Argentina: o economista Murray Rothbard, mentor do candidato libertário Javier Milei

O pensador estadunidense do anarcocapitalismo é uma das referências do candidato que venceu as eleições presidenciais na Argentina. O seu pensamento defende a ideia de uma sociedade sem Estado governada pelo capitalismo laissez-faire. Artigo de Romaric Godin

26 de novembro 2023 - 18:35
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Milei defende um Estado forte no domínio da segurança e da justiça - foto cadtm

Javier Milei, o candidato libertário fez campanha com os seus quatro cães. Ele multiplicou os vídeos e entrevistas rodeado dos seus amigos de quatro patas, que são pouco mais do que animais domésticos. Além disso, no dia seguinte às eleições primárias de agosto, onde, para surpresa geral, ficou em primeiro lugar, o economista dedicou essa vitória aos “[seus] quatro filhos”.

Estes cães provêm da clonagem do antigo amigo doméstico de Javier Milei, Conan, que morreu em 2017 e foi considerado pelo candidato como “um dos [seus] amigos e confidentes mais próximos”. Por 50 mil dólares, Conan “deu vida” a cinco animais (um deles, Conan Júnior, já morreu), cujos nomes são interessantes para compreender o quadro ideológico em que evolui o homem que será o próximo presidente da Argentina.

Os quatro cães chamam-se Robert, Lucas, Milton e Murray, respectivamente. Cada um destes nomes refere-se a um dos economistas de referência de Javier Milei. Robert Lucas, que parece ser o mais importante, foi o primeiro a ganhar o prémio do Banco da Suécia (prémio frequentemente chamado de “Prémio Nobel da Economia”) em 1995, e morreu em 15 de maio deste ano.

Ele é mais conhecido por ter atualizado a economia neoclássica, a dos grandes equilíbrios de preços, e por ter formulado na década de 1970 a chamada teoria das “antecipações racionais”, apoiando a ideia da eficiência fundamental dos mercados na ausência de “fricções” causadas pelo Estado.

O terceiro animal de estimação de Milei é Milton, sem dúvida a referência mais conhecida do economista. Milton Friedman (1912-2006) é o fundador da escola monetarista, que dá prioridade à luta contra a inflação por meio do controle da massa monetária e da independência do Banco Central.

Por fim, o último cão tem um nome menos conhecido em França, mas que é uma referência central para Javier Milei quando ouvimos o seu discurso: Murray, para o economista americano Murray Rothbard (1926-1995), o pai do anarcocapitalismo e um dos pensadores mais influentes do libertarianismo.

Princípios libertários

O ponto comum entre estes três autores, que também apresentam diferenças notáveis entre si, é o ódio ao Estado, ou melhor, a ideia de que o Estado está na origem dos males da sociedade e da economia. Mas deste ponto de vista, quem tem o pensamento mais realizado é, sem dúvida, Murray Rothbard, que pretendeu construir uma verdadeira teoria filosófica, social e económica em dois textos: Por uma Nova Liberdade: O Manifesto Libertário ("Por uma Nova Liberdade: O Manifesto Libertário", https://www.wook.pt/ebook/o-manifesto-libertario-por-uma-nova-liberdade-murray-n-rothbard/21294092) e A Ética da Liberdade (publicado em 1982, https://books.google.pt/books/about/A_%C3%A9tica_da_liberdade.html?id=1OKdEAAAQBAJ&source=kp_cover&redir_esc=y ).

O ponto de partida do pensamento de Murray Rothbard é o que ele chama de "o axioma da não-agressão" e que ele resume assim no Manifesto Libertário: "Nenhum homem, nem qualquer grupo de homens, pode cometer agressão a uma pessoa ou à propriedade de alguém”.

Este princípio vai muito longe, pois supostamente determina todas as relações sociais numa sociedade libertária. O que o autor chama de “crime” é o não cumprimento deste axioma. Crime para o qual, segundo o autor, a escravidão e a tortura são práticas punitivas aceitáveis.

Obviamente, a parte mais importante deste axioma é a questão da propriedade, que coloca a agressão contra a propriedade ao mesmo nível da agressão contra uma pessoa. Apoiando-se na leitura de Locke (apresentada e criticada aqui pelo filósofo Pierre Crétois a propósito da sua obra La Part commune, Amsterdão, 2020), Murray Rothbard faz da propriedade um direito “ilimitado” e “natural”.

Tudo se baseia num individualismo radical que considera que a base de toda a atividade humana é individual. Se reconhece os benefícios da cooperação, esta só poderá ser voluntária e o resultado de uma escolha individual final. “Qualquer interferência nas escolhas e nos processos de aprendizagem dos homens é anti-humana, viola o direito natural das necessidades humanas”, afirma ele no Manifesto Libertário.

