Apesar da prometida repressão, dezenas de milhares de pessoas saíram às ruas com panelas e frigideiras nas principais cidades da Argentina para protestar contra o Decreto de Necessidade e Urgência (DNU), que revoga ou modifica mais de 300 normas que vão desregulamentar a economia do país e mergulhar a grande maioria da população na miséria.
O silêncio das ruas foi interrompido pelos cacerolazos e o mesmo grito de dezembro de 2001, quando a revolta social pôs fim ao governo de Fernando de la Rúa: "La patria no se vende!, Que se vayan todos!”.
E o facto é que, apesar de desde os primeiros momentos do seu mandato ter sido obrigado a desistir de duas das suas promessas mais absurdas - a dolarização e o encerramento do Banco Central - é evidente que o governo de Milei está a semear um desastre político, económico e social muito mais grave do que o enfrentado pelo seu antecessor Alberto Fernández, que herdou a crise provocada pelo anterior presidente, o neoliberal Mauricio Macri, agora parceiro político de Milei.
Trata-se da demolição do Estado e das instituições postas em prática a partir da presidência e, segundo Milei, aqueles que se opõem a ela sofrem da Síndrome de Estocolmo. Muitos deles acham que hoje não é necessário sentir nostalgia do kirchnerismo para perceber que Milei está a levar o país para o precipício.
A pátria não se vende?
Os protestos de rua, pacíficos embora realizados sob impressionante assédio policial, foram a primeira resposta ao projeto da ultra-direita que, nas costas do poder legislativo, impõe uma série de medidas que liquidam praticamente todos os elementos com significado social da legislação argentina, elimina direitos laborais, abre caminho para a privatização dos principais bens públicos, a começar pelos Yacimientos Petrolíferos Argentinos (YPF) e Aerolíneas Argentinas.
Também incentiva a conversão generalizada de organizações sem fins lucrativos em sociedades anónimas, incluindo a entrega de clubes de futebol, agora a fortaleza dos seus sócios, a grupos empresariais. Em suma, promove a mais pura lei da selva, que ameaça destruir a convivência, a paz e a governação na Argentina, a favor dos negócios das grandes empresas e dos fundos de investimento.
Os apoios à sua campanha estão a dar frutos, como o demonstra a aprovação da Starlink por Milei, que altera o panorama da Internet por satélite no país. "O fornecimento de instalações de sistemas de comunicação via satélite será gratuito", diz a DNU. A empresa do bilionário Elon Musk planeia começar a fornecer os seus serviços na Argentina nos próximos meses. O novo decreto facilitará a sua chegada.
A síndrome de Estocolmo
O presidente de extrema-direita disse que aqueles que se mobilizam contra as suas medidas sofrem da síndrome de Estocolmo e estão apaixonados pelo modelo que os empobrece. "Há pessoas que olham com nostalgia, amor e carinho para o comunismo", acrescentou. Esta síndrome envolve uma resposta mental e emocional em que um cativo (por exemplo, um refém) mostra aparente lealdade e até afeição pelo sequestrador.
Demasiada imaginação e manipulação dos argumentistas do discurso oficial: ninguém pode acreditar que a (péssima) administração de Alberto Fernández possa ser classificada como socialismo, fascismo ou comunismo.
A crise gravíssima... ainda não chegou
Esta é a versão radicalizada de toda uma série de ajustamentos liberais anteriores. Apenas a rapidez da sua aplicação é nova. Trata-se de programas duros, concetualmente baseados na "crise gravíssima" recebida pelos seus promotores e na fraqueza dos argumentos do peronismo para refutar estes diagnósticos ferozes, salienta Gabriel Fernández.
A novidade reside no facto de que, pela primeira vez, devido ao panorama internacional, a Argentina corre realmente o risco de se fragmentar sem a opção de reconstrução que costuma seguir-se a cada investida da direita. A implementação firme do que foi anunciado resultará na privatização e estrangeirização do Sul patagónico e dos seus recursos e empresas mais valiosos, no quadro de um Estado central ultra-fraco e sem capacidade de intervenção em qualquer área.
