Para evitar um knockout no Congresso, o governo de Javier Milei viu-se obrigado a retirar o “capítulo fiscal” da Lei Ómnibus, a ser debatida na terça-feira na Câmara de Deputados da Nação.
Ainda que tenham considerado esta decisão um pequeno triunfo, a Unión Trabajadores de la Economía Popular (UTEP) e a Unidad Piquetera, entre outras organizações, qualificaram o anúncio do ministro de Economia, Luis Caputo, “insuficiente”.
Na realidade, tudo o que supostamente Milei renuncia fazer agora poderá impor mais tarde. Mediante as “faculdades delegadas” previstas no seu projeto de lei, o executivo vê-se munido de “superpoderes” que lhe permitem legislar em matéria económica, financeira, fiscal, de segurança, defesa, tarifária, energética, sanitária, administrativa, de segurança social até 31 de dezembro de 2024, com a possibilidade de prorrogar por outro ano com a aprovação do Congresso.
Por esta mesma razão, e por todas as outras matérias que não foram expurgadas do diploma, e constituem um duro golpe para o povo argentino, Milei volta a ser confrontado com mobilizações esta semana.
Na terça-feira, a Unidad Piquetera, o Polo Operario, as assembleias de bairro, entre outros, realizarão uma marcha em frente ao Congresso da Nação. "Na terça-feira sejamos milhares no Congresso para repudiar a Lei Ómnibus. O plano de guerra do governo e seus cúmplices políticos derrotamo-lo com a mobilização popular", lê-se na convocatória da marcha.
Para quinta-feira, a UTEP e movimentos sociais que a integram agendaram iniciativas em supermercados e hipermercados de todo o país para reclamar alimentos para as cantinas populares.
“A mobilização [de 24 de janeiro] foi uma enorme demonstração de unidade e força. Devemos seguir por esse caminho para pôr em agenda os principais problemas que sofre o nosso povo, que é a fome", assinalou Johanna Duarte, da UTEP e Movimento Evita.
Javier Milei insiste que "não há plano B"
Milei parece, no entanto, ser avesso a toda a contestação. Em entrevista ao The Wall Street Journal, publicada este domingo, o chefe de Estado deixou uma nova mensagem de pressão aos governadores e deputados, afirmando que "não há plano B para fazer as coisas bem". Ao mesmo tempo, o presidente da Argentina reiterou a sua intenção de dolarizar a economia e privatizar as empresas públicas.
Milei festejou ainda a inflação de 25% em dezembro, que considera ser uma boa notícia, adiantando que o cenário poderá repetir-se em janeiro. Segundo defende, só está a faltar o investimento: "É verdadeiro que precisamos de investimentos, porque uma das coisas que sucede é que, quando fazes um ajuste fiscal, aumentas a poupança. Se essa poupança não tem uma contrapartida de investimento, aparece a queda da atividade económica, a queda do emprego e a queda dos salários reais", apontou.
Sobre o plano de privatizações de empresas públicas estratégicas para o país, o presidente disse que implementá-lo-á o mais rapidamente possível.
"Tudo o que possa privatizar, vamos privatizar”, garantiu.
ONU critica reforma de Javier Milei
A par da permanente contestação nas ruas, o governo do presidente Javier Milei enfrenta também criticas por parte da própria Organização de Nações Unidas (ONU), que repudia artigos do decreto de necessidade e urgência (DNU) e da lei ómnibus, entre os quais o protocolo anti-manifestações imposto pela ministra de Segurança, Patricia Bullrich.
Numa nota enviada aos líderes das bancadas na Câmara de Deputados, após a ausência de reposta por parte do governo ao seu pedido para intervir no debate dos deputados, o Alto Comissário das Nações Unidas para os Direitos Humanos (ACNUDH) adverte que um dos artigos do protocolo poderia vir a “legitimar execuções extrajudiciais”.
Esta tomada de posição tem como base a análise dos relatores da ONU sobre Direitos à Liberdade de Reunião Pacífica e de Associação, sobre Promoção e Proteção do Direito à Liberdade de Opinião e de Expressão e sobre a Situação de Pessoas Defensoras de Direitos Humanos. Os especialistas concluíram que artigos desse protocolo não são compatíveis "com padrões internacionais”, e aconselharam a ministra a não impor “restrições indevidas ao direito da liberdade de reunião pacífica”.
Criticando a criminalização de quem participa em protestos e dos seus organizadores, entre outras ilegalidades, os peritos assinalam que “o direito à reunião pacífica, a par de outros direitos conexos, constitui o fundamento mínimo de um sistema de governo participativo baseado na democracia, nos direitos humanos, no respeito da lei e no pluralismo”.
Os relatores da ONU lembram ainda a Bullrich que o Comentário Geral n.º 37, em que o Comité dos Direitos Humanos interpreta o conteúdo e o sentido das obrigações dos Estados Partes à luz do artigo do Pacto Internacional sobre os Direitos Civis e Políticos sobre direito de reunião pacífica, tem respaldo constitucional na Argentina, sendo que “a interrupção do tráfego não constitui violência e unicamente habilita as forças de segurança a dispersar os manifestantes caso exista ameaça iminente de violência grave”.
A ONU sustenta que a proposta do governo de Milei poderá consubstanciar um “fenómeno de criminalização do protesto social através do uso do direito penal”. E que “considerar toda a reunião como violenta ou criminosa é uma decisão contrária ao padrão internacional”.
Os especialistas advertem ainda Bullrich que expressões como “armas não letais” não deveriam ser utilizadas no protocolo, até porque, na realidade, a experiência mostra que esses dispositivos também podem matar se forem utilizados de maneira indevida.
Pena de morte no projeto de lei ómnibus
Conforme escreve a Página 12, no âmbito da reforma ao Código Penal, integrada no projeto de Lei Ómnibus, o governo de Javier Milei pretende legalizar, por via indireta, a pena de morte, que passa a ser aplicada de forma sumaríssima e extrajudicial por qualquer membro das forças de segurança.
Para tal, é proposta uma alteração ao princípio da proporcionalidade. Se, anteriormente, o agente policial que lesionasse ou, inclusive, matasse alguém tinha de demonstrar que o fez utilizando força proporcional e adequada à situação, o projeto de Lei Ómnibus vem determinar que “a proporcionalidade do meio utilizado deve ser sempre interpretada a favor de quem faz em cumprimento do seu dever ou no legítimo exercício do seu direito, autoridade ou cargo”. Isto significa que a entidade judicial que analisar um caso concreto “deverá favorecer com a não penalização o agente policial que eliminou a proporcionalidade devida, excedendo-se ou abusando das suas faculdades e causando danos - lesões ou morte - em consequência de seu excesso ou abuso”.
A confirmar-se esta alteração, a letra da lei irá contrariar a Constituição do país, bem como o Tribunal Interamericano de Direitos Humanos que assinala que “… todo o uso da força por agentes estatais deve obedecer aos princípios de proporcionalidade, necessidade e humanidade”.