Argentina: os panelaços resistem à motosserra

21 de dezembro 2023 - 19:15

Milei, o recém-empossado presidente de extrema-direita da Argentina, anunciou um plano de desregulamentação económica radical. Em protesto, espontaneamente começaram a soar as panelas por todo o país. Isto apesar das ameaças governamentais contra os manifestantes.

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Foto de Juan Ignacio Roncoroni/EPA/Lusa.

Depois de um primeiro pacote de medidas de austeridade, anunciado a 12 de dezembro e que levou à desvalorização em mais de 50% da moeda nacional e à redução dos apoios aos transportes e energia, Javier Milei, o recém-empossado presidente de extrema-direita da Argentina, voltou à carga desta vez com o fulcro do seu programa económico.

Num discurso ao país em que se apresentou rodeado de todo o governo, apresentou as ideias por detrás do Decreto de Necessidade e Urgência que implica a revisão ou revogação de mais de 300 leis. Apenas explicou cerca de 30 delas e sem entrar em qualquer detalhe sobre o que se passará daqui para a frente nos setores que pretende desregular.

Nelas se inclui a privatização de todas as empresas públicas, o fim da lei das rendas “para que o mercado imobiliário volte a funcionar bem e para que o arrendamento não seja uma odisseia”, o corte das atuais leis laborais “para facilitar o processo de criação de empregos autênticos”, a reforma do sistema médico privado.

No setor do trabalho pretende mudar o sistema de indemnizações em caso de despedimento, aumentar o período probatório dos trabalhadores até oito meses, acrescentar bloqueios ou ocupações como causa de despedimento por justa causa, restringir a possibilidade de greves aumentando o número de atividades consideradas “transcendentais” as quais não podem paralisar em mais de 50%.

Anulou ainda “lei de abastecimento” que servia para travar movimentos especulativos sobre bens essenciais em situações excecionais “para que o Estado nunca mais atente contra o direito de propriedade dos indivíduos” e a “lei das prateleiras “para que o Estado deixe de meter-se nas decisões dos comerciantes argentinos”. Esta última estabelecia uma série de regras na exposição de produtos alimentares, bebidas, de higiene pessoal e de limpeza da casa com o objetivo de dar acesso “a mais produtos regionais ou artesanais das micro, pequenas e médias empresas e a mais produtos de agricultura familiar, camponesa e indígena, da economia popular e de cooperativas”, destacando produtos com menor preço, limitando o espaço ocupado pelos grandes grupos económicos e impondo diversificação na exposição de produtos. Também acabará a “lei da compra nacional” porque “apenas beneficia determinados atores do poder”. Esta dava preferência nas compras de bens e serviços de entidades públicas a empresas argentinas.

Anunciou a liberalização de setores como o vitivinícola, o turismo, as farmácias, as minas e a internet e alterou a lei sobre os clubes de futebol para abrir caminho à sua transformação em sociedades anónimas.

Ao lado de vários colaboradores do ex-presidente Mauricio Macri, fustigou “a casta”, atacou “os políticos que se ocuparam de expandir o poder do Estado em detrimento dos argentinos de bem”, enquanto apresentava como novidade absoluta um programa económico que vários dos oposicionistas julgam comparável à ultra-liberalização promovida pelo ministro José Alfredo Martínez de Hoz durante a ditadura militar e que outros afirmam seguir o desastroso plano do ex-presidente Carlos Menem que Milei apresentou como “o melhor presidente da história”.

Disse que o país vive “a pior crise da nossa história” e culpou o “coletivismo”, que teria sido segundo ele a ideia dominante ao longo de décadas no país, “uma forma de pensamento que dilui o indivíduo em favor do poder do Estado, para justificar um “plano de estabilização de choque”.

Panelaço contra a motosserra

A jornada já tinha sido de protesto. Dez dias depois da sua tomada de posse e com sondagens a darem já uma queda de popularidade, a primeira grande manifestação contra o presidente tinha enchido as ruas de Buenos Aires confluindo até à Praça de Maio. Fora convocada pelo movimento social Unidad Piquetera e pelos partidos da Frente de Esquerda.

Mas depois destes anúncios a revolta rebentou espontaneamente com o bater de panelas a ouvir-se por todas as grandes cidades do país poucos minutos depois do fim da intervenção televisionada de Milei e a arrastar-se noite dentro. Ao mesmo tempo, um grupo de manifestantes cercou o Congresso com a mesma banda sonora. Na Argentina, exatamente 22 anos depois da repressão policial que vitimou 39 pessoas e deixou 500 outras feridas, voltou a ouvir-se a velha palavra de ordem “que se vayan todos” que acabou por expulsar Fernando de la Rúa do poder.

O liberalismo autoritário e as ameaças de Milei aos manifestantes

Estas manifestações irromperam apesar do clima de ameaça dos últimos dias contra quem ousasse protestar. O governo tinha prometido criar uma lista de organizações e pessoas que desafiem o poder e ameaçou quem corte vias de perder o direito a benefícios sociais.

