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Conflito no Sudão: “Uma batalha de vida ou morte”

Em entrevista, Gilbert Achcar explica que seria simplista representar o conflito no Sudão como uma guerra por procuração e como este se conjuga com as esperanças de democracia na região.
Gilbert Achcar. Foto @KentBSIS.
Gilbert Achcar. Foto @KentBSIS.

Quando os combates entre as Forças Armadas Sudanesas (FAS) e as Forças de Suporte Rápido (FSR) continuam, Gilbert Achcar, um observador próximo dos desafios políticos e militares que se atravessam no mundo árabe há mais de uma década, reflete sobre uma batalha que crê que era inevitável dada a natureza dual do poder militar no Sudão.

Professor de Relações Internacionais na SOAS, Escola de Estudos Orientais e Africanos da Universidade de Londres, Achcar apresentou ao Al-Ahram Weekly os melhores e piores cenários para um conflito desencadeado “devido ao falhanço das duas forças militares em entrar em acordo sobre o novo quadro negociado através mediação internacional entre o governo militar do Sudão e a Coligação Liberdade e Mudança”.

O acordo deveria ter sido assinado na primeira semana de abril, quando Abdel-Fattah Al-Burhan, líder das FAS queria “uma rápida inclusão da FSR sob comando das FAS”. Ele “queria acabar com o estatuto das FSR enquanto força paralela ao exército enquanto Dagalo [líder das FSR] não estava disposto a deixar que as tropas ficassem sob nenhum comando do exército.

É uma situação clássica de conflito inevitável entre dois poderes armados que estão no mesmo território: mais tarde ou mais cedo, um dos dois irá tentar subjugar o outro”, diz Achcar.

Estabelecidas pelo ex-presidente do Sudão afastado do poder, Omar Al-Bashir, as FSR foram construídas como uma força armada autónoma, paralela ao exército regular. Isto era conveniente para Al-Bashir que pretendia jogar com um poder contra o outro para proteger o seu poder pessoal e usar as FSR nas missões em que o exército não podia estar envolvido.

Dagalo é originalmente o líder de uma força paramilitar que foi lançada para a política por Al-Bashir durante a guerra do Darfur. “Assim, essencialmente, Dagalo devia tudo a Al-Bashir, mas isto não o impediu de se virar contra ele quando sentiu que o tempo de Al-Bashir tinha acabado”. O derrube de Al-Bashir foi o momento em que Dagalo começou a visar um papel político muito maior, propulsionado pelo papel decisivo das FSR na cooperação com as FAS para o afastar, acresentou.

Al-Burhan não era cego face à ambição de Dagalo, acredita Achcar. Estava apenas à espera do momento certo para o subjugar. Esse momento, argumenta, surgiu “depois do golpe de 25 de outubro [de 2021] quando Dagalo se distanciou das FAS e declarou que o golpe tinha sido um falhanço.”

Em outubro de 2021, Al-Burhan pensou que a cisão que tinha ocorrido dentro da Coligação Liberdade e Mudança lhe permitiria avançar com sucesso para a eliminação do acordo de partilha de poderes entre civis e militares que tinha existido desde 2019 e reestabelecer o poder militar sem limites. “Contudo, as coisas não correram da maneira que Al-Burhan desejava devido a uma vigorosa oposição nas ruas e pressão económica internacional, principalmente ocidental.

Foi forçado a voltar à mesa das negociações com a Coligação Liberdade e Mudança que tinha afastado do governo e, sob pressão da mediação internacional, aceitou um novo acordo que, na realidade, é mais limitador para os militares do que o de 2019”, afirmou.

“Esta foi verdadeiramente uma manifestação clara do falhanço do seu golpe”. Al-Burhan convenceu-se que precisava de subjugar as FSR de forma a conseguir manobrar no novo jogo político que se estava a produzir. As FAS tinham de melhorar as suas hipóteses de manter o controlo do poder político e, com ele, do seu império económico no Sudão e isto requeria acabar com a divisão nas forças armadas do país.

Já não era possível para as FAS continuarem a trabalhar com umas FSR autónomas, diz Achcar. “Apesar de tanto Al-Burhan quanto Dagalo terem sido moldados pelo mesmo regime político de Al-Bashir, tornaram-se rivais desde a queda do ditador. O poder político é baseado no monopólio da força e não dualidades sustentáveis durante muito tempo neste aspeto”, acrescentou.

Al-Burhan tolerou a coexistência com as FSR enquanto estas trabalhavam no mesmo sentido do que as FAS contrapondo-se à pressão da oposição para um governo civil, explica Achcar. “Mas isso está agora irremediavelmente terminado. É por isso que é errado acreditar que os dois lados possam ser reconciliados. É agora uma batalha de vida ou de morte entre eles.”

Esta é uma situação muito preocupante, defende Achcar. Se a batalha acabar amanhã sem que nenhuma das partes consiga uma vitória decisiva, isto implicaria uma divisão do Sudão em áreas separadas controladas pelas FAS e pelas FSR.

Um acordo político renovado entre ambas é, acrescenta, muito improvável. “Seria preciso que Dagalo aceitasse a integração das FSR nas FAS. Hoje, isto para estar quase fora de questão a não ser que alguma força regional consiga comprar o consenso de Dagalo para que ele saía de cena”.

Guerra Civil

De acordo com Achcar, o conflito poderia transformar-se numa guerra civil prolongada ou congelar-se numa divisão do país sob o domínio dos dois poderes rivais. “É por isso que há tanta preocupação sobre os desenvolvimentos no Sudão, especialmente num país que partilha um passado e uma fronteira com ele como é o caso do Egito e um país que tem a desestabilização regional como é o caso do Reino Saudita”, afirma.

