O Governo argentino suspendeu o envio de fundos e alimentos para as muitas cozinhas comunitárias que existem em todo o país no meio de uma crise alimentar provocada pelo galopar da inflação e quando o recurso a estas está em franco crescimento.
Enquanto, o presidente argentino ultra-liberal de extrema-direita Javier Milei continua o seu programa “motosserra” de cortes nos gastos públicos, a Secretaria Nacional da Criança, do Adolescente e da Família, parte do novo “Ministério do Capital Humano”, não aplicou as verbas para os refeitórios populares que vinham a ser executados por lei desde 2023. No conjunto, a execução orçamental atribuída às cozinhas comunitárias foi de apenas 24% do total e estará agora já a 0%, escreve o Página 12 baseado em dados do Governo. Apenas foram transferidas verbas para o chamado Cartão Alimentar, uma política de assistência individual implementado pelo anterior executivo, destinado a crianças até aos 14 anos.
O Governo tem justificado a suspensão da assistência alimentar também com a necessidade de melhorar o sistema, trocando a entrega direta de bens pelo Estado por um cartão com o qual se poderão adquirir os mesmos.
Àquele jornal alguns dos responsáveis dos movimentos sociais envolvidos neste trabalho solidário discordam do corte que coloca muitas pessoas em sério risco de insegurança alimentar. Salientam que já em 2023 tinham sido fornecidos menos 20% de alimentos que em anos anteriores e já então eram críticos da política do governo anterior. Concordam assim que o sistema em vigor não é o melhor porque o Estado “entrega mal e tarde” e os abastecedores não querem vender porque os pagamentos sofrem demoras de perto de seis meses, esclarece Rafael Klejzer do movimento La Dignidad, que dirige também o Centro de Estudios por la Soberania Popular Mariano Moreno. Este centro registou aumentos dos preços nas lojas em janeiro como os do vinagre que aumentaram 64,2% num mês, a polenta 54%, o azeite 45%, a farinha 43,5% e o leite 41,4%, entre outros.
Ao mesmo tempo, “as pessoas que recorrem às cantinas populares aumentam quotidianamente” e, informa Klejzer, nalguns casos não estão a aguentar o aumento, tendo sido obrigadas a funcionar apenas uma vez por semana. Recebem mais pessoas do que durante a pandemia “porque o dinheiro para comer não chega a ninguém”.
À mesma fonte, Natalia Zarza, trabalhadora de um destes refeitórios e dirigente da União de Trabalhadores e Trabalhadoras da Economia Popular, descreve: “onde antes se davam 80 tupperwares, hoje distribuem-se 150, e cada tupperware contém mais de uma dose, mas a mercadoria não chega. Então os refeitórios que funcionavam de segunda a sexta-feira agora só abrem três dias e os que abriam três dias passaram a abrir apenas um dia”. As pessoas que cada vez mais chegam não são desempregadas ou da economia informal mas “pessoas com emprego formal que ficam sem dinheiro antes do fim do mês”.
Ela acrescenta que “a situação nos bairros é delicada” e que “as pessoas irritam-se com os colegas porque entregam pequenas porções” e a qualidade piora: “um dia dão-te hidratos de carbono mas não entregam óleo nem açúcar, outro dia preparam-te umas latas de tomate e ervilha”. A UTEP diz que a solução de descontinuar as ajudas supostamente para “pensar” alternativas é a pior possibilidade em cima da mesa.
Por tudo isto, esta segunda-feira está organizada pelas organizações sociais e comunitárias uma mega-fila à porta do Ministério do Capital Humano “para que possam atender individualmente quem tem problemas alimentares”. Trata-se de uma ação simbólica para contestar o discurso do governo que tem sido sobre cortar nos apoios coletivos em nome de manter um suposto princípio de apoio individual. A ministra Sandra Pettovello, para estigmatizar estes apoios, declarou que o governo preferiria atender “uma por uma” as pessoas em situação de emergência alimentar. Desta forma, a UTEP fez o cálculo e diz que “se o Governo quiser servir as pessoas famintas uma a uma, demorará 85 anos a fazê-lo, a uma taxa de dois minutos por pessoa”.
Bispos católicos dizem que “comida não pode ser uma variável de ajustamento”
Na primeira declaração pública desde a tomada de posse de Milei, a Comissão Executiva da Conferência Episcopal da Argentina lançou avisos sérios face ao agravamento da crise alimentar no país, pedindo que se continue o apoio aos espaços comunitários que asseguram alimentação.
Num país em que “ninguém deveria passar fome já que é uma terra bendita de pão”, há “centenas de milhares de famílias que têm cada vez mais dificuldade em alimentar-se bem”. Um dos problemas é a inflação que desde há anos cresce de dia para dia e afeta fortemente o preço dos alimentos”, o que é sentido “claramente pela classe média trabalhadora, pelos reformados e aqueles que não veem crescer os seus salários” para além de “todo o universo da economia popular, onde praticamente se trabalha sem direitos” como “vendedores ambulantes, recicladores, feirantes, pequenos agricultores, ladrilheiros, costureiras, os que realizam diferentes tarefas de cuidado e serviço”.
Para além de críticas que podem atingir também o governo anterior, os bispos argentinos disparam especificamente para o novo poder, considerando que “a comida não pode ser uma variável de ajustamento”.
