A Justiça argentina deu razão a um processo levantado pela central sindical CGT. Todo o capítulo sobre questões laborais do chamado Decreto de Necessidade e Urgência, introduzido a 30 de dezembro pelo presidente da República de extrema-direita Javier Milei. foi anulado pela Câmara Nacional de Recursos do Trabalho por ser considerado inconstitucional.
A sentença da segunda instância amplia assim a decisão que já tinha sido decretada em primeira instância onde se tinha aceite “parcialmente” a queixa da CGT, tendo sido então anulados apenas seis dos 45 artigos em causa. Isto porque se alegava que a CGT não tinha “legitimidade ativa” para questionar os artigos que diziam respeito a “direitos individuais”, apenas poderia fazê-lo quanto aos “direitos coletivos”.
De acordo com a agência noticiosa pública argentina Télam, o tribunal de segunda instância decidiu que “não há indícios de que o alegado constitua motivo de ‘urgência’ para evitar a devida intervenção do Poder Legislativo no que diz respeito à legislação substantiva”. Por outras palavras, como já tinha sido referido por grande parte da oposição, Milei usou o DNU como expediente para contornar o processo legislativo normal. E a este, dizem os juízes, só se pode recorrer “em condições de rigorosa excecionalidade”. O presidente recém-eleito não quis convocar as câmaras do Congresso para votar as leis, apesar de estarem “em funções e com faculdades para examinar o conteúdo das reformas”. A questão da separação de poderes é assim vincada no texto que justifica a tomada de posição.
O DNU foi o primeiro grande passo do ataque ao Estado Social que Milei argentino encabeça. Ele próprio defendeu que a sua finalidade era “começar o processo de desregulação económica de que a Argentina tanto necessita para começar a crescer”. Incluía no total mais de 300 medidas. Entre elas, no campo laboral, a alteração dos julgamentos sobre Direito do trabalho, o aumento dos períodos probatórios dos contratos, a redução das licenças de maternidade, a diminuição para as empresas de contribuições para a Segurança Social e de multas por registos incorretos ou em falta de trabalhadores.
Lei ómnibus no Congresso
Milei sofre assim uma derrota em vésperas da maratona de mais de 35 horas de debate na câmara baixa do Congresso da “Lei ómnibus”, denominada oficialmente como “Lei de Bases e Pontos de Partida para a Liberdade dos Argentinos”, um segundo pacote de desregulamentação total apresentado por Milei logo a seguir ao DNU.
O presidente argentino tem tentado negociar com os grupos parlamentares a sua aprovação numa versão bem menos ambiciosa do que o inicialmente anunciado: das 664 medidas apresentadas apenas cerca de 300 estarão ao momento confirmadas para ir a votos. O capítulo fiscal, por exemplo, um dos mais contestados, acabou por ser separado do resto e será votado noutra ocasião para não inviabilizar a aprovação de outras medidas.
O partido de Milei, o La Libertad Avanza, não teria força parlamentar suficiente para por si só fazer vingar a lei e até para ter quórum para a lei ir a votos teve de negociar. Para já tem confirmados, de acordo com o jornal Página 12, os votos dos grupos parlamentares Propuesta Republicana, Unión Cívica Radical e Hacemos Coalición Federal, os suficientes para conseguir uma aprovação na generalidade. Apesar deo conteúdo final desse texto ser ainda desconhecido.
Algumas propostas mais poderão ser chumbadas, como a que cede amplos poderes extraordinários ao Governo em matérias que vão desde o plano económico ao penal, que deixariam de ter de ser avaliadas parlamentarmente. Também algumas privatizações, as disposições que criminalizam o protesto social, a secção sobre hidrocarbonetos e as leis ambientais estão ainda em vias de negociações. O executivo, que tinha anunciado com pompa a privatização total, terá já recuado na intenção de privatizar a petrolífera YPF e passado a propor uma privatização apenas parcial de outras três empresas estratégicas nacionais: a Arsat, a Nucleoeléctrica e o Banco Nación. Sobre a perseguição das manifestações, o partido de Milei disse estar disposto a eliminar o artigo que definia manifestação como qualquer ajuntamento de mais de 30 pessoas na via pública.
Protestos em frente ao Congresso durante o debate
Enquanto o debate decorre, em frente ao Congresso o clima é de contestação e promete-se uma “vigília de necessidade e urgência” durante toda a sessão. Concentração e vigília juntarão elementos de vários movimentos sociais, de sindicatos, a organizações estudantis, a assembleias de bairro, de luta pelos direitos humanos entre outras. À esquerda, Polo Obrero e FIT, Frente de Esquerda, também marcarão presença “para recusar a Lei Ómnibus, a cumplicidade da oposição e todo o plano do governo de Milei e companhia”, afirmam.
Numa convocatória à parte, a Asociación Trabajadores del Estado também se concentrará da parte da tarde afirmando que não “esta lei não admite nenhuma outra possibilidade que a sua recusa”, apelando o seu secretário geral Rodolfo Aguiar, segundo ainda o Página 12, a uma investigação sobre as “graves irregularidades” que marcaram “todo o processo”.
“No Conicet não sobra ninguém!”
Nesta terça-feira, a luta tinha sido protagonizada pelos trabalhadores do Conicet, o Conselho Nacional de Investigações Científicas e Técnicas, que estiveram em greve e fizeram plenários e manifestações por todo o país sob o lema “no Conicet não sobra ninguém!”.
Uma nova leva de despedimentos está a “esvaziar” a entidade que coordena a investigação no país e que conta com 11.000 investigadores, 12.000 bolseiros, 3.000 técnicos. Desta feita, foram 50 trabalhadores administrativos, aumentando para 160 os que já foram despedidos desde a chegada ao poder de Milei.
Em várias cidades, palavras de ordem como “o conhecimento não é uma mercadoria”, “investigar é trabalhar”, “ciência pública é soberania”, “mais ciência é mais liberdade” e “não aos cortes na ciência e tecnologia” fizeram-se ouvir. Dizem que a continuidade do organismo está em causa face à espiral inflacionária que Milei acentuou.