Contudo, Achcar argumenta que a representação do presente conflito no Sudão como uma guerra por procuração entre potências regionais é simplista e reducionista. “É verdade que os atores regionais influentes têm as suas preferências entre as duas forças que lutam pelo controlo do Sudão.” Mas é difícil pensar que alguma destas potências teria desejado esta guerra que pode transformar-se num pântano com transbordos regionais potencialmente perigosos.

“O Egito parece assumir uma posição neutral” no conflito apesar da sua relação próxima com Al-Burhan, defende Achcar. E acrescenta que seria também difícil pensar que os Emirados Árabes Unidos assumissem o risco de se envolverem abertamente na guerra “apesar da sua bem conhecida relação com Dagalo e da sua vontade de jogar o seu próprio jogo contra os sauditas, como fizeram no Iémen”, porque ninguém sabe como este conflito poderia terminar.

A complexidade da situação no Sudão não é limitada à rivalidade entre as FAS e o FSR, nota Achcar. As forças políticas civil que constituíram a oposição política a Al-Bashir estão também envolvidas na divisão. Separaram-se muito cedo, lembra, quando uma maioria da Coligação Liberdade e Mudança optou por um compromisso político com os militares em 2019, enquanto os restantes, junto com os Comités de Resistência e a maioria da Associação de Profissionais do Sudão, rejeitou esse acordo. Com o golpe de 25 de outubro, provou-se que aqueles que acreditavam que as FAS respeitariam o compromisso de entregar o poder aos civis em condições democráticas. Porém, a pressão internacional para um acordo renovado pesava tanto nos militares como na oposição civil, continua. Aqueles que Al-Burhan tinha afastado em 2021 reentraram nas negociações com as FAS, levando ao recente Acordo Quadro, que foi de novo rejeitado pelas forças radicais. “Estas não estavam convencidas sobre a cooperação com as FAS em 2019 e certamente não iriam mudar de ideias depois do golpe de 2021”, explica.

Com o presente conflito armado, as esperanças para a democracia no Sudão criadas pela Revolução Gloriosa (como ali é chamada) que começaram em dezembro de 2018 ficam em causa, defende Achcar. Ele explica que se as FAS vencerem a batalha, poder-se-á seguir um controlo militar prolongado sobre o Estado que esmagaria as perspetivas de democracia. Por outro lado, se as FSR conseguirem manter posições, a divisão do país entre os dois beligerantes também asfixiaria as perspetivas democráticas.

O melhor dos cenários seria se a batalha enfraquecesse os dois beligerantes e levasse ao enfraquecimento do poder militar no seu conjunto, que a maior parte da população sudanesa os detestasse pelo caos que tinham criado e que o movimento popular liderado pelos Comités de Resistência conseguisse mobilizar o povo para pôr fim à ditadura militar e instituir a democracia no Sudão.

“Sejamos francos, as forças armadas são o obstáculo crucial a qualquer projeto revolucionário, seja no Sudão, seja em qualquer outro ponto da região”, afirma. Este, pensa, foi o tema negligenciado pelas forças políticas de todos os países durante a Primavera Árabe, tanto na sua primeira quanto na sua segunda fase. Para serem bem sucedidas, precisavam ganhar os corações e as mentes do exército como aconteceu em todos os casos de mudanças radicais através de levantamentos na história, diz. Situações de guerra, especialmente em casos de derrota, poderiam facilitar este cenário. Que a presente batalha no Sudão possa levar a um resultado deste tipo permanece por ver, contudo. Um fim do atual conflito que sufoca as esperanças de democracia no Sudão é um perigo que não pode ser subestimado, afirma Achcar. Depois dos acontecimentos de 2021 na Tunísia, um tal fim, acrescenta, poderia suprimir o último espaço democrático alcançado pelas duas vagas revolucionárias sucessivas da Primavera Árabe em 2011 e 2019.

Ainda assim, sublinha, mesmo com o fracasso da possibilidade de democracia no Sudão hoje, seria errado presumir que o potencial revolucionário, seja no Sudão ou em qualquer outro lugar nos países da Primavera Árabe, ficaria sufocado. “Passaram apenas 12 anos desde a primeira onda de choque da Primavera Árabe. É ainda muito cedo pela bitola dos processos revolucionários de longo prazo”, afirmou.

As mudanças políticas, e também militares, no mundo árabe têm as suas dinâmicas próprias. “É por isso que é errado desenhar paralelos entre as revoluções democráticas na Europa de Leste [nos finais de 1980 e princípios de 1990] e a Primavera Árabe”, diz.

“Na Europa do Leste, havia um governo burocrático, Estados dirigidos por burocratas com privilégios relativamente limitados. Mas no Médio Oriente estamos a falar de grupos com imensos interesses instalados que olham para os Estados como as suas propriedades privadas e que estão dispostos a manter-se no poder e ficar com os seus imensos privilégios por todos os meios necessários. São duas situações muito diferentes”, acrescenta.

Achcar está preocupado com a possibilidade de derrota dos sonhos revolucionários de democracia no Sudão. Também com o recuo mais vasto da democracia na região árabe que se manifesta, entre outros sinais, na reintegração em curso da Síria de Bashar Al-Assad na Liga Árabe e na repressão presente da oposição política na Tunísia. Porém, insiste que é uma fase temporária de recuo numa sucessão continuada de ciclos revolucionários. De acordo com Achcar, “os levantamentos árabes foram provocados por problemas estruturais centrais, políticos, sociais e económicos. A incapacidade flagrante de resolver qualquer um destes problemas significa que é apenas uma questão de tempo até que o vulcão volte a entrar em erupção, de alguma forma, algures”.


Entrevista de Dina Ezzat, publicada a 27 de abril, no Ahram Online. Traduzida por Carlos Carujo para o Esquerda.net.

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