Os Países Baixos têm uma longa história de regulação de rendas e intervenção pública no setor da habitação, que influencia as atuais políticas públicas e permite ter um maior controlo sobre o aumento de preços. A combinação de diferentes leis sobre habitação explicam a forma como o país utiliza a regulação de rendas para combater a crise de habitação.
A Woningwet (Lei da Habitação) de 1901 estabeleceu as bases da habitação pública e procurou melhorar a qualidade das habitações em particular, sobretudo nas áreas urbanas. No pós-Segunda Guerra Mundial, o esforço e investimento em habitação social permitiu criar um mercado mais equilibrado que o português. Ao mesmo tempo, regulações na construção da habitação viradas para a criação de habitação a preços acessíveis facilitaram o acesso à habitação.
Em 1970 foi criada a Hurrwet (Lei das Rendas), que regulou fortemente o mercado de arrendamento e introduziu medidas de controlo de rendas, incluindo um sistema de determinação de preços de renda justos com base em vários fatores, incluindo a qualidade e dimensão do imóvel. A Woonruimteverdelingwet (Lei de Atribuição de Habitação), em 2001, criou o sistema de pontos que avalia as casas e determina o valor das rendas da habitação social, para assegurar que os inquilinos recebem casas com base no rendimento.
Mas foi também no virar do milénio que avançou a liberalização da habitação, fazendo recuar o controlo de rendas, que se manteve apenas para a habitação social e de mais baixo custo. Em abril de 2024, face ao agravamento das carências habitacionais, a expansão da regulação de rendas voltou a ser discutida e votada, sendo aprovada com os votos da esquerda, dos democratas-cristãos, do Partido Socialista neerlandês, dos verdes e até de alguns liberais e de um partido da extrema-direita.
Mas como é que funciona? O arrendamento de habitação estava dividido em dois setores, o social (e regulado) e o liberalizado (e desregulado). A 1 de julho de 2024, a lei do arrendamento acessível entrou em efeito, dividindo o arrendamento em três setores. O setor social, o setor intermédio, e o setor liberalizado. Essa divisão criou dois novos tetos às rendas, o teto social e o teto intermédio.
Para definir em que setor está cada imóvel, existe um sistema de pontos que considera as dimensões, o número de divisões, as comodidades e a sua qualidade, a eficiência energética e o valor oficial de um imóvel. Se o imóvel tiver uma classificação acima dos 186 pontos, ou seja, se for habitação de luxo, é considerada como parte do mercado liberalizado, onde os senhorios podem definir os próprios preços.
No entanto, a maioria das habitações (as estimativas são de 90%), pertencem agora ao mercado de habitação regulado. Se uma propriedade for avaliada com menos de 144 pontos, está no setor social e o teto à renda é de 880 euros, se estiver avaliada entre 144 e 186 pontos, está no setor intermédio o teto às rendas é de 1.157 euros.
O aumento destes tetos é limitado por lei, sendo que o aumento máximo é indexado à inflação + 1%. Mas, se os aumentos salariais foram inferiores à inflação, então o aumento máximo é indexado aos aumentos salariais + 1%. No caso do setor social, o senhorio tem a possibilidade de aumentar as rendas com base nos rendimentos, no caso de os rendimentos do agregado familiar serem médios ou altos. No entanto, o mesmo mecanismo permite que as rendas tenham de descer no caso de perdas de rendimento do agregado familiar.
Para além da limitação das rendas, é necessário que haja mecanismos funcionais de fiscalização, proteção de inquilinos e denúncia para fazer cumprir essa legislação. Por isso, os Países Baixos têm uma Comissão de Arrendamento (Huurcommissie, que é traduzida pelo site oficial do governo para ‘Tribunal das Rendas’).
Os inquilinos que paguem mais pelas rendas do que aquilo que está estipulado pelos tetos às rendas podem envolver essa Comissão para que fiscalize a habitação e o contrato. Os inquilinos são aconselhados a tentar negociar primeiro com os senhorios, depois a pedir uma avaliação formal. Se se confirmar que há uma renda abusiva, devem contactar a Comissão de Arrendamento, que tentará mediar a situação e obrigar a que a renda seja controlada. No caso de o abuso continuar, os inquilinos devem contactar as autoridades municipais, que desde 1 de janeiro de 2025 têm poder para multar os senhorios que não cumpram as regras.
Frente a frente
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Mas, como acontece com questões laborais, os contratos de arrendamento a termo fixo promovem formas de contornar essa fiscalização. Ou seja, se um inquilino envolver a Comissão a fiscalizar o valor do arrendamento, o senhorio pode apenas esperar que o contrato termine e substituir o inquilino.
