Em todo o governo de Javier Milei, mas sobretudo na área económica, predominam os agentes do capital financeiro internacional (que tem a sua principal base de operações em Manhattan), misturados com empregados ou antigos empregados do grupo económico local Eurnekian (Corporación América), dirigido por Eduardo Eurnekian (1).
Capital financeiro internacional
O primeiro grupo, o dos capitais financeiros liderados pela BlackRock, gere a economia argentina com a nomeação do ministro da área, Luis "Toto" Caputo, que foi chefe do Money Desk da JP Morgan (onde os principais acionistas são a BlackRock e a Vanguard) e do Deutsche Bank. Caputo, quando era funcionário público, não declarou perante o Organismo de Luta contra a Corrupção (OA) que tinha participação em empresas offshore, como revelaram os chamados "Paradise Papers". (2)
Na sua apresentação no Congresso, em 2018, para dar explicações perante a Comissão Bicameral de Acompanhamento e Controlo da Gestão da Contratação e Pagamento da Dívida, tentou justificar a relação com uma rede de offshores que o liga à sociedade gestora Noctua e à empresa de consultoria Axis, em que aparece como "fundador", de que era "proprietário indireto" e "acionista indireto" e disse o mesmo de ações de outra empresa nas Ilhas Caimão.
Na sequência da revelação, foi acusado de vários crimes, incluindo omissão dolosa, negociações incompatíveis com o exercício de funções públicas, tráfico de influências, abuso de informação privilegiada, violação do dever de funcionário público e branqueamento de capitais.
O nomeado para Presidente do Banco Central da República Argentina, Santiago Bausili, foi sempre o número dois de Luis Caputo, tanto no JP Morgan como no Deustche Bank, bem como no governo Macri, etc. Santiago Bausili foi processado por "negociações incompatíveis com a função pública" por ter participado na contratação do Deustche Bank como intermediário na colocação de dívida pública, apesar de ter trabalhado nesse banco até dois dias antes de assumir a função estatal e de ter recebido ações da entidade até setembro de 2018 como remuneração pela sua reforma.
Caputo e MIlei
Além disso, como funcionário público (foi subsecretário das Finanças a partir de 11 de dezembro de 2015 e depois tornou-se secretário, substituindo o seu chefe Luis "Toto" Caputo, quando este último se tornou presidente do Banco Central), violou a lei sobre ética pública, porque deveria ter-se abstido de intervir em todos os assuntos que estavam ligados ao Deustche Bank, durante pelo menos três anos, diz a apresentação do procurador Federico Delgado ao pedir o impedimento do ex-funcionário, para o qual o juiz do caso, Sebastián Casanello, argumentou que "é claro, com clareza cristalina, que Bausili não poderia intervir em qualquer assunto relacionado ou ligado ao seu antigo empregador até setembro de 2021".
E concluiu: "Por outras palavras, todos os atos realizados pela parte nomeada durante esse período eram proibidos por lei". A justiça argentina, através das resoluções dos juízes Martín Irurzun e Eduardo Farah, revogou a acusação contra Santiago Bausili, que era defendido pelo advogado criminalista Matías Cúneo Libarona, irmão e parte do escritório de advocacia de Mariano Cúneo Libarona, ministro da Justiça de Javier Milei.
Caputo y Bausili, Anker Latinoamericana SA
Ambos (Caputo e Bausili) são sócios da empresa de consultoria Anker Latinoamérica S.A. que, juntamente com a BSD Grupo Asesor S.A., exploram o "Paseo Gigena", um terreno público de mais de 40.000 metros quadrados na Cidade de Buenos Aires, onde construirão escritórios, espaços comerciais e garagens com vista para o Roseiral de Palermo, o Hipódromo e o Campo de Pólo.
O terceiro homem da economia do capital financeiro internacional é Joaquín Cottani, que foi subsecretário de Finanças desde 1991, durante o governo de Domingo Cavallo. Trabalhou no Lehman Brothers, no Citi Bank, no Banco Mundial e foi diretor para a América Latina da S&P Global Ratings.
Os três devem mudar-se de Nova Iorque, onde vivem, para a Argentina, para serem os principais responsáveis económicos do país.
Grupo América
Do lado dos empregados ou ex-empregados do Grupo Eurnekian temos Nicolás Posse, que vai ser o Chefe de Gabinete do novo governo, que é o Diretor de projetos na Aeropuertos Argentina 2000 em licença, e foi o chefe direto de Milei no plano chamado Corredor Bioceánico Aconcagua, que consistia num comboio de alta tecnologia que ligaria o Atlântico e o Pacífico, incluindo um túnel de baixa altitude com 52 quilómetros de comprimento, que atravessaria a Cordilheira dos Andes.
