Ana Drago e José Reis coordenaram O Regresso do Planeamento, um livro que traça o percurso do planeamento público em Portugal e apresenta diferentes debates e dimensões sobre o seu futuro.
O esforço surge depois dos debates tidos em torno do planeamento público e democrático durante a pandemia e tem como base o colóquio “"Planeamento Público e Democrático” dinamizado pelo Observatório sobre Crises e Alternativas do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra em Janeiro de 2023.
Ana Drago é socióloga e investigadora desse mesmo observatório, integrando também a sua coordenação. Foi deputada à Assembleia da República pelo Bloco de Esquerda. Em entrevista ao Esquerda, fala sobre as diferentes vertentes do planeamento e da sua importância para enfrentar as crises que se avizinham.
Quando falamos de planeamento, há uma tensão de definir como planeamento a simples estruturação do mercado nalguma direção. Mas a abordagem académica e que se traduz no livro é outra, mais interventiva, certo?
Estruturar a economia num certo sentido pode ser um instrumento incluído na panóplia da política de planeamento, mas não é o planeamento em si. O planeamento é aquela ideia que talvez tenha sido mais forte na Europa do pós-guerra, de ter um Estado capaz de olhar a estruturação da sua ação no longo prazo, utilizando para isso um conjunto vasto de instrumentos. E a estruturação de longo prazo não só ao nível do funcionamento da economia, emprego, geração de riqueza, mas também criação e provisão de bem-estar. Nós temos a perceção de que desde meados dos anos 80, essa lógica de planeamento por parte do Estado tem vindo a retrair-se a favor exatamente do funcionamento dos mercados, pelos seus impulsos e pelas suas volatilidades. Mas é um livro que surge muito num determinado contexto, muito em torno dos debates que nós tivemos durante a pandemia. A perceção de que economia estava a parar e que era necessário que parasse, mas que exigia que alguém coordenasse como é que funcionavam os serviços que eram determinantes para a vida de toda a gente.
Falaste da transição para o neoliberalismo. De que forma essa mudança é abordada no livro?
O livro acaba por ser organizado em dois períodos. Antes do 25 de Abril e depois do 25 de abril. O Ricardo Noronha e o Álvaro Garrido mostram períodos em que a ideia do planeamento como instrumento do Estado de capacitação da sociedade e da economia foram determinantes e há uma espécie de conclusão triste. Houve mais estruturação de instituições dentro do Estado antes do 25 de Abril, como tentativa de organizar o surto da industrialização que arranca nos anos 60. Há depois uma transição de quadros que vêm dessas experiências e que fazem também o 25 de Abril, que eram os jovens técnicos economistas que acompanhavam as discussões internacionais. Depois à medida que nós desregulamos o mercado e privatizamos os seus principais operadores, claro que a capacidade de planeamento por parte do Estado é muitíssimo retraída.
Como é que essa submissão ao mercado afetou Portugal enquanto espaço periférico na Europa?
Essa é a história das privatizações, em que nós demos parcelas de rentabilidade garantida a um conjunto de operadores de mercado e deixámos que eles fossem guiando e estruturando o crescimento económico. E sofremos à medida que tivemos vários choques: o euro, os acordos da Organização Mundial de Comércio, um conjunto de choques externos em relação aos quais o Estado aparece completamente despido de instrumentos para guiar essa transformação económica. Só o regresso do Estado como planeador, ligando economia à vida, ao consumo, a produção, os transportes, as infraestruturas, as relações externas de comércio, é que consegue verdadeiramente ter algum tipo de capacidade de coordenação para fazer isto.
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A pandemia, como já referiste, e a crise climática, lançam desafios sobre a organização social. Mas talvez abram também a porta a que se comece a falar sobre planeamento e a inverter a lógica de dominação do mercado face ao planeamento, não?
É essa a discussão que está em cima da mesa. O relatório Draghi tem a ideia de que a lógica da competitividade que presidiu à forma de estruturação do mercado único, esgotou a capacidade da Europa ser competitiva. Isso tem uma abrangência sobre como é que nós queremos financiamento para as economias e é preciso que haja uma nova camada de coordenação política. Um orador do nosso colóquio, Maximillian Krahé, faz uma análise do relatório Draghi, e diz que a governação de Maastricht no quadro europeu é a forma que os Estados encontraram de não serem responsabilizados pelo impacto da globalização e da desindustrialização da Europa. Isso está a conduzir a Europa a ficar para trás, e estamos num contexto de crescimento da extrema-direita, que não pode ser desligada desta receita que foi dada para a solução da grande crise global. São necessários novos mecanismos de coordenação política e ela só pode ser feita pelo Estado, para resolver as alterações climáticas e para estruturar o modelo económico que não seja a austeridade permanente.