Por essa razão, a lei do arrendamento acessível, que expandiu os tetos às rendas à maioria das habitações, também pôs em efeito uma obrigatoriedade de contratos ‘permanentes’ ou por tempo indeterminado. O website do Governo neerlandês torna-o claro: “Se arrenda um imóvel, deve oferecer aos inquilinos um contrato de arrendamento permanente. Apenas em situações específicas pode dar aos inquilinos um contrato temporário”.
Nessas exceções incluem-se o caso do estudantes deslocados, o trabalho ou estadia temporária, os casos de emergência social, jovens até aos 27 anos que assumem contratos de cuidadores falecidos, em caso de separação familiar, e algumas exceções mais específicas.
Nos contratos por tempo indeterminado, “o senhorio não pode apenas cancelar o arrendamento da sua propriedade. Só o pode fazer com um bom motivo”. E há também apenas um conjunto de situações em que a cessação do contrato é admissível: se o inquilino estiver com várias rendas em atraso, se o inquilino causa distúrbios e problemas ao proprietário, se o proprietário quer vender a sua propriedade ou se precisa da própria casa para viver, e mais algumas exceções mais particulares. Essa proteção aos inquilinos permite que os mecanismos de fiscalização do mercado funcionem melhor, porque a precariedade habitacional é menor.
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Por último, o Estado disponibiliza apoios às rendas para os inquilinos e agregados familiares que não tenham rendimentos muito elevados. A grande diferença em relação aos apoios em vigor em Portugal é que o teto às rendas garante que os apoios não são comidos pelo preço das rendas. Ou seja, que o preço das rendas não sobe devido à garantia de apoios, e que os apoios servem realmente para garantir mais rendimento às famílias.
A combinação de contratos sem termo, mecanismos de fiscalização fortes e capazes, tetos às rendas e apoios é o que permite que haja uma política pública integrada com impacto no mercado de habitação e que permita às pessoas conseguirem arrendar uma casa.
Problemas e soluções
Tudo isso não significa que o modelo de rendas controladas dos Países Baixos não tenha problemas e arestas por limar. O coletivo pelo direito à habitação Bond Precaire Woonvormen (traduz-se sensivelmente para Coletivo Habitação Precária), aponta várias falhas técnicas no modelo que impedem que este funcione na sua capacidade plena e que permitem que o mercado continue a ter um peso forte nos preços do arrendamento.
A fiscalização, por exemplo, nem sempre funciona como deveria. Isso significa que, em vários casos, apesar de haver muitas rendas acima do limite máximo, não há capacidade de resposta por parte do Tribunal de Rendas. O coletivo sublinha que “os inquilinos que iniciam os processos de redução de renda são sistematicamente intimidados” e “são pouco protegidos”.
Redobrar a proteção aos inquilinos e apostar fortemente na fiscalização, quer dos contratos informais e ilegais, quer dos legais e das suas condições de habitabilidade, é ainda uma necessidade no país. O facto de as inspeções formais serem mediadas entre senhorios e inquilinos, e pedidas a empresas privadas, também deverá dificultar o avanço do processo de fiscalização.
Outro problema está relacionado com o facto de a nova construção estar a ser direcionada ao mercado liberalizado, e portanto de luxo. “A nova construção é deixada nas mãos de investidores predatórios, especuladores imobiliários e do mercado, o que significa que o que constroem é muito caro”, diz o coletivo.
A resposta a esse problema poderá ser encontrada, por exemplo, na proposta do Bloco de Esquerda para que 25% de cada nova construção seja obrigatoriamente dirigida a habitação acessível, de modo a que uma parte de todas as novas construções entrem no mercado regulado. A criação de mais habitação pública também é uma necessidade na maior parte dos países europeus, e mais uma possível solução.
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O Bond Precaire Woonvormen sublinha ainda que a indexação dos aumentos legais das rendas à inflação e aos rendimentos dos contratos coletivos de trabalho (adicionando +1%), significa que o aumento de rendimentos será sempre direcionado para as rendas. Essa formulação implica que o modelo, apesar de travar o aumento estratosférico das rendas, impede quem trabalha de ter mais rendimento disponível. Esse problema pode ser resolvido com uma alteração à formulação do aumento anual das rendas, anexando esse aumento abaixo dos aumentos de rendimento e da inflação.
Os problemas do modelo de tetos às rendas têm soluções de política pública, até porque o modelo já foi e já está a ser experimentado. Para além disso, o teto às rendas não pode ser visto como uma medida isolada, está integrado numa resposta multidimensional que inclui fiscalização, habitação pública, apoios extraordinários à renda e proteção aos inquilinos.