O Governo iraniano ficou numa situação difícil desde a Operação Dilúvio de al-Aqsa. Negou convictamente qualquer conhecimento prévio do ataque, mas estendeu o seu apoio político ao Hamas e à Jihad Islâmica. Em coordenação com o seu aliado mais próximo, o Hezbollah libanês, esforçou-se por alcançar um equilíbrio delicado: confrontar os israelitas no Norte para desviar recursos e material para uma frente secundária, sem provocar uma guerra mais vasta que envolvesse a região. Por outro lado, têm procurado manter o seu empenhamento na causa da Palestina e na solidariedade pan-islâmica. No entanto, isto convive mal com os constrangimentos práticos do sistema interestatal, a razão de Estado e a busca de uma “paciência estratégica” - manter o conflito à distância e para além das suas próprias fronteiras territoriais numa região altamente instável e imperialmente infiltrada. O pêndulo oscila entre estas duas tendências, mas a última é a mais importante para a República Islâmica.
O modus operandi de Netanyahu tem sido atiçar a República Islâmica para a retaliação, permitindo-lhe depois pintá-la como um pária global e uma grave ameaça à “civilização ocidental”, enquanto Israel continua o seu ataque genocida a Gaza. O Estado israelita pode também estar a calcular que só a coberto de uma conflagração regional total poderá completar a sua campanha em curso de limpeza étnica de Gaza e, em menor escala, da Cisjordânia. É claro que a liderança iraniana está perfeitamente ciente da estratégia de Israel de afastar a pressão para parar a guerra em Gaza - e agora no Líbano - desviando atenções para o Irão e tentando atraí-lo para uma guerra regional mais vasta. Desde o início, Teerão também compreendeu que, nas palavras de Ali Larijani, antigo presidente do parlamento e atual membro do Conselho de Discernimento, em geral considerado um pragmático, “não estamos a lidar apenas com Israel. O centro de comando e controlo está nas mãos dos EUA”.
A 1 de abril de 2024, a força aérea israelita atacou o complexo da embaixada iraniana em Damasco, matando 16 pessoas, incluindo vários comandantes iranianos de alto nível. O Irão retaliou com a "Operação Promessa Verdadeira I", a 13 de abril, lançando mísseis de cruzeiro, drones de ataque e um pequeno número de mísseis balísticos. Tal como muitos observaram na altura, a resposta iraniana tinha sido preparada com bastante antecedência, baseando-se em tecnologia e armamento ultrapassados. Esta demonstração de força foi uma tentativa de reafirmar linhas vermelhas claras: a sua mensagem era que o Irão não queria uma nova escalada, mas estava disposto a lançar um ataque direto se Israel continuasse os seus ataques ostensivos. Muitos dos projécteis foram abatidos, embora alguns tenham atingido a base aérea de Nevatim. No entanto, os impactos diretos não eram o objetivo. A esperança do Irão era restaurar um equilíbrio de dissuasão. Na sequência dos ataques, a administração Biden apressou-se a declarar que os EUA não participariam em qualquer retaliação israelita planeada: “Conseguiram uma vitória. Aceita a vitória”, instou Netanyahu. Uma semana mais tarde, Israel montou uma operação dirigida contra o sistema de radar S-300 do Irão, fornecido pela Rússia, em Isfahan. A dimensão dos danos foi muito disputada, mas Teerão considerou que não justificava um contra-ataque. Os dois adversários regionais pareciam ter recuado da beira do abismo.
O alívio não durou muito tempo. A 28 de junho, o chefe da força aérea israelita anunciou que, com o Hamas quase neutralizado, as Forças de Defesa de Israel (FDI) estavam a preparar-se para enfrentar o Hezbollah. A 30 de julho, no dia da tomada de posse de Masoud Pezeshkian como novo presidente do Irão, Israel lançou um ataque aéreo que matou Fuad Shukr, membro fundador do Hezbollah e principal comandante do seu braço armado. Seguiu-se, no dia seguinte, o assassinato do chefe do gabinete político do Hamas, Ismail Haniyeh, no coração de Teerão, poucas horas depois de ter assistido à tomada de posse de Pezeshkian. Assassinar um hóspede tão importante, sob os cuidados do Estado, tinha como objetivo humilhar os dirigentes de Teerão. O governo de Netanyahu parece ter tido dois outros objetivos em mente: fazer descarrilar as negociações para um cessar-fogo com o Hamas e impedir qualquer boa vontade que a nova administração de Pezeshkian pudesse angariar junto dos países europeus, pressionando Teerão. Uma das principais promessas da campanha eleitoral de Pezeshkian foi a de fazer tudo o que estivesse ao seu alcance para conseguir um alívio das sanções. Qualquer resposta iraniana digna desse nome tornaria quase impossível o necessário diálogo diplomático. De acordo com o próprio Pezeshkian, foi também dito ao Irão que estava iminente um cessar-fogo com o Hamas, mais uma razão para “exercer contenção”.