A declaração é vista igualmente como uma resposta às declarações de Sandra Pettovello, ministra de Capital Humano, de que o governo iria colocar de lado as organizações e movimentos sociais que prestam apoio alimentar as populações. Cita-se a carta que o Papa Francisco enviou aos movimentos sociais em 2020, na qual escrevia que “face a uma crise não são suficientes os paradigmas tecnocráticos, sejam estadocêntricos, sejam mercadocêntricos, é necessária a comunidade” e a experiência do tempo da pandemia que “nos ensinou o valor da resposta comunitária organizada”, durante a qual “se multiplicaram as cantinas nas nossas paróquias, nas Igrejas Evangélicas, nos movimentos populares, especialmente nas casas de vizinhos” quando “as grandes protagonistas foram as mulheres”.
Médias empresas dizem que janeiro foi “mês perdido”
A Confederação Argentina de Médias Empresas, CAME, publicou entretanto um relatório no qual indica que as vendas a retalho caíram 28,5% face ao ano passado e 6,4% entre dezembro e janeiro, fazendo deste um “mês perdido”, dado o clima de incerteza económica e a inflação. Por isso, os consumidores médios “priorizaram as necessidades mais urgentes para salvaguardar rendimentos”.
Os cortes são maiores na vendas das farmácias (-45%), um desempenho “péssimo” que faz parecer que “ninguém adoeceu”, e de alimentos e bebidas (-37,1%, -13,2% num mês), nomeadamente “de produtos básicos, como azeite, erva-mate e farinha”. O setor têxtil terá sido exceção, dadas as liquidações de verão, mas o “mau desempenho” alarga-se a todo o setor comercial “marcado por escassas transações e uma baixa afluência de clientes”.
Construtores civis contra Milei
Por sua vez, as 1.400 empresas que integram a Câmara Argentina de Construção, a mais poderosa organização patronal do setor, declararam-se em “estado de emergência” devido à política do Presidente da República que cortou o investimento em construção pública, deixando 3.500 projetos já aprovados por concluir e cancelando todos os concursos. Para além disso, os fundos para as regiões também foram cortados, o que implica também paralisações por essa via.
Outras queixas apresentadas são os atrasos nos pagamentos, a subida das taxas de juro e a inflação galopante que atinge igualmente os materiais de construção. A direção da organização nota que “até no mundo desenvolvido com tarifas altas, segurança jurídica e mercado de capitais, o investimento privado constitui apenas 15% do total que se investe em infraestrutura: 85% é feito pelo governo” sendo “obras que não têm nenhum interesse para o setor privado: escolas públicas, prisões, hospitais públicos, estradas com pouco trânsito”.
Os grandes patrões da construção civil afirmam que desta forma estão “iminentes” despedimentos em massa com 200.000 empregos em risco, num setor que emprega perto de 500.000. Algumas empresas estarão mesmo em situação “terminal” e os efeitos das medidas de Milei são taxados de “irreversíveis”.
A chamada Camarco, de acordo com o jornalista Raúl Dellatorre do Página 12, é dominada por um punhado de famílias tradicionalmente hegemónicas na construção civil como os Rocca (Techint), Macri (SOCMA), Pérez Companc (ex SADE), Roggio, Chediak, Weiss que têm “partilhado o governo e os cargos na câmara”. Apesar disto poder indicar “brechas no bloco dominante” que levou Milei à presidência, há que considerar a diversificação de negócios a partir da construção os levou a outras áreas como a produção de alimentos, de energia, transportes, recolha de lixo e tecnologia, sendo ainda latifundiários exportadores de soja e criadores de gado, pelo que “quando se fala de uma crise terminal do setor da construção (…) há que ter em conta que estes grupos empresariais não se afundarão com as suas empresas, como pode acontecer a muitos outros dos 30 mil [que compõem o resto do setor] que percam o contrato para asfaltar uma rua, construir uma escola ou ampliar um centro de saúde em alguma vila ou cidade do interior”, acrescenta o também economista. Ou seja, estas famílias estarão a retirar os frutos da governação atual por outras vias.
Ainda assim, é significativo que em entrevista, Gustavo Weiss, chefe da organização patronal, sublinhe que “a interação com o Governo é bárbara” e que “não há diálogo”.
Quem também se queixa dos cortes são as províncias. O mesmo jornal dá o exemplo de Gildo Insfrán, governador da Formosa, que considera a situação “muito grave” já que “por ordem do Presidente foram suspendidas as habitações, caminhos em construção e obras que estavam com financiamento já assinado com agências de crédito multimeios, ou seja internacionais”. Ele contabiliza por seu turno “3.200 obras em execução no país que agora se encontram totalmente paralisadas”, vincando que “o plano do governo nacional de que as obras públicas deviam ser feitas pelo setor privado já fracassou” já que “o setor da construção não vai vir investir num lugar onde não vai ter rentabilidade” e que estas ideias “fracassaram em diferentes países e até na Argentina durante o mandato de Mauricio Macri”.
Para além do efeito direto nas empresas e nas infraestruturas regionais, a paralisação das obras está também a ter efeito noutras empresas que dependem da sua cadeia económica.