Falando sobre a União Europeia e o relatório Draghi, não há aqui um perigo de que o planeamento seja virado para a guerra, dada a intensificação dos conflitos globais?
É um dos debates com que a Europa está confrontada. Há uma retórica de política industrial e até de regresso de algum planeamento, mas acho que nós temos de ser cuidadosos, prudentes e vigilantes, para perceber exatamente o que é que isso vai ser. O risco de militarização na Europa é muito significativo, especialmente se vier da ideia de que para que a Europa possa ser soberana do ponto de vista militar, vamos necessitar de uma nova ronda de austeridade. Uma Europa a militarizar-se num contexto de redobrada austeridade com forças de extrema-direita nós já experimentámos no início do século XX e não acabou bem. É necessário encontrar aqui uma agenda que seja ganhadora para todos, e isso parece-me que é claramente responder àquilo que são as dificuldades da vida dos cidadãos europeus ao longo dos últimos 15 anos.
Ainda porque falamos da União Europeia, que perspetiva tens sobre as tensões entre as diferentes escalas de planeamento? Isto é, desde o planeamento europeu, ao nacional ou local, como se resolvem essas contradições?
A ideia é que deve ser o Estado a chamar os diferentes agentes e os diferentes interesses à mesa, mas não pode ser feito um tipo de planeamento que foi praticado pelo neoliberalismo, que privilegia os interesses privados. Não há representação de trabalhadores, nem de organizações da sociedade civil. Esta ideia de democracia parece-me muitíssimo importante. Os poucos momentos de planeamento que nós tivemos em Portugal nos últimos 30 anos, chamaram interesses privados, que não são os únicos. Apesar disso temos a experiência da reconversão do tecido industrial nas indústrias do têxtil e do calçado do Vale do Ave, que estavam a perder competitividade em meados dos anos 90. E com a participação das autarquias, dos empresários locais e dos sindicatos, conseguiram fazer a requalificação daquela indústria, que hoje é uma das indústrias mais competitivas e exportadoras portuguesas.
Entrando na discussão sobre a planificação a nível nacional, ela deve ser entendida de forma holística ou pode ser feita de forma setorial?
Parece-me muito difícil, porque as coisas vêm agarradas umas às outras. Nós vamos fazendo diferentes discussões em diferentes momentos, mas é exatamente o Estado na estrutura da administração pública que tem de ter essa dimensão transversal entre os diferentes setores. É necessário não só ter infraestruturas de transporte, como é necessário ter escolas e hospitais, tudo está ligado. Desde a própria forma de organização no território, tendo em vista a questão da sustentabilidade. E são diferentes escalas. Nós conseguimos planear um bairro, um espaço de vivência local, transportes para esse bairro, depois a cidade, a metrópole, a ligação da metrópole com outros países, com o resto do território. Temos de ir encadeando e é o público que consegue fazer a coordenação entre essas diferentes escalas sempre na lógica democrática.
Sobre essa visão mais transversal, a economia portuguesa tem sido direcionada para o turismo de massas, numa espécie de beco sem saída. Como é que a planificação pode redirecionar e reestruturar esse impulso para o turismo?
Nós sempre tivemos alguma dependência do turismo, somos um país do Sul da Europa e isso acontece em Espanha, Itália e na Grécia. Mas nós vamos percebendo que o turismo está a comer as outras atividades económicas e a reduzir a capacidade de as atividades económicas terem uma dimensão significativa. Está-se a espalhar como uma espécie de cancro pela economia, porque tem produtividade muito baixa. Gera muito emprego e em determinado momento, depois da crise, foi importante para criar esse emprego, mas agora está a comer o próprio espaço da cidade.
É um setor difícil de reconverter para outras atividades económicas?
Acho que o turismo é mais facilmente reversível do que algum outro tipo de atividades económicas, até porque ele aproveita de forma muito significativa aquilo que era o stock de edificado para habitação. Nós conseguimos reduzir a oferta de alojamento local pela regulação do alojamento local, ou até mesmo fazer a reconversão de hotéis a uma função de habitação. Temos de usar esses mecanismos de planeamento para repensar como é que fazemos algum fasing out do turismo e a estruturação e colocação no território de outras atividades económicas.
Fazendo esse redirecionamento da economia, que outras áreas de economia é que achas que o planeamento pode promover?
A coisa mais óbvia é a questão das infraestruturas de mobilidade, que é absolutamente determinante para o futuro da cidade, do país e do planeta. Há a estruturação daquilo que de forma um pouco ignorante se chama o “interior do país”. Nós precisamos de estruturar uma utilização do território que não seja esta sangria para a área metropolitana, e isso exige mecanismos de planeamento sobre a cidade média e uma rede de cidades médias que agregam um conjunto de atividades económicas e de estruturação de serviços públicos que possam prender novas gerações. E temos de reinventar atividades económicas de valor e qualificadas, precisamos de alguma forma de reindustrialização, mas já não é a indústria que fazia bens cuja competitividade nos mercados externos era pelos baixos salários e a e a fraca qualidade. Precisamos de coisas mais qualificadas para o país que fomos formando com a escola democrática e isso exige alguma visão. Precisamos de reequilibrar a economia, e isso significa apoiar outros setores.
De forma inversa, se continuarmos a basear as decisões políticas no mercado, o que é que nos espera o futuro?
No contexto português, a lógica de mercado está a conduzir à desqualificação da nossa economia e à perda de produtividade. Somos muito competitivos nas exportações do turismo, mas em pouco mais. Tenho receio que haja um conjunto de empresas que geram o maior valor acrescentado que não venham a fazer o seu investimento em Portugal. Se nós não temos uma lógica de planeamento, eu acho que continuamos a desqualificação da economia portuguesa e temos também aquilo a que temos assistido de sete em sete anos, que são os incêndios. Não conseguimos planear o país florestal e parece-me absolutamente determinante que se consiga fazê-lo rapidamente. Tenho a sensação de que estamos dentro do buraco e continuamos a escavá-lo. Temos de fazer algum tipo de planeamento para a transição energética e isso exige este pensamento para o futuro, que não é só dizer: “Bom, os privados estão interessados ou não estão interessados?”, porque aparentemente é a única lógica de governação que existe nos últimos anos em Portugal.
Pegaste na questão do território em relação aos incêndios. Parece-me que há áreas, como essa, onde há uma maior facilidade de falar em planeamento, e outras, como a economia, onde ainda há muita resistência. Achas que pode haver vitórias estratégicas em algumas áreas onde de momento o planeamento é mais consensual?
É necessário insistir na questão do planeamento económico. É absolutamente determinante. Todos os problemas que nós temos hoje resultam do Estado ter abdicado de lógicas de intervenção na estruturação das economias e do bem-estar das populações, e ter entregue essa competência aos mercados, tendo-se instalado essa ideia de que as sociedades democráticas são a selva. O Keynes dizia que entregar o futuro da qualidade política a um conjunto de pessoas que são movidas apenas e exclusivamente pelo lucro e achar que as decisões que elas vão tomar são boas para toda a gente é pura loucura. E desde que entrámos no novo século, percebemos que essa promessa do neoliberalismo só está a criar problemas e não nos ofereceu uma vida melhor. Pelo contrário, é a ideia de austeridade, maior ou menor, para todo o sempre. Por isso acho que o debate sobre o planeamento económico não pode ser colocado à parte e falamos só sobre o planeamento urbano, o planeamento do território, assim como se fosse, vamos plantar umas florzinhas aqui. Não é sobre isso, é sobre decisões que mexem com interesses.
Na discussão sobre transição energética fala-se muito de democracia energética. E isso também está relacionado com o planeamento. Como é que vamos tornar estes processos de planeamento verdadeiramente democráticos?
É uma questão desafiante e eu acho que não há uma resposta que seja válida para todas as situações. Temos tido conflitos políticos e democráticos que acho que são significativos e que devem fazer pensar, nomeadamente o debate sobre mineração. Há um mineral num determinado contexto e ir lá buscá-lo é muito importante para fazer um conjunto de baterias que permitem novas formas de armazenamento de energia, que é produzida de forma sustentável. Os impactos sobre aquela comunidade, sobre aquele território e sobre aquele ecossistema são brutais. Tem de haver uma negociação com as comunidades locais que lhes permita ser ressarcidas. E a extração desses minérios tem de ser feita de forma mais sustentável possível. Nem toda a gente vai ficar contente, isso faz parte da democracia. Mas há direitos fundamentais que não podem ser, mesmo que sejam de uma minoria, ignorados. O Corbyn dizia: “For the many”. A ideia de que os resultados de escolhas que nós fazemos resultam no maior bem-estar para o maior número de pessoas e essa é a dimensão fundamental. O caminho faz-se caminhando, não se faz ostracizando as populações. Tem de haver a criação desses espaços de debate.