O governo de Netanyahu, porém, tinha os seus próprios planos. A 17 e 18 de setembro, os devastadores ataques da Mossad aos pagers e walkie-talkies (que deslumbraram inúmeros jornalistas ocidentais) tiveram como alvo as altas patentes do Hezbollah, com um enorme custo em vidas civis. Este último ataque culminou com o assassinato de Sayyid Hassan Nasrallah, em 27 de setembro, o mais importante aliado e parceiro do Irão. Para o matar, os israelitas dispararam 80 bombas pesadas de fabrico americano, destruindo vários complexos de apartamentos e matando trezentos civis. De notar que, dias antes da sua morte, Nasrallah tinha concordado com um cessar-fogo de 21 dias. O brigadeiro-general Abbas Nilforoushan, um dos principais comandantes da Força Quds do Irão, também foi morto no ataque. Este facto representa um rude golpe para o Hezbollah e para o “Eixo da Resistência” em geral.
É evidente que Netanyahu esperava “partir a espinha” ao Hezbollah de uma vez por todas. No entanto, este desejo revelou-se ilusório: o comando operacional do Hezbollah reagrupou-se rapidamente, infligindo uma pesada série de baixas às FDI, o que fez com que a tão apregoada incursão terrestre israelita fosse interrompida. Na sequência deste revés, os militares israelitas recorreram a uma das suas táticas já testadas e comprovadas, lançando uma campanha de bombardeamento indiscriminado (com F-35 fornecidos pelos EUA) contra os bairros densamente povoados de Beirute.
Foi no meio deste turbilhão que as forças armadas iranianas lançaram mais de 180 mísseis balísticos contra Israel, a 1 de outubro, atingindo duas importantes bases aéreas: a base aérea de Nevatim, no deserto do Negev, e a base aérea de Tel Nof, na região central de Israel, bem como o quartel-general da Mossad em Glilot, um subúrbio de Telavive. Ao contrário da Operação "Promessa Verdadeira I", a sequela incluiu os mísseis hipersónicos Fatah-1, mais avançados, e não havia dúvidas de que os alvos tinham sido atingidos. Os peritos em armamento contaram 33 crateras de impacto só em Nevatim. A reação foi mista. Netanyahu, visivelmente abalado, jurou vingança. Biden procurou minimizar os danos, insistindo que os ataques tinham sido “derrotados e ineficazes”, enquanto o conselheiro de segurança nacional dos EUA, Jake Sullivan, prometeu que haveria “consequências graves”. Mais tarde, Biden deu crédito à possibilidade de um ataque israelita apoiado pelos EUA às refinarias de petróleo do Irão.
Entretanto, o ex-primeiro-ministro israelita Naftali Bennett procurou ressuscitar o espetro da “mudança de regime” e a criação imperial de um “Novo Médio Oriente”, em declarações histriónicas insistindo que agora era o momento de “destruir o programa nuclear do Irão, as suas instalações centrais de energia e paralisar totalmente este regime terrorista”. Trump, falando num comício de campanha na Carolina do Norte, comentou com a habitual displicência que Israel deveria “premir o botão nuclear primeiro e preocupar-se com o resto depois”. Apesar de Biden se ter manifestado publicamente contra um tal ataque, os resmungos de Trump podem ser lidos como um sinal a Netanyahu para impor um facto consumado a um presidente fraco que reafirma recorrentemente o seu compromisso inabalável com o sionismo. Um ataque total às instalações nucleares iranianas, mesmo que os EUA assumissem a liderança e essencialmente o executassem, faria, na melhor das hipóteses, o programa recuar um par de anos; levaria também o Irão a retirar-se finalmente do Tratado de Não Proliferação de Armas Nucleares.
Na passada sexta-feira, Khamenei proferiu o seu primeiro sermão na mesquita Grand Mosalla, em Teerão, desde o assassinato do Major-General Qasem Soleimani pela administração Trump, em janeiro de 2020. Perante uma enorme multidão e um vasto leque da elite política do país, reiterou o firme compromisso do Irão para com os seus aliados no “Eixo da Resistência” e que o ataque do Irão foi uma resposta direta aos assassinatos de Haniyeh e Nasrallah. A sua decisão de passar do persa para o árabe e de se dirigir diretamente ao público árabe em toda a região é prova da elevada consideração que tinha por Nasrallah pessoalmente. Foi um ato de diplomacia pública para assegurar aos aliados de Teerão que não tinham sido abandonados e que a República Islâmica continuava firme na sua oposição a Israel e aos seus poderosos apoiantes. Menos comentada foi a insistência de Khamenei em que o direito internacional dava ao Irão e aos seus aliados o direito à auto-defesa e que o Irão “não se atrasaria, nem [agiria] com pressa”. Como de costume, o Ayatollah tentou encontrar um equilíbrio entre desafio e cálculo, insistindo que os próximos passos da República Islâmica seriam cuidadosamente considerados e calibrados. Dadas as significativas vulnerabilidades económicas e políticas na frente interna, não há dúvida de que a liderança do Irão e o novo governo de Pezeshkian prefeririam pôr termo a esta última escalada. Mas eles sabem que uma nova guerra regional pode já ter começado e que não há nenhum “parceiro para a paz”.
Eskandar Sadeghi-Boroujerdi é professor de História do Médio Oriente na Universidade de York. Artigo publicado no blogue Sidecar. Traduzido por Luís Branco para o Esquerda.net