Eurnekian e a sua Corporación América
Guillermo Francos, nomeado Ministro do Interior, que ocupou vários cargos de gestão no grupo Eurnekian, incluindo o de diretor da Aeropuertos Argentina 2000. Francos foi representante da Argentina no Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID), cargo para o qual foi nomeado pelo Presidente Alberto Fernández no início da sua administração em 2019 e ao qual renunciou em setembro deste ano para se juntar à equipa de Milei.
Mariano Cuneo Libarona
Mariano Cuneo Libarona, Ministro da Justiça, foi advogado da família Eurnekian durante 30 anos, defendendo o chefe do grupo no chamado "caso Cuadernos" (que investiga o pagamento de subornos de empreiteiros estatais a funcionários públicos para beneficiar da adjudicação de várias obras), no qual ele, como advogado de Eduardo Eurnekian, foi absolvido em 2022, juntamente com outros grandes empresários, pelo juiz federal Julián Ercolini.
Em 1997, o então juiz federal Norberto Oyarbide ordenou a detenção de Cuneo Libarona, que esteve preso durante 32 dias devido ao extravio de um vídeo que mostrava uma conversa entre Juan José Galeano, o primeiro juiz do processo AMIA, e Carlos Telleldín, o primeiro detido no processo, em que se acordava que testemunharia contra o polícia Ribelli em troca do pagamento de 400 mil dólares.
Guillermo Ferraro, KPGM
Guillermo Ferraro, Ministro da Infraestrutura, foi durante 13 anos Diretor da filial argentina da empresa de auditoria anglo-americana KPMG e, portanto, envolvido na assinatura das Memórias e Balanços da Vicentin SACIFI, que chegou à justiça argentina em processo ordenado pelo promotor da Unidade de Crimes Complexos e Econômicos de Rosário, Miguel Moreno.
Este último fez uma rusga aos escritórios da KPMG em outubro de 2022, no pressuposto de que, graças à participação da empresa de consultoria KPMG, "tornou-se efetivo o ardil " da Vicentin, que teria consistido na exibição de demonstrações contabilísticas e financeiras "que não correspondiam à realidade da empresa".
Ferraro, ao serviço da KPMG, concebeu o esquema financeiro do grupo Eurnekian no concurso para a construção do Corredor Bioceânico do Aconcágua e da central hidroelétrica de Chihuidos. Ambos os projetos estiveram congelados durante a última década devido à falta de financiamento internacional. É neste contexto que está a promover o sistema de participação público-privada nas obras públicas.
Finalmente, o inefável Rodolfo Barra, nomeado Procurador do Tesouro por Milei, foi nomeado Vice-Ministro das Obras Públicas em 1989 (o Ministro era Roberto Dromi e o Subsecretário da Reforma e Modernização Armando Guibert, mentores da Lei 23 696 sobre a Reforma do Estado). Em 18 de dezembro desse ano, depois de iniciado o processo de privatização da maioria das empresas públicas argentinas, foi nomeado Secretário do Interior.
Milei nomeou para a Procuradoria da Fazenda um antigo nazi: Rodolfo Barra - La Noticia Web
Durante os dois governos, foi o promotor da doutrina jurídica da "intangibilidade da remuneração do co-contratante privado", regra que reduzia a níveis mínimos o risco empresarial das empresas contratantes de obras públicas, e que foi apontada como responsável por casos retumbantes de enriquecimento de empreiteiros contratados pelo Estado. (3)
Em 1996, Barra foi nomeado presidente do Conselho de Administração do Organismo Regulador do Sistema Aeroportuário Nacional (ORSNA) e, em 1998 (sob a sua presidência), foi levada a cabo a privatização dos aeroportos, através de um processo de licitação que permitiu ao grupo económico liderado por Eduardo Eurnekian obter a concessão de 33 aeroportos do país, por 30 anos (1998/2028), através da empresa Aeropuertos Argentina 2000 S.A.
O relatório da Auditoria Geral da Nação, de junho de 2001, detectou graves irregularidades, quer no cumprimento dos compromissos assumidos pelo consórcio empresarial no contrato, quer no organismo de controlo (Orsna). A AA2000, que ganhou a concessão porque se tinha proposto pagar uma taxa de 171 milhões de dólares em duas prestações anuais, nunca cumpriu esse pagamento na totalidade. Em junho de 2001, a dívida ascendia a 104 milhões de dólares só para a taxa.
Eduardo Duhalde reduziu a taxa original de 171 milhões de dólares por ano para 80 milhões de dólares. Néstor Kirchner renegociou os contratos, dando ao Estado uma participação de 20% na AA2000, a Eurnekian manteve 51% e os restantes 29% foram cotados na Bolsa de Valores de Buenos Aires.
O presidente da Corporación América, Eduardo Eurnekian.
