Notas:

1 Hannah ARENDT, «Thinking and Moral Considerations», in Responsibility and Judgment. New York: Schocken Books, 2005, p. 189. Existe tradução portuguesa, edição da Dom Quixote.

2 Hannah ARENDT, The Life of the Mind. Edição de Mary McCarthy. New York: Harcourt Brace & Company, [1978] 1981.

3 Idem, p. 242.

4 A frase pertence a Catão, o Novo (95-46 BC), surge no poema de Lucano, Farsália (Pharsalia), 1.128.

5 Goethe, Fausto, Part II, Act V, 11404-7. A tradução que aqui transcrevo é de João Barrento (2.ª edição da Relógio D’Água, Lisboa 2013).

Sofia Roque
Sobre o/a autor(a)

Sofia Roque

Investigadora e doutoranda em Filosofia Política (CFUL), ativista, feminista. Escreve com a grafia anterior ao acordo ortográfico de 1990
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