Há alguns dias foi apresentado o Relatório Draghi, o documento que o antigo presidente do Banco Central Europeu elaborou, depois de ter sido encomendado pela Comissão Europeia há um ano, para fazer um diagnóstico dos males que assolam a economia da União Europeia. Intitulado “O Futuro da Competitividade Europeia”, o documento aborda a competitividade da Europa num contexto de mudança global. O texto começa por salientar o facto de a economia europeia ter registado um abrandamento do crescimento nas últimas duas décadas, em comparação com os Estados Unidos e a China. Esta estagnação teve um impacto negativo na qualidade de vida dos europeus.
Obviamente que existem, existiram e existirão diferentes interpretações quando se trata de analisar a relevância do Relatório Draghi. Nestas linhas, apresento a minha tradução pessoal do mesmo, ou seja, a minha interpretação ou explicação pessoal das ideias principais do documento. Mais concretamente, vou cingir-me a três ideias-chave.
Em primeiro lugar, o foco no mercado livre, tal como aplicado na Europa, não conseguiu gerar a inovação e a produtividade necessárias para que a Europa possa competir com êxito a nível mundial. Hoje, mais do que nunca, é necessária uma intervenção estatal mais coordenada e ativa para enfrentar os desafios atuais, pelo que as soluções de mercado, por si só, não só são insuficientes para enfrentar os desafios de competitividade da Europa, como são perniciosas. A China poderia dar-lhes umas breves lições de política industrial ativa.
Os mitos do mercado
Já referimos à exaustão que a ordem liberal está acabada. O mercado não conseguiu resolver os principais problemas económicos e sociais das nossas sociedades modernas. Artigo académico após artigo académico resumem-se muito bem as consequências desta ordem: queda do investimento produtivo; colapso da produtividade do capital; aumento brutal da desigualdade, a favor da extração de rendas, através da financeirização; perceção de insegurança nos aspetos fundamentais da vida – habitação, salários, emprego, saúde; crises recorrentes de dívidas financeiras e privadas...
O que o relatório Draghi sublinha é algo óbvio que sempre defendemos nestas linhas: a governação é essencial e uma parte central da política de desenvolvimento é melhorar o desempenho do sector público. Quando se fala de inovação, por exemplo, os políticos e os especialistas, até há relativamente pouco tempo, recorriam muitas vezes a ideias feitas, normalmente ocas. Argumentava-se que a inovação residia nas forças do mercado, no empreendedorismo inovador com a sua capacidade de assumir riscos e de assumir o futuro desconhecido. No entanto, a realidade da inovação não tem nada a ver com esta boutade. A inovação não reside no mercado, mas no Estado, no governo. Mariana Mazzucato, professora da Universidade de Sussex, no livro O Estado Empreendedor (Taurus, 2022) analisa vários estudos de caso sobre o crescimento impulsionado pela inovação, e descreve a situação oposta, o sector privado só se atreve a investir depois de o Estado ter feito os investimentos de alto risco.
Mazzucato argumenta que, na história do capitalismo moderno, o Estado gerou atividade económica que de outra forma não teria acontecido e abriu ativamente novas tecnologias e mercados nos quais os investidores privados podem entrar mais tarde. Longe da crítica frequentemente ouvida de que o Estado poderia “excluir” o investimento privado, o Estado faz acontecer, moldando e criando mercados, e não apenas “corrigindo” as suas falhas. Ignorar esta realidade serve apenas objetivos ideológicos e prejudica a elaboração de políticas eficazes. Exemplo disso é a situação atual, em que a falta de investimento produtivo só será corrigida quando o Estado iniciar, de uma vez por todas, processos de investimento maciço centrados na energia, na habitação, nos transportes, na educação, na investigação e desenvolvimento de infraestruturas de tratamento de águas, etc., que servirão, posteriormente, de arrasto ao sector privado. Entretanto, mais pobreza.
Ausência de uma posição e visão geopolítica europeia
A segunda ideia forte, na minha tradução pessoal do relatório Draghi, é o problema dos custos da energia na Europa. Esta situação foi agravada pelo papel absurdo da Europa ao seguir as posições belicosas e de confronto dos Estados Unidos e do Reino Unido na guerra da Ucrânia. Um exemplo é a Alemanha, onde o atual governo nunca pensou nos seus concidadãos, limitando-se a fazer genuflexão a uma das administrações americanas mais perniciosas para os europeus, especialmente para os alemães, a de Biden, com personagens tão sinistras como Victoria Nuland. Os sociais-democratas, os Verdes e os liberais serão arrasados eleitoralmente.
Subjacente a esta interpretação, repito, muito pessoal, está uma outra ideia forte. De um ponto de vista geopolítico, estamos há muito tempo num mundo multipolar onde o poder omnipresente dos Estados Unidos está a definhar. O principal problema para a humanidade é o facto de aqueles que encarnam esse poder, os herdeiros do marcantismo, terem retocado a bandeira da intolerância em toda a sua glória. Referimo-nos, como salienta o sociólogo francês Emmanuel Tood, aos “neocons” americanos, muito mais enraizados no Partido Democrata do que na versão atual do Partido Republicano, encarnada por Donald Trump, e aos seus lacaios europeus. O mundo é um lugar heterogéneo e o Ocidente, especialmente a Europa, deveria ter fomentado um sistema global de relações internacionais baseado na tolerância e não na imposição.
Mario Draghi e a Teoria Monetária Moderna
O documento coloca a necessidade de uma reforma para impulsionar, através de um apoio significativo do sector público, a inovação e a tecnologia através de um conjunto de investimentos urgentes, uma vez que a Europa enfrenta necessidades de investimento sem precedentes em sectores como a digitalização, a descarbonização, a defesa… Argumenta-se que o investimento privado, por si só, não será capaz de cobrir a maior parte das necessidades financeiras e que é imprescindível um apoio significativo do sector público. A solução, de acordo com o relatório, reside numa maior integração dos mercados de capitais europeus, o que facilitaria a canalização da poupança privada para o investimento produtivo na Europa.
A isto se soma a proposta de emissão de dívida pan-europeia comum, ou seja, financiamento partilhado entre países europeus para bens públicos chave, como a inovação disruptiva. Desta forma, reduzir-se-iam as barreiras de acesso ao financiamento e permitir-se-ia um maior impulso ao investimento em sectores estratégicos.
Esta é, sem dúvida, a parte mais fraca do relatório. Draghi devia ter sido mais imaginativo. E aqui está a minha terceira ideia forte. O enorme esforço de investimento que se pode deduzir do relatório Draghi não pode ser financiado nos mercados financeiros. E Mario Draghi sabe-o, sobretudo quando ele próprio, pouco antes de deixar a presidência do BCE, falou da necessidade de explorar novas ideias, como a Teoria Monetária Moderna.
Juan Laborda é professor de Finanças na Universidade Politécnica de Madrid.
Texto publicado originalmente no El Salto.