A Comissão Europeia encomendou a Mario Draghi, ex-dirigente da Goldman Sachs, ex-presidente do Banco Central Europeu e ex-primeiro-ministro de Itália, um relatório sobre a competitividade europeia. Ao fim de um ano de trabalho, em centenas de páginas traça-se um diagnóstico exaustivo que reconhece dois pontos essenciais: a perda de competitividade da economia europeia face à dos Estados Unidos e à da China e o falhanço das políticas de “mercado livre” que a União Europeia tem seguido ortodoxamente.
O relatório coloca portanto em causa certezas ultra-liberais e revela a confusão e as contradições que têm reinado numas elites políticas europeias sem estratégia de desenvolvimento económico à escala continental. Para além deste diagnóstico, as suas receitas que passam, entre outras medidas, pela concentração do capital europeu e pela mutualização de dívidas para tentar encurtar o “fosso de investimento” vão obviamente no mesmo sentido de classe que as políticas atuais. Para ele, o investimento deve sair dos bolsos públicos parar ir parar às grandes empresas.
Contudo, esbarraram desde logo em obstáculos de longa data: a pouca vontade de aumentar despesas públicas e a rejeição de países centrais da Europa, com a Alemanha à cabeça, de emitir dívida conjunta e a oposição à concentração bancária, a um “mercado único de capitais”.
O “desafio existencial” do capitalismo europeu, nas palavras do ex-banqueiro, fica assim como uma fratura exposta sem tratamento à vista.
Neste dossier, apresentamos algumas das linhas mestre deste documento e algumas das críticas que, à esquerda, lhe têm sido dirigidas.
Com Adam Tooze, especifica-se A visão de Europa de Draghi. Este economista traz-nos alguns dos gráficos utilizados pela equipa de Draghi para mostrar que o investimento público na Europa fica cronicamente atrás do dos EUA mas que a verdadeira diferença entre os dois espaços reside nos tipos de investimento mais inovadores, nomeadamente o capital de risco.
O mesmo especialista detalha Como a Europa se tornou um modelo falhado de relações entre Estados capitalistas, analisando a parte B do relatório, menos realçada na maior parte das leituras, onde se dissecam diferenças entre o bloco europeu e os seus concorrentes diretos, olhando para empresas e setores específicos como a investigação, o setor automóvel, as telecomunicações, a computação em nuvem, a inteligência artificial, a computação quântica, o setor farmacêutico, a “defesa” e o setor espacial. A sua conclusão é que “as relações entre o grande capital e a governação da UE são profundamente disfuncionais” e que esta “já não oferece ao capital europeu a plataforma para enfrentar a concorrência global”.
Michael Roberts, em Salvar o capital europeu: um desafio existencial, investiga a resposta de Draghi como a habitual solução pró-empresarial: desregulamentar, criar incentivos monetários e fiscais, fazer empréstimos conjuntos, mais impostos e menos despesas em coesão social, subsídios e agricultura para disponibilizar mais fundos públicos para as novas tecnologias. Ainda assim, o que seria preciso para aumentar investimento nos setores de alta tecnologia era direcionar o investimento privado para eles, o que os governos da UE não querem fazer porque implicaria assumir controlo de grandes empresas privadas. Dadas estas contradições, a única forma disponível de aumentar rentabilidade do capital europeu, avança, parece ser acentuar a exploração do trabalho e a “destruição criativa” da “tecnologia intermédia”.
Juan Laborda, em O fracasso do mercado livre e o imperativo da intervenção estatal na Europa, também se debruça sobre o plano das respostas de Draghi, sublinhando que a parte mais fraca deste relatório está na “aposta de emissão de dívida europeia para solucionar tudo”. De qualquer forma, destaca a importância de se concluir pelo falhanço do “mercado livre” e pela necessidade de intervenção pública porque o essencial da “inovação não reside no mercado mas no Estado”. Acredita ainda que se mostra nele a ausência de uma visão geopolítica europeia, introduzindo ainda outro elemento, o problema dos custos da energia na Europa.
Martine Orange defende que o estudo é A última remodelação de fachada do projeto europeu. Também ela salienta a questão energética com a “aberração da liberalização deste mercado” a ter conduzido preços mais altos e menos energias renováveis.
A jornalista do Mediapart olha igualmente para o que não está no relatório de Draghi. Entre as omissões nota-se que não há nenhuma crítica real às políticas europeias, à desregulamentação e à liberalização exagerada, à concorrência interna de todos contra todos, aos padrões sociais mais baixos erigidos em dogma ou à austeridade que se tornou a norma desde os anos 2010.
O relatório Draghi é sinal de que o “software” da alta burocracia europeia não mudou, acreditando-se que o mercado é por natureza eficiente e que, para restaurar a competitividade resta às políticas públicas porem-se ao seu serviço.
Outra ausência de monta é a transição ecológica com algumas das mesmas propostas a serem defendidas.
Já Vicente Ferreira questiona: competitividade para quem, concentrando o seu olhar também nas omissões na análise de Dragh como a ausência de análise das regras orçamentais europeias que definem limites ao investimento dos Estados e das diferenças estruturais entre as economias do centro e das periferias da UE.
O economista vinca ainda que o relatório não dá resposta ao facto dos interesses privados não estarem alinhados com as prioridades coletivas, diz muito pouco sobre o papel dos trabalhadores e não inclui propostas sobre a articulação da estratégia industrial com a qualidade do emprego criado nem sobre a definição de condicionalidades sociais nos apoios públicos.