A Culatra é uma das cinco ilhas barreira do Parque Natural da Ria Formosa, ao largo da costa algarvia. Devido ao seu contexto geográfico, a ilha tem uma grande dependência de fontes de energia externas. A ilha foi eletrificada em 1992, e a eletrificação da ilha é feita através de um cabo submarino que é vulnerável a avarias, causando várias falhas de energia à população ao longo do ano. Como as falhas podem demorar semanas ou até meses a ser corrigidas, foi instalado na ilha um gerador a diesel para que os habitantes tenham eletricidade quando o cabo falha.
Os habitantes enfrentaram outros problemas: até 2018, todas as casas da ilha era consideradas ilegais. Só a partir desse ano é que houve um reconhecimento da Ilha da Culatra como núcleo piscatório consolidado, o que permitiu que fossem emitidas licenças de habitação com a duração de 30 anos. São licenças renováveis que abrangem cerca de 400 famílias.
Esse reconhecimento permitiu que no início de 2019, a Universidade do Algarve, em conjunto com a Associação de Moradores da Ilha da Culatra, fizessem uma candidatura ao programa europeu Clean Energy for European Islands (Energia Limpa para Ilhas Europeias) para desenvolver um projeto-piloto de agenda de transição para energias limpas. Assim começou a aventura que deu lugar à Cooperativa para a Sustentabilidade da Ilha da Culatra (C-Coop).
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A agenda de transição foi escrita e preparada através de um diagnóstico participativo comunitário. Jóni dos Santos, presidente do conselho de administração da cooperativa, está numa posição que facilita a articulação com a Universidade do Algarve. É morador da Ilha da Culatra e doutorando em Engenharia Eletrotécnica na universidade, e por isso acompanhou e teve um papel importante na construção do projeto, que garante que teve como ponto de partida o diálogo com os moradores da ilha.
“As necessidades foram todas levantadas pelos residentes”, explica. E esse processo deu origem à “peça principal” do projeto, uma comunidade de energia renovável. Não por acaso, as comunidades de energia renovável em Portugal foram legisladas apenas em 2019, ano em que se começou a redigir a agenda de transição para a ilha. E o projeto aproveitou a oportunidade para, dadas as fragilidades energéticas da Ilha da Culatra, lançar mãos ao trabalho para garantir aos moradores alguma autonomia energética.

A cooperativa tem instaladas cinco unidades de produção de energia fotovoltaica, que têm capacidade para suprir cerca de 28% das necessidades energéticas das ilha. Mas a ambição é maior. “Neste momento estamos a desenvolver projetos, um deles é a renovação da zona de trabalho dos pescadores e fazer a instalação de uma unidade um pouco maior, que nos vai permitir chegar a uma autonomia de 90% durante o dia”, explica Jóni.
O problema é que a capacidade de suprir as necessidades energéticas é teórica. Os painéis solares estão montados, mas essas unidades estão a funcionar como unidades de auto-consumo. Isto é, a fornecer energia apenas aos edifícios em que estão montados. As duas maiores instalações fotovoltaicas estão a satisfazer as necessidades energéticas da zona de trabalho dos pescadores, as outras três estão divididas pelos edifícios comunitários. Isto porque desde que a comunidade energética foi pensada, está em processo de licenciamento na Direção-Geral de Energia e Geologia.
“Sei que muitas comunidades estão a ter estas dificuldades”, lamenta o presidente do conselho de administração da cooperativa, assegurando que os problemas burocráticos para a criação de comunidades de energia renovável são generalizados a todos os projetos deste tipo. “Já tínhamos as pessoas selecionadas há mais de um ano, depois saiu um novo decreto-lei e depois um novo regulamento do auto-consumo para esse decreto-lei e tivemos de voltar a submeter o pedido”.
Nesse tempo, as pessoas que se querem juntar à comunidade de energia renovável foram perdendo algum interesse e vontade de participar no projeto, porque não veem um benefício de participar. “As pessoas não estão a ter qualquer benefício sobre os painéis porque eles acabam por estar em autoconsumo individual, a funcionar para os edifícios municipais”, explica Jóni.
Felizmente, o projeto da Cooperativa para a Sustentabilidade da Ilha da Culatra não se esgota no projeto da comunidade de energia renovável.
Da comunidade energética a um projeto multidimensional
Ao fazer o levantamento das necessidades dos moradores da Culatra, a cooperativa registou cinco áreas nas quais poderia melhorar a vida daquela comunidade e contribuir para uma transição ecológica a nível local.
Para além do principal pilar, aquele no qual o projeto está montado, que é a produção, armazenamento e consumo de energia através da comunidade de energia renovável, há também uma preocupação com a eficiência energética das casas.