Contudo, para Rothbard, assim como para Locke, a propriedade é legitimada pela capacidade dos indivíduos de transformar os recursos através do seu trabalho físico e mental. A propriedade é o fruto desta transformação e, desta forma, é a busca do direito de “possuir-se”, já que todo o ato é, em última instância, individual.

Ao privar o indivíduo da sua propriedade, impedimo-lo de usufruir dos seus direitos naturais, ou seja, do resultado das suas escolhas individuais. Não existem, portanto, “direitos humanos separáveis dos direitos de propriedade”. E estes direitos implicam também o “direito de dar esses bens a quem quiser”, ou seja, de facto, a herança ou a venda incondicional dos seus bens.

Murray Rothbard justifica, portanto, a ideia de que a sociedade não existe. “É um absurdo, não existe realmente uma sociedade, mas apenas indivíduos que interagem.” Margaret Thatcher retomará mais tarde esta fórmula que se tornaria famosa. Mas Rothbard continua a lógica: se a sociedade não existe, então não há direitos da sociedade, nem interesses comuns de um grupo de pessoas determinados antecipadamente. O Estado é, portanto, ilegítimo.

É um absurdo, não existe realmente uma sociedade, mas apenas indivíduos que interagem. Murray Rothbard

“‘Nós’ não somos o governo e o governo não somos ‘nós’”, resume ele no Manifesto Libertário. O Estado é um simples conjunto de burocratas e grupos específicos que o controlam para viver dos impostos. Portanto, qualquer ação do Estado é um ataque direto contra os indivíduos e as suas propriedades. Em particular, o imposto nada mais é do que roubo. “O Estado é o supremo, eterno e mais bem organizado dos agressores contra as pessoas e a propriedade. Todos os Estados, em todos os lugares, democráticos, ditatoriais ou monárquicos”, conclui o pensador libertário.

Murray Rothbard vai então desenvolver a ideia de uma sociedade baseada exclusivamente na propriedade privada e governada pelo capitalismo laissez-faire. Porque no domínio económico como noutros lugares, é o Estado que está na origem das crises e dos maus funcionamentos do capitalismo, em particular através do recurso à criação monetária. Aqui, é a teoria do mestre de Rothbard, o economista austríaco Ludwig von Mises, que é retomada. O mercado, livre de qualquer interferência do Estado autoregula-se e permite uma distribuição justa dos recursos. “O que os governos podem fazer para ajudar os pobres? Desaparecer”, diz ele no Manifesto Libertário.

O Estado, fonte de todos os males

Em especial o Banco Central, considerado como o inimigo. Esta oposição é de princípio e opõe fortemente Murray Rothbard a Milton Friedman. O primeiro é a favor da abolição por princípio de qualquer banco central, a favor do que se chama de sistema bancário livre, ou seja, a liberdade dos bancos privados de emitirem as suas próprias moedas que estarão em concorrência no mercado. Os Estados Unidos e a Suíça viveram situações deste tipo no século XIX, o que levou inevitavelmente a regulamentações estatais e depois à criação de bancos centrais.

Por sua vez, Milton Friedman só defende a abolição do banco central em casos específicos, como o do Chile no início dos anos 1980, onde recomendou uma política de dolarização da economia (adoção do dólar como única moeda legal) acompanhada da abolição do banco central. A situação argentina permite, sem dúvida, reconciliar os dois pensadores e, aliás, os dois cães de Javier Milei, defende precisamente este último cenário. Mas as relações entre Murray e Milton nem sempre foram boas: Murray Rothbard detestava Milton Friedman e em 1971 escreveu um panfleto contra a sua influência, Milton Friedman Unraveled.

Para o resto da sociedade, Murray Rothbard descreve um mundo inteiramente privatizado e submetido aos mercados

Para o resto da sociedade, Murray Rothbard descreve um mundo inteiramente privatizado e submetido aos mercados. O libertário vê mesmo aí uma verdadeira política ecológica, uma vez que os indivíduos terão interesse em cuidar dos recursos das suas terras e, portanto, não terão interesse em poluí-las ou em deteriorá-las. As ruas também serão privadas e a sua segurança será assegurada por empresas pagas pelos proprietários. Em caso de litígio ou crime, será necessário recorrer a empresas de justiça privada em concorrência umas com as outras, o que às vezes se torna ubuesco na descrição do próprio Rothbard... Este último reduz-se até a tomar um modelo da justiça medieval privada.

o anarquismo de Rothbard distingue-se da tradição libertária pela persistência de dominações baseadas na propriedade e no dinheiro e pela completa mercantilização da humanidade

Em geral, o anarquismo de Rothbard distingue-se da tradição libertária pela persistência de dominações baseadas na propriedade e no dinheiro e pela completa mercantilização da humanidade. É uma falsa anarquia, pois há poderes detidos por uma minoria em permanente concorrência entre si. Além disso, os indivíduos só são livres na medida em que se submetem a uma força superior a eles próprios, a da mercadoria.

E, de facto, é um mundo que parece de uma grande violência, apesar do princípio cardinal da não agressão. Por uma razão simples e inteiramente ignorada pelo autor libertário: a sacralização da propriedade cria efeitos de dominação e concentração que nada têm a invejar à violência estatal. É também um mundo conservador no sentido em que os possuidores podem impor a sua própria vontade através do poder existente. Mas o pensamento de Rothbard é unilateral e simplista: o proprietário individual é um ser pacífico e razoável, o Estado é a fonte de todos os males.

Anarquismo de extrema direita

O anarcocapitalismo de Rothbard foi inicialmente uma revolta contra o conservadorismo. Durante muito tempo, o economista libertário conseguiu usar o seu discurso anti-establishment contra a direita estadunidense, que considera ter se convertido ao estatismo. Uma conversão que considera uma traição aos ideais da revolução americana e dos primeiros democratas jacksonianos da primeira metade do século XIX, a quem chama de “paleo-libertários”. Nos anos 70, publicou The Betrayal of the American Right e na década de 1980, atacou Ronald Reagan, considerado demasiado estatista.

Esta posição levou-o, na década de 1960, a aproximar-se de certos círculos de esquerda que centravam as suas críticas no Estado, em reacção às ditaduras soviética e maoísta. Encontraram-se então na denúncia da Guerra do Vietname e no alistamento da juventude. Rothbard acabou rompendo com esta esquerda, mas em 1973, O Manifesto Libertário fez uma crítica intransigente à guerra e ao recrutamento, comparada com o “assassinato em massa” e à “escravidão”. Ele também defende a liberdade nos costumes, em particular a liberdade sexual total e consensual, que não deixa de ter ressonância em grande parte da esquerda.

Murray Rothbard aproximou-se da direita mais radical, especialmente em duas questões centrais: a questão afro-americana e a do feminismo

Apesar destas posições, Murray Rothbard vai aproximar-se da direita mais radical, especialmente em duas questões centrais: a questão afro-americana e a do feminismo. Em ambos os casos, rejeitou qualquer legislação favorável aos negros e às mulheres, o que se chamava então de “acções afirmativas”, ou seja, quotas ou outras obrigações visando compensar a situação objectiva destes grupos.

Para Rothbard, estas leis são agressões à propriedade privada. Se um empregador não quiser contratar afro-americanos ou mulheres, ninguém poderá forçá-lo a fazê-lo. Se um locador se recusar a alugar a essas pessoas, ninguém poderá forçá-lo a fazê-lo. Esta posição de princípio esconde, na verdade, uma visão hierárquica das “raças” que é consistente com a sua rejeição absoluta do igualitarismo como “contra natura”.

Num texto de 1974, O Igualitarismo como revolta contra a natureza, ele colocava assim a fonte das desigualdades na genética. O mercado apenas tornou visíveis e “justas” estas desigualdades “naturais”. “A revolta igualitária contra a realidade biológica é apenas o substrato de uma revolta mais profunda contra a estrutura ontológica da própria realidade, precisamente contra a organização da natureza e contra o universo como tal”, resumiu ele.

Obviamente, desta justificação genética das desigualdades para o racismo aberto, há apenas um passo. Rothbard voluntariamente definiu-se como um “racialista” e preferia Malcolm X a Martin Luther King porque preferia a separação entre negros e brancos. Mas, esclareceu em 1993, não era a favor de um Estado negro porque, afirmou, teria exigido “assistência pública” dos Estados Unidos.

A visão de Rothbard é a de uma espécie de “racismo competitivo” onde o mercado restabelece a hierarquia “natural” entre as “raças”. E isto justifica a discriminação de facto. Ele pode, portanto, rejeitar a discriminação oficial de que foram vítimas os afro-americanos e defender “direitos iguais”, como no seu texto de 1963, A Revolução Negra, desde que não force os brancos a aceitarem a igualdade racial que ele contesta.

A visão de Rothbard é a de uma espécie de “racismo competitivo” onde o mercado restabelece a hierarquia “natural” entre as “raças”

Esta mesma visão inspira a sua profunda rejeição de qualquer forma de feminismo. E isto vai muito além da questão das quotas ou da legislação. Num texto publicado em 1996, “Origins of the Welfare State in America”, Murray Rothbard estima que foram as mulheres “ianques” e “judias” que, ao lutarem pelo direito ao voto feminino, acabaram por impor políticas estatistas. O próprio New Deal teria surgido sob pressão da esposa de Franklin Roosevelt, Eleanor Roosevelt, descrita como “talvez a nossa primeira primeira-dama bissexual”.

Rothbard vai, portanto, logicamente aproximar-se da extrema direita americana, associando-se a notórios revisionistas, assumindo, apesar das suas origens judaicas, posições abertamente antissemitas e defendendo publicamente o seu amigo David Duke, antigo Ku Klux Klan, neonazi e supremacista branco.

Com Rothbard, o libertarianismo toma claramente o seu lugar lógico na extrema direita, pois é um pensamento de desigualdade absoluta e de dominação de grupos considerados “superiores” sobre outros. Em registos diferentes, mas com a mesma lógica, Rothbard junta-se portanto às tendências de extrema-direita de Hayek ou Röpke.

Que influência em Javier Milei?

Se a influência de Murray Rothbard sobre Javier Milei parece ser a primeira fonte de inspiração do candidato argentino, ela é por vezes reinterpretada ou limitada, uma vez que o argentino defende um Estado forte no domínio da segurança e da justiça. Estaria então mais próximo do pensamento “minarquista” do Estado mínimo, defendido por exemplo por Robert Nozick (1938-2002) que criticou o anarcocapitalismo de Rothbard insistindo na possibilidade de o Estado manter um monopólio no domínio judicial. Mas tal como Rothbard, Javier Milei defende a liberdade de portar armas e usá-las para se defender, o que é uma forma de privatização da justiça.

Além disso, desde a primeira volta, o candidato tem sido mais discreto, para além da sua ambição de dolarização da economia, nos aspectos mais libertários do seu programa, para atrair os votos da direita tradicional, na concretização de objectivos de médio ou longo prazo.

Nisto, a sua posição não está tão longe da de Rothbard, que questionou questões de estratégia. Se sempre se opôs ao libertarianismo “utilitarista”, isto é por oportunista, reconheceu que era possível fazer compromissos sempre com o objectivo de abolição do Estado. É sem dúvida nesta perspectiva que é preciso compreender a manutenção destas funções regalianas no projecto de Milei e no seu relativo relaxamento entre as duas voltas das eleições.

Porque, de resto, o seu programa e as suas ações de campanha são inequívocos. As famosas cenas de Milei atacando os gastos públicos com uma serra elétrica ou derrubando todos os ministérios, exceto os do interior e da justiça, confirmam a influência desse pensamento na sua radicalidade.

Qualquer um que não hesite em proclamar que o seu “inimigo” é “o Estado” adopta prontamente a visão de Rothbard da “casta dos ladrões” que gere as instituições. Uma acusação que, na Argentina, soa bem a uma população empobrecida.

Todo o resto do seu programa é marcado pelas obsessões e princípios de Rothbard. O projecto social é o da mercantilização generalizada que justifica a prostituição ou a venda de órgãos, desde que tudo isto seja “voluntário”, sem, claro, questionar as condições desta vontade.

Às vezes isto pode dar conotações progressistas, como vimos com Murray Rothbard: Milei não tem nada contra a homossexualidade ou a escolha pessoal de género na medida em que não cabe ao Estado interferir nas escolhas pessoais. Mas, novamente, não se trata de defender e proteger estas “escolhas”. (...)

A sua oposição ao aborto, no entanto, é o oposto da posição de Rothbard no Manifesto Libertário. Certamente, este último acredita que o princípio da não agressão se aplica, em teoria, tanto ao respeito pela vida do feto como ao respeito pelo direito da mãe de dispor do seu corpo. Contudo, na medida em que o feto não seja uma “entidade separada”, este último direito prevalece. Mas aqui novamente, Rothbard se opõe a qualquer interferência estatal neste domínio, a qualquer financiamento de clínicas que realizem abortos e a qualquer coerção de médicos que se recusem a realizar abortos.

Em suma, como sempre, Rothbard é ambíguo. Javier Milei, afirma, defende o princípio da “proteção da vida” que está “no cerne do pensamento liberal”. Ele tem, contudo, outra interpretação do princípio da não agressão, mas, deste ponto de vista, parece mais coerente que o seu mentor. Principalmente porque adere a posições muito fortes entre os libertários.

Um último ponto merece ser sublinhado: o da estratégia. Em O Manifesto Libertário, Rothbard acredita que aqueles que mais podem ser seduzidos pelas suas ideias são os jovens e a pequena burguesia, os independentes ou os pequenos patrões, que seriam as primeiras vítimas do Estado. Estas classes foram as mais procuradas por Milei, principalmente a juventude em que alcançou resultados impressionantes.

Artigo de Romaric Godin, publicado em cadtm.org (comité para a abolição das dívidas ilegítimas) e, originalmente em mediapart.fr. Tradução de Carlos Santos para português de Portugal, para esquerda.net

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