Algarve

Na ilha da Culatra há uma cooperativa a pensar a transição ecológica

16 de novembro 2024 - 15:59

Os moradores da ilha da Culatra enfrentam vários desafios com o intensificar das alterações climáticas, mas há quem não desista de garantir autonomia e uma adaptação ecológica à comunidade.

porDaniel Moura Borges

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Farol de Santa Maria na Ilha da Culatra.
Farol de Santa Maria na Ilha da Culatra. Fotografia de Carlos Calamar/Flickr

A Culatra é uma das cinco ilhas barreira do Parque Natural da Ria Formosa, ao largo da costa algarvia. Devido ao seu contexto geográfico, a ilha tem uma grande dependência de fontes de energia externas. A ilha foi eletrificada em 1992, e a eletrificação da ilha é feita através de um cabo submarino que é vulnerável a avarias, causando várias falhas de energia à população ao longo do ano. Como as falhas podem demorar semanas ou até meses a ser corrigidas, foi instalado na ilha um gerador a diesel para que os habitantes tenham eletricidade quando o cabo falha.

Os habitantes enfrentaram outros problemas: até 2018, todas as casas da ilha era consideradas ilegais. Só a partir desse ano é que houve um reconhecimento da Ilha da Culatra como núcleo piscatório consolidado, o que permitiu que fossem emitidas licenças de habitação com a duração de 30 anos. São licenças renováveis que abrangem cerca de 400 famílias.

Esse reconhecimento permitiu que no início de 2019, a Universidade do Algarve, em conjunto com a Associação de Moradores da Ilha da Culatra, fizessem uma candidatura ao programa europeu Clean Energy for European Islands (Energia Limpa para Ilhas Europeias) para desenvolver um projeto-piloto de agenda de transição para energias limpas. Assim começou a aventura que deu lugar à Cooperativa para a Sustentabilidade da Ilha da Culatra (C-Coop).

A agenda de transição foi escrita e preparada através de um