Ganhou o ultradireitista Milei. Enfrentar desde já o plano motosserra

Lamentavelmente, consumou-se o triunfo de uma variante de extrema-direita muito perigosa, que reivindica a ditadura e postula um plano de motosserra contra o povo trabalhador. Quem alimentou semelhante monstro que nega o aquecimento global? Artigo de Juan Carlos Giordano.

29 de novembro 2023 - 11:27
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Enfrentar desde já o plano motosserra - Cartaz da Izquierda Socialista

Ganhou o ultradireitista Milei. Juntamente com a defensora de genocidas, Victoria Villaruel, serão o novo governo. Lamentavelmente, consumou-se o triunfo de uma variante de extrema-direita muito perigosa, que reivindica a ditadura e postula um plano de motosserra contra o povo trabalhador. Como é que em apenas dois anos de deputado chegou ao poder uma figura retrógrada, antioperariado e antidireitos? Quem alimentou semelhante monstro que nega o aquecimento global, defende a venda de órgãos, diz que foi predestinado a ser presidente pelas “forças do céu” e diz que há que voltar ao século XIX? Enquanto abordamos esta questão, apelamos às lutadoras e aos lutadores a que enfrentem o maior ajustamento que está para vir, as privatizações e os despedimentos, e uma maior submissão ao FMI.

A uma hora do encerramento das eleições do último domingo, 19 de novembro, ouviu-se no bunker peronista o que ninguém queria ouvir. “É irreversível.” A derrota do governo estava selada. Sergio Massa reconheceu-o antes da divulgação dos números oficiais, num palco com caras de velório.

O presságio de um suposto empate entre os candidatos na segunda volta esfumou-se como água entre os dedos. A diferença abismal de 11% a favor de Milei foi esmagadora (55,69% contra 44,3%, 14 milhões de votos contra 11 milhões, respetivamente). O governo só venceu na Província de Buenos Aires (por muito pouco, onde teria que fazer uma grande diferença se quisesse combatê-la), Formosa e Santiago del Estero. No restante perdeu por goleada.

Depois das PASO1, milhões votaram contra Milei nas eleições gerais de 22 de outubro e depois também na segunda volta, fazendo o mesmo votando em Sergio Massa com o nariz tapado (que nós da Izquierda Socialista apoiámos na segunda volta), mas a rejeição em massa acabou prevalecendo ... contra o governo.

o governo peronista cavou a sua própria sepultura desde que assinou o pacto com o FMI

Chegamos assim ao fim de um governo peronista cujos líderes pediram o voto em 2019 “para combater os males da direita” (o que conseguiram, derrotando Macri) e depois de quatro anos a única coisa que conseguem mostrar é 140% de inflação anual que devora salários e pensões, fazendo com que 60% das raparigas e rapazes sejam pobres e 80% das reformadas e dos reformados se afundem na miséria. Um governo que cavou a sua própria sepultura desde que assinou o pacto com o FMI, reconhecendo a dívida mafiosa de Macri, levando-nos a mais pagamentos de uma dívida usurária e fraudulenta e a uma grande dependência do Fundo Monetário.

Em todos estes anos, o peronismo demonstrou que longe de ser uma variante “nacional e popular”, foi o veículo para garantir os lucros de grandes empresários, bancos, multinacionais e usurários internacionais. Contando com o apoio da CGT2, da CTA3 e de toda a traidora burocracia sindical, que não levantou um dedo para apoiar qualquer luta, somando-se ao caldo de cultura para o crescimento de Milei. O desastre de Alberto Fernández, Cristina Kirchner e do candidato derrotado Sergio Massa foi o que permitiu que o cansaço popular fosse canalizado, lamentavelmente e erroneamente, para uma variante de extrema-direita ao melhor estilo Bolsonaro.

As razões do triunfo dos ultradireitistas Milei-Villarruel

A razão central do triunfo de Milei é que ele canalizou o cansaço popular diante da desesperante situação social de fome e pobreza, culpa deste governo e de todos os anteriores. Nestes 40 anos de “democracia”, que se está a cumprir, milhões de pessoas percebem que foram despojados do mínimo e indispensável para poder sobreviver. Predominou o voto por “uma mudança”, em vez do “medo” de Milei, para se livrar deste governo por todos os meios necessários, que também foi repudiado pelas mentiras eleitorais, os tremendos casos de corrupção (Insaurralde e outros) ou por não fazer nada contra a insegurança, entre outros males. Mas este cansaço, lamentavelmente, levou ao apoio a uma variante da ultradireita, através de um voto completamente equivocado, que será usado para ir contra a classe trabalhadora e outros sectores populares, mulheres e dissidentes e jovens.

Milei é a expressão nacional de outros fenómenos globais (como Bolsonaro, Trump, o pinochetista Kast no Chile, Meloni na Itália, Vox no Estado espanhol, entre outros) que surgiram como resultado da decadência capitalista e do desastre a que nos levaram os diferentes governos patronais, no caso argentino as diferentes variantes peronistas, radicais e PRO4. Um personagem retrógrado, reacionário, antidireitos, misógino e antioperário, que nós, da Esquerda Socialista e da FIT Unidade temos enfrentado durante todos estes anos, enquanto o peronismo lhe emprestou estatuto legal para concorrer às eleições e aos candidatos das suas listas.

O voto em Milei reflete a enorme confusão de amplos setores de trabalhadores, populares e da juventude, que votaram nele, acreditando que conseguirá tirá-los de semelhante desastre. Será exatamente o contrário. Milei vendeu mentirosamente que é “novo” (sob o slogan “contra a casta”, o mesmo que acabou concordando com Bullrich e Macri), com propostas como a dolarização, levando à ilusão de que isso acabaria com a inflação, o que significaria receber os mesmos salários agora em dólares, quando é exatamente o oposto.

Milei contou com o voto de toda a faixa social conservadora e reacionária. Mas também ganhou porque teve milhões que votaram, fartos do peronismo e do seu desastre económico e social

Evidentemente, Milei contou com o voto de toda a faixa social conservadora e reacionária, o que não é novo no país. Mas também ganhou porque teve milhões que votaram, fartos do peronismo e do seu desastre económico e social. Milei capitalizou setores que votaram nele, mas não concordam com as suas ideias, com a sua reivindicação da ditadura, ou que é preciso pagar para estudar ou curar-se, ou que é preciso liquidar com o aborto legal. Mas votaram a favor mesmo assim, equivocadamente, dizendo “pior não podemos estar”, que terão que tirar conclusões da realidade, tendo a experiência bruta com este governo.

A noite está a chegar? Já existe resistência contra o plano da motosserra

O impacto é enorme perante o triunfo daqueles que reivindicam o genocídio e vão tentar perdoar ou amnistiar militares condenados por crimes contra a humanidade, postulam um plano brutal de motosserra, querem reverter o aborto legal, dizem que não há problema em vender órgãos ou crianças, negam o aquecimento global e apresentam como modelo o Estado sionista de Israel, que está a provocar um verdadeiro genocídio contra o povo palestiniano. A pergunta é: a noite está a chegar?

Em polémica com os restantes partidos da Frente de Esquerda devido ao nosso voto crítico em Massa, na Esquerda Socialista salientamos que não consideramos que o triunfo de Milei signifique automaticamente um “golpe” que levaria a que sejam banidas no dia seguinte as liberdades democráticas, que o Congresso seja fechado ou que o direito à greve seja proibido. Ao mesmo tempo, salientamos que o facto de alguém que ganhou com um programa com matizes fascistas não signiofica que pode implementar tudo o que diz da noite para o dia, sem resistência operária e popular. Pelo contrário.

Bolsonaro e Trump, por exemplo, governaram durante quatro anos e foram repudiados

Em muitos países surgiram expressões e até governos deste tipo e não conseguiram levar a cabo as alterações profundas que postulavam, sendo enfrentados com grandes lutas e com o repúdio popular. Bolsonaro e Trump, por exemplo, governaram durante quatro anos e foram repudiados, o primeiro devido ao negacionismo da Covid 19, levando à morte de mais de 700 mil pessoas, entre outras barbaridades, e contra Trump, lembremos a histórica rebelião afrodescendente nos Estados Unidos do assassinato de George Floyd pela polícia branca e supremacista ianque.

Após o triunfo eleitoral, Milei anunciou o fecho da TV Pública, Télam5, Rádio Nacional, a privatização da YPF6, a redução de dezoito para oito ministérios, passando os da Saúde, Educação e Trabalho para um escalão inferior, o que levará a milhares de despedimentos , entre outras medidas antioperárias e antipopulares. Encorajado pelo apoio eleitoral, Milei falou no ato em frente ao seu bunker no Hotel Libertador sobre “alterações drásticas”, que “não há espaço para o gradualismo”, anunciando por sua vez “vamos ser implacáveis com aqueles que querem usar a força para defender os seus privilégios”, deixando claro que tentará agir com repressão diante dos protestos sociais. Isto é, ele tentará traduzir em realidade o seu plano motosserra. Mas o que está claro é que a situação terá a ver com a luta popular, prevendo-se choques sociais, face a um movimento operário e popular que não está derrotado e que vai lutar enfrentando uma selvageria semelhante, como já aconteceu com a rebelião popular em Jujuy, contra a reforma constitucional repressiva e saqueadora de Gerardo Morales7 e do PJ8.

Já estão a ser realizadas assembleias nos meios de comunicação públicos atacados por Milei para definir medidas de ação (...) Anteriormente, já tinham havido ações de diversos setores em defesa do Conicet,9 no momento em que Milei disse que iria fechá-lo, movimentos em defesa da Educação e da Universidade Pública ou o repúdio dos clubes de futebol de bairro, diante da ameaça de desaparecerem. Isto uniu-se à valentia política da chamada “micro militância”, em muitos casos espontânea, que nos metros, autocarros e praças públicas apelaram ao confronto com Milei, sem qualquer confiança em Massa.

A burocracia sindical da CGT, da CTA e dos restantes sindicatos debate atualmente como se adaptar ao novo governo. O burocrata Armando Cavalieri, do Comércio, já destacou que “é preciso dialogar” com Milei. Luis Barrionuevo já voltou a apoiar Milei. O mesmo estão a fazer os grandes patrões e o próprio peronismo, com Sergio Massa que felicitou Milei após o triunfo e disse que devemos acordar com políticas de Estado, o que foi recebido com desaprovação e um balde de água fria para quem vê em Milei uma clara ameaça às suas conquistas e direitos.

O facto de Milei não ter maioria no Congresso pode levá-lo a que implemente algumas das suas medidas por decreto. Veremos os ritmos. Diante desta situação, juntamente com o sindicalismo combativo e a vanguarda lutadora, da Izquierda Socialista e da FIT Unidad denunciamos estes dirigentes burocráticos e exigimos-lhes que abandonem a cumplicidade com o governo e as associações patronais e convocamos assembleias e plenários de delegados para preparar medidas de luta para enfrentar o ajuste antioperário e antipopular de Milei, com o apoio dos direitistas Patricia Bullrich e Macri.

Há que fortalecer a Frente de Esquerda

Um novo capítulo abriu-se no país com o triunfo de Milei. Da Esquerda Socialista na Frente de Unidade de Esquerda unimo-nos ao repúdio eleitoral contra Milei com um voto crítico em Massa, apelando a fazê-lo com o nariz tapado, juntando-nos a milhões que lutaram para impedir o triunfo de um ultradireitista sem dar apoio político ao governo. (...)

Apelamos às trabalhadoras e aos trabalhadores, às combativas organizações sociais e de desempregados, ao movimento estudantil, ao movimento de mulheres e à juventude, para enfrentarem em unidade o maior ajustamento, saque e subjugação que Milei e Villarruel postulam. (...)


Artigo de Juan Carlos Giordano, deputado nacional eleito pela Esquerda Socialista/FIT Unidad, publicado em Izquierda Socialista. Tradução de Carlos Santos para esquerda.net

Notas da tradução:

1 PASO - Primárias Abertas, Simultâneas e Obrigatórias – eleições primárias em que todos candidatos têm de concorrer e para passarem à fase seguinte têm de obter mais de 1,5% - este ano tiveram lugar em 13 de agosto e Milei foi o mais votado

2 Confederação Geral do Trabalho da Argentina

3 CTA – Central de Trabalhadores e Trabalhadoras da Argentina

4 PRO (Proposta Republicana), Partido de direita fundado por Mauricio Macri e, atualmente, presidido por Patricia Bullrich

5 Télam – Agência nacional de notícias da Argentina

6 YPF – Empresa de exploração de petróleo e gás da Argentina

7 Gerardo Morales é o atual governador da província de Jujuy

8 PJ – Partido Justicialista (peronista)

9 Conicet – Conselho Nacional de Investigação Científica e Técnica

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