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Aplicações de rastreio de contacto: não há provas que ajudem a travar a Covid

A investigadora em ciências computacionais Allison Gardner rastreia neste artigo alguns problemas das aplicações como a StayAway Covid.
Aplicação de rastreio da Covid-19. Foto de markus119/Flickr.
Aplicação de rastreio da Covid-19. Foto de markus119/Flickr.

Durante a primeira onda da Covid-19, investigadores da Universidade de Oxford construiram um modelo computacional que sugeria que se 56% dos britânicos descarregassem e usassem uma aplicação de rastreio de contactos (junto com outras medidas de controlo), isso acabaria com a epidemia no país.

Com a aplicação inglesa apenas disponível desde setembro, é demasiado cedo para dizer como o sistema se está a comportar efetivamente. Mas até baseando-nos noutros países cujas aplicações têm estado disponíveis desde há muito mais tempo, ainda há muito poucas provas de que estas consigam fazer verdadeiramente a diferença na luta contra a Covid-19 – ou de que não o consigam.

Apesar disto não querer dizer que devamos eliminar de todo as aplicações de rastreio de contactos, a falta de provas é uma preocupação, dado o esforço e dinheiro aplicado nestas aplicações e as decisões políticas tomadas sobre elas. Este tipo de “solucionismo tecnológico” pode ser uma distração relativamente ao desenvolvimento de sistemas de rastreio de contactos manuais com provas dadas. Na verdade, o Conselho da Europa levantou a questão de se, à falta de provas, as promessas feitas acerca destas aplicações “valem a pena os previsíveis riscos sociais e legais”.

Apesar das previsões de que entre 67.5% a 85.5% de potenciais utilizadores descarregariam a aplicação, a nível mundial as taxas de descarregamento das aplicações de rastreio de contacto tem sido até agora baixas, ficando aproximadamente nos 20%. Na Alemanha tem sido por volta de 21%, em Itália 14%, na França apenas 3%. A Islândia e Singapura, que foi uma das primeiras a lançar uma aplicação, têm a mais alta taxa de descarregamento até à altura, sendo por volta de 40%.

As taxas de descarregamento são importantes porque é preciso que muitas outras pessoas tenham a aplicação no seu telemóvel para aumentar as probabilidades de que, ao contactar com alguém que tenha o vírus, o sistema seja capaz de alertar para o facto.

Em termos gerais, se tivermos 20% da população que é utilizadora ativa da aplicação há apenas uma probabilidade de 4% de entrar em contacto com outro utilizador da aplicação (essa matemática é explicada aqui). Aumentando a taxa de descarregamentos para 40% passa-se a ter uma probabilidade de 16% de encontrar outro utilizador ativo da aplicação. Isto presumindo que os utilizadores tenham todos a mesma aplicação ou aplicações compatíveis

As aplicações podem não precisar de altas taxas de descarregamento para terem algum impacto. Um segundo relatório dos investigadores de Oxford sugeria um sistema bem equipado de rastreio de contactos, que incluísse notificações digitais e manuais, poderia reduzir as infeções entre 4%-12% e as mortes entre 2%-15% se apenas 15% utilizasse a aplicação.

O ministro da Saúde de Singapura alega que, ao passo que demorava quatro dias para que equipas de rastreio de contactos identificassem e colocassem em quarentena os contactos próximos dos infetados, a aplicação permitiria fazê-lo em dois dias.

Mas no mundo real, descarregar a aplicação não é o mesmo do que utilizá-la ou, ainda mais importante, cumprir os avisos para se auto-isolar se a aplicação disser que houve contacto com uma pessoa. Um estudo encomendado pelo governo do Reino Unido analisou mais de 30.000 pessoas e concluiu que apenas 18% concordou auto-isolar-se quando alguém que trabalhava para o sistema manual de rastreio de contactos as contactou e explicou as razões. Os números para uma mensagem automática nos telemóveis das pessoas serão provavelmente ainda mais baixos.

Falta de confiança

Então porque é que as aplicações de rastreio de contactos não tiveram um sucesso mais evidente? Primeiro, parece haver uma falta de confiança pública na tecnologia e no seu uso dos dados pessoais.

No início do ano, houve muita discussão sobre se as aplicações deviam enviar dados para uma base de dados central ou armazená-los nos telemóveis dos utilizadores de forma a preservar a sua privacidade. A maior parte dos países acabaram por optar pela segunda, apesar de França ter escolhido a primeira, menos privada (e tem uma aceitação muito baixa).

A Inglaterra também experimentou inicialmente um modelo centralizado mas depois de muitas críticas e dificuldades encontradas mudou para o descentralizado. Contudo, o debate público muito animado talvez tenha deixado uma impressão permanente negativa quanto à eficácia e às preocupações de segurança com aplicações de rastreio desenvolvidas por governos.

Na verdade, há boas razões para cético quando à eficácia destas aplicações. A maior parte destes países (com a exceção da Islândia) também optaram por usar o Bluetooth para gravar quando os utilizadores da aplicação entram em contacto, em vez de utilizar o GPS para rastrear a sua localização específica, novamente para proteger a privacidade. Mas o Bluetooth tem uma série de fraquezas que fazem com que possa registar contactos que nunca aconteceram e não registe outros que aconteceram.

Por exemplo, a aplicação pode registar que se teve contacto com alguém, ainda que essa pessoa tenha estado do outro lado de uma parede. Mas se guardar o telemóvel no bolso traseiro pode não ligar-se com uma pessoa que esteja à sua frente.

Um estudo, que teve lugar num elétrico e comparou aplicações italianas, suíças e alemãs, concluiu que a tecnologia era muito imprecisa, não sendo melhor do que “selecionar ao acaso” pessoas para notificar, apesar da proximidade. Os alertas falsos daqui decorrentes provavelmente somaram-se à confusão pública e falta de confianças nestas aplicações.

O problema tecnológico

Outro problema é, claro, que apenas os detentores de smartphones podem utilizar estas aplicações. Uma vez que, no Reino Unido, 61% das pessoas com mais de 65 anos não têm acesso a aparelhos com internet móvel, isto significa que o maior grupo de risco tem menor probabilidade de beneficiar das aplicações de rastreio de contactos.

Uma solução para este problema pode ser utilizar uma tecnologia alternativa para registar os contactos das pessoas. Em Singapura foi introduzida uma ficha que pode ser utilizada num fio, no bolso ou num saco e que contém tecnologia que permite cumprir a mesma função de uma aplicação de rastreio. Na Nova Zelândia também se ponderou um semelhante “cartão covid” para contornar a questão dos smartphones.

Mas em última análise, para alguma destas tecnologias ter algum efeito, as únicas provas que temos sugerem que têm de estar incluídas em sistemas eficazes de testagem e rastreio que incluam rastreio manual de contactos – algo que apenas alguns países ainda têm de implementar. Uma solução tecnológica nem sempre é a resposta.


Allison Gardner é professora de Ciências da Computação na Universidade de Keele.

Texto publicado no The Conversation. Traduzido por Carlos Carujo.

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