Em 2009, Eurnekian deu mais um passo em frente. Adquiriu 100% dos entrepostos fiscais dos aeroportos de Ezeiza, Aeroparque, Córdoba, Mendoza e Mar del Plata. A empresa Aeropuertos Argentina 2000: absorveu a Edcadassa (Empresa de Cargas Aéreas del Atlántico Sud SA), que nos anos 90, Domingo Cavallo denunciou como propriedade de Alfredo Yabrán (4).
Em plena pandemia de covid-19, em agosto de 2020, numa cerimónia na Casa Rosada presidida por Alberto Fernández e com a presença de Eduardo Eurnekian, presidente da Corporación América, Martín Eurnekian, diretor executivo da AA2000, e Daniel Ketchibachian, CEO da empresa, foi acordada a prorrogação da concessão até 2038. Oito anos antes do seu termo, a concessão foi prorrogada por mais 10 anos.
Em suma
Se a justiça argentina fosse independente, os principais responsáveis económicos nomeados por Milei não o poderiam ser por conivência com os agentes do poder.
No caso do capital financeiro internacional, porque está determinado a endividar o país para resgatar as reservas obrigatórias remuneradas (Passes Passivo, Leliq e Notaliq) (5) que ascendem a 24,2 biliões de pesos até 30 de novembro de 2023 (em pesos, mas à taxa de câmbio oficial de 378 dólares, representam o equivalente a cerca de 64 mil milhões de dólares) e, ao mesmo tempo, promovem uma forte desvalorização para liquidar esta dívida em pesos e reduzir o preço de todos os ativos em pesos, para comprar por metade o que vale o dobro.
Tanto mais que o Estado arrecada em pesos e a desvalorização torna mais onerosa a compra de dólares para pagar os juros e o início do vencimento do capital da renegociação da dívida privada de agosto de 2020 levada a cabo por Martin Guzman a partir do segundo semestre do próximo ano. Quando o Estado não puder pagar, será preciso recorrer às empresas públicas e aos principais recursos do país.
E, no caso do Grupo Eurnekian, os funcionários nomeados deveriam abster-se de quaisquer concursos e/ou participações público-privadas no futuro imediato, pelas mesmas razões que o honesto e íntegro procurador Federico Delgado afirmou no caso Bausili, com base na lei da ética pública, que deveriam abster-se de intervir em todos os assuntos que tivessem uma ligação por não menos de três anos.
Horacio Rovelli é Licenciado em Economia, Professor de Política Económica e Instituições Monetárias e Integração Financeira Regional na Faculdade de Ciências Económicas (UBA). Ex-Diretor Nacional de Programação Macroeconómica. Analista sénior associado ao Centro Latino-Americano de Análise Estratégica (CLAE). Artigo publicado no site do CLAE. Traduido por Luís Branco para o Esquerda.net.
Notas:
1 - Com a Aeropuertos Argentina 2000 SA, mantém o controlo da Servicios y Tecnología Aeroportuaria (99,3%) e, indiretamente, 50% da Paoletti América SA. Detém ainda 56,91% da Texelrio SA e 98,63% da Cargo & Logistics SA, através da qual exerce o controlo da Villalonga Furlong SA. Proprietário da Compañía General de Combustible e, como tal, sócio da Tecpetrol SA (Techint) na Transportadora Gas del Norte. Além disso, tal como a família Rocca (Techint), tem a sede da Corporación América Airports SA no Luxemburgo, o que lhe permite ter filiais na Arménia, Itália, Brasil, Uruguai, Peru e Equador. O grupo também desenvolve actividades agrícolas: tem 120.000 hectares no país, principalmente na Patagónia (onde tem vinhas e adegas de grande altitude) dedicados à pecuária e à agricultura. É também produtor de biodiesel, através da Unitec Bio. Etc. Eduardo e Martín Eurnekian aparecem na lista de contas não declaradas no Panamá e nas Bahamas (Documento de Trabalho FLACSO Nº 24 - ANO 2018).
2 - Os Paradise Papers são um conjunto de 13,4 milhões de documentos relativos a investimentos em paraísos fiscais, tornados públicos a 5 de novembro de 2017. Os documentos contêm os nomes de mais de 120 mil pessoas singulares e colectivas e foram obtidos pelo jornal alemão Süddeutsche Zeitung, que foi também o jornal que obteve anteriormente os Panama Papers em 2016. O Süddeutsche Zeitung entregou a informação ao Consórcio Internacional de Jornalistas de Investigação (ICIJ), que tem estado a investigar os documentos.
3 - “Robo para la corona; los frutos prohibidos del árbol de la corrupción”. Horacio Verbitsky – Ed.Planeta (1991)
4 - Aeropuertos y privatizaciones” Mario Mazzitelli – Argentina en Red – 27 de Agosto 2023
5 - Entre outras razões, porque a BlackRock tem uma forte participação nos bancos Santander, BBVa, Galicia, Macro e HSBC.