Corre-se assim o risco de criar satrapias ou mini-estados - todos agitando falsas bandeiras federais - um passo mais curto do que o esperado para a desintegração. É este o espírito das primeiras medidas anunciadas e, ao que parece, das que estão para vir, acrescenta o diretor da Radio Gráfica.
Milei procura uma rotura com a forma habitual de fazer as coisas, para continuar a fazê-las, mas partindo vidros. Donald Trump, Jair Bolsonaro e agora Javier Milei, nesta parte do mundo, são resultados bem sucedidos desta estratégia de vendas. Há que ter em conta que esta estratégia foi (e é) impulsionada por um progressismo, ainda mais tímido e hesitante do que a social-democracia, que se olha ao espelho e se vê como equilibrado e, por isso, nada faz de comprometedor.
Irracionalismo e política
Porque é que os povos suportaram durante séculos a exploração, a humilhação, a escravatura, ao ponto de as desejarem não só para os outros mas também para si próprios, perguntam-me. Não tenho resposta.
O governador de Buenos Aires, o peronista Axel Kicillof, afirmou que "à revelia da divisão de poderes, anuncia um decreto que, sem necessidade nem urgência, propõe privatizar tudo, desregulamentar tudo, destruir os direitos dos trabalhadores, acabar com sectores inteiros da produção, leiloar os clubes de futebol e o património dos argentinos".
Será que já se pode falar de uma pandemia de saúde mental coletiva como componente da dolorosa ascensão do irracionalismo na esfera política? Há quem fale de sete mil anos vividos entre as máscaras da ideologia e a sua tutela sobre as sociedades. Outros falam da aplicação do chamado pensamento disruptivo, uma estratégia que emergiu do mundo dos negócios com o objetivo de dar um novo impulso à competição capitalista.
"Para os ultradireitistas neoliberais, o mundo é plano: não há classes sociais, não há nações hegemónicas, não há impérios, não há parasitas opressores. Tudo o que acontece num país, sobretudo num país da periferia, é pura e simplesmente da responsabilidade de esquerdistas ressentidos", diz Jorge Majfud.
Os governos fazem a diferença, mas não decidem sozinhos o seu próprio contexto, como pode fazer um país capitalista no centro, um país imperial. Ou chamemos-lhe hegemónico, se a palavra império ferir suscetibilidades.
O Observatório do Direito à Cidade fez a primeira apresentação judicial contra o DNU, alegando que este é inconstitucional e constitui um exercício de poderes extraordinários equivalente à soma de todos os poderes públicos.
A ação, apoiada pela Central de Trabajadores Autónoma e pela Asociación Trabajadores del Estado, tem como objetivo obter uma providência cautelar que suspenda os efeitos do decreto, que ainda não entrou em vigor, e que declare definitivamente a inconstitucionalidade do texto publicado no Diário da República na quinta-feira.
Para além dos obstáculos que Milei poderá encontrar no parlamento para aprovar o pacote de cortes, o regulamento poderá também ser rejeitado pelos tribunais. Especialistas esclareceram que as mudanças devem ser feitas por leis aprovadas pelo Congresso e não por decretos.
A "experiência" de Milei preocupa toda a América Latina. Um editorial do diário mexicano La Jornada aponta que "a fobia desenfreada do Presidente argentino a tudo o que tem a ver com o interesse público, o bem comum e o sentido social, bem como o seu abuso sistemático de hipérboles, oximoros e mentiras, podem ser descritos como a síndrome de Milei, uma doença muito mais aguda e perigosa do que a simples demagogia".
Álvaro Verzi Rangel é sociólogo e analista internacional, co-diretor do Observatório da Comunicação e da Democracia e analista sénior do Centro Latino-Americano de Análise Estratégica (CLAE, www.estrategia.la). Artigo publicado no site do CLAE. Traduzido por Luís Branco para o Esquerda.net