Durante a manifestação da tarde, a ministra da Segurança, a ex-candidata presidencial, ex-ministra do Trabalho e da Segurança Social do governo de Fernando de la Rua e ex-ministra da Segurança de Mauricio Macri, Patricia Bullrich, deu ordens para que as cinco forças de segurança federais estivessem nas ruas, fotografando e filmando manifestantes para cumprir as ameaças já feitas, ostentando-se a presença tanto de efetivos como de canhões de água e realizando-se buscas a mais de 700 veículos de transporte coletivo que transportavam pessoas para a manifestação.

Para além disso, no ecrã gigante da estação da Constituição fez-se passar a ameaça governamental “quem cobra não recebe”, junto com outra que dizia “se te estão a obrigar (a cortar vias) denuncia-o anonimamente para o 134”. O mesmo se lia em cartazes, pelos altifalantes das estações de comboio e na aplicação oficial Mi Argentina.

Ao longo do percurso, a presença policial esforçava-se por impedir que os manifestantes saíssem do passeio para a estrada. Em nome da “liberdade de circulação”, as forças policiais ocupavam assim a estrada impedindo elas próprias que os carros passassem.

O poder por detrás de Milei

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No final, Bulrich vangloriou-se: “é evidente que a maior parte das pessoas decidiu não comparecer ao corte de estradas ou piquete que estava previsto”. Confirmou a perseguição aos manifestantes declarando que se está a elaborar “uma lista de pessoas, organizações, veículos e beneficiários de planos sociais com base em centenas de imagens” para depois os denunciar por possíveis ilícitos. E acrescentou que a linha telefónica disponibilizada terá recebido “10 mil denúncias” contra dirigentes de movimentos sociais que estariam a obrigar as pessoas a ir a manifestações.

O próprio Milei seguiu a manifestação com a sua irmã, que nomeou “secretária geral da Presidência”, no Departamento Central da Polícia, visionando as imagens policiais. Aí, ficou a colocar “gostos” no Twitter a mensagens de apoio à violência contra manifestantes. Uma delas aconselhava-o a “para a próxima contempla a possibilidade de utilizar napalm”, noutra lia-se “saquem o lança-chamas”.

DNU ou o nome de um golpe? O ultraliberalismo contra a divisão de poderes

A forma escolhida para apresentar o pacote de medidas de desregulamentação da economia não foi escolhida ao acaso. Na lei argentina, um DNU implica a entrada em vigor desde a sua publicação no “Boletim Oficial” e só pode ser anulado com uma votação em igual sentido nas duas câmaras do Congresso.

A oposição denuncia a extrapolação de competências que pertenceriam aos parlamentares. O ex-presidente Alberto Fernández, por exemplo, considerou o sucedido “um facto de extrema gravidade institucional nunca vista, avaliando que “a República está em risco”.

O Partido Justicialista considerou o pacote “nulo e inconstitucional”. E a coligação União pela Pátria, de centro-esquerda que este integra, diz que concede ao executivo “faculdades extraordinárias, proibidas pelo artigo 29 da Constituição, correspondendo a um “brutal avassalamento” do Congresso, sendo de “nulidade insanável” e quem o aprove “infames traidores à Pátria. “O nosso bloco vai defender a democracia, a divisão de poderes e a República” porque “a Argentina não precisa de um Fujimori”.

Pelo lado da União Cívica Radical, social-liberal, a palavra de ordem é “cautela” face à “incerteza” do momento defendendo-se que “há consciência da gravidade da situação” mas que “o Governo necessita poder tomar as primeiras medidas”.

Num parlamento muito diversificado, a maior parte dos outros grupos parlamentares mantêm para já o silêncio, alegando não conhecer muitas das propostas a serem apresentadas perante o Congresso.

Juristas da oposição citados pelo Página 12 sustentam também a posição de que o DNU é ilegal. Vilma Ibarra, que foi secretária do governo da Frente de Todos, explica que estes dispositivos apenas são autorizados constitucionalmente em casos de urgência. “Se um DNU anula 300 leis e modifica outras tantas, o Poder Executivo Nacional arroga-se faculdades legislativas vedadas”, o que seria um incumprimento do princípio da divisão de poderes. Constitucionalmente, o presidente não pode legislar, explica-se, e os DNU não podem ser sobre matéria penal, tributária, eleitoral ou sobre o regime de partidos.

O mesmo declararam o constitucionalista Andrés Gil Domínguez, que disse tratar-se da “extinção do Congresso como coração da democracia”, e o ex-presidente da ordem dos advogados da Capital Federal, Jorge Rizzo, que vinca que “um decreto não pode anular nem modificar leis” a não ser em caso de “necessidade e urgência”. Como isto não se verifica, trata-se de “um escândalo”.

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