Portugal é um dos países europeus com mais pobreza energética, onde se passa mais frio no Inverno e se gasta mais energia para aquecer as habitações. A ilha da Culatra, em particular, “acaba por ser um sítio onde as construções são um pouco mais fracas e também temos muita pobreza energética”. Por isso, o projeto para a sustentabilidade da Culatra está a juntar fundos e financiamentos para resolver o problema de eficiência energética das casas e a trocar telhados de amianto por outro mais isolantes.
Outro dos pilares é a mobilidade na ilha e para fora e dentro da ilha. Nessa área, a comunidade conseguiu obter 22 veículos elétricos para fazer apoio domiciliário às pessoas mais idosas da ilha, e estão também à procura de financiamentos para conseguirem veículos elétricos que permitam fazer a travessia até ao continente e a outras ilhas.
A ria Formosa é uma zona protegida, e portanto mais do que o reduzido consumo de eletricidade que os veículos elétricos garantem, o importante é que não poluam as águas daquele parque natural. A poluição da ria já chegou mesmo a impedir a apanha de bivalves.
É também por isso que outro dos pilares é a gestão de resíduos de forma sustentável. Especialmente por a Culatra ser uma comunidade insular, com recursos reduzidos e infraestruturas também reduzidas, a gestão e disposição de resíduos pode ser um problema para os ecossistemas naturais e consequentemente, para a própria saúde dos moradores.
Na ria Formosa, um estudo da Universidade do Algarve encontrou matéria orgânica proveniente de fertilizantes e resíduos animais, mas também tributilestanho, poluentes orgânicos persistentes, contaminantes emergentes e disruptores endócrinos, todos com origem humana e com consequências nos ecossistemas da ria. Alguns desses contaminantes têm origem nas ilhas e nos moradores da ilha.
O último pilar sobre a qual a cooperativa trabalha é a circularidade da água. A seca é um dos problemas que afeta de forma aguda o Algarve e o Alentejo, e as ilhas da ria Formosa não estão isentas desse problema. É novamente uma questão de autossuficiência, mas também de preparar a ilha para o futuro. A escassez de água que assola a região terá tendência para se agravar com as alterações climáticas, e a cooperativa quer garantir que a ilha tem formas eficientes de transportar e gerir água e reutilizá-la.
Trabalhar sobre todas estas áreas permitiu manter a comunidade envolvida e a receber benefícios diretos destas transformações da ilha. “Estamos sempre a trabalhar em todos os aspetos de forma a manter sempre os residentes unidos e a verem que neste momento embora a parte da energia esteja um pouco parada, estamos a avançar noutras áreas”.
Alterações climáticas
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Como se constrói um projeto de adaptação?
O programa Clean Energy for European Islands não garante à cooperativa qualquer tipo de financiamento, mas antes apoio técnico. E portanto todo o dinheiro que a Cooperativa para a Sustentabilidade da Ilha da Culatra vem de diferentes financiamentos europeus e municipais para diferentes vertentes do projeto.
“Nós atiramo-nos a tudo e temos sempre muitos projetos. Já temos muitos projetos e portanto quando abrem estas chamadas, tentamos inserir os nossos projetos nesses parâmetros para conseguir o financiamento”, explica Jóni dos Santos. “Temos tido sucesso”.
Mas ter o apoio da Universidade do Algarve ajudou bastante a cooperativa a encontrar projetos e a fazer as candidaturas. A equipa de coordenação do Culatra 2030, o projeto que juntou a universidade e os moradores para criar a cooperativa, “tem muita experiência em candidaturas”, que é uma lacuna dos moradores. “Qualquer entidade na ilha não tem essa capacidade, é um apoio muito valioso”, diz o presidente do conselho de administração da cooperativa.
Por estarem numa zona protegida da ria Formosa, todos os projetos que a cooperativa planeia e põe em prática têm de ter especial atenção à proteção ambiental. Não podem, por exemplo, ser instaladas turbinas eólicas, ou criadas infraestruturas novas na ilha. Para além disso, a ilha da Culatra está sob a jurisdição de sete entidades diferentes, e nenhum destes projetos pode acontecer na ilha sem a aprovação das sete. Por isso, foi criado um comité insular, que reúne responsáveis de todas as entidades para tomar decisões sobre os projetos na ilha.
Mas essas dificuldades não desencorajaram a cooperativa nem os habitantes. “Quando se começam a ver os frutos do trabalho e as coisas começam a aparecer, é cada vez mais fácil as pessoas aderirem”, explica. “Por incrível que pareça, as sessões do diagnóstico participativo tiveram muita aderência, e as pessoas pensavam que não ia andar para a frente, mas agora veem as coisas a acontecer”.
Contra as dificuldades burocráticas e os atrasos, e apesar de ainda haver muito caminho a percorrer na construção de verdadeiras comunidades de energia renovável, a C-Coop pode ter encontrado um molde para viabilizar projetos locais de partilha de energia e de adaptação ecológica, criando um projeto multifacetado, que não aborde só a energia e que tenha impacto direto nas vidas dos moradores e nas comunidades mais afetadas pelas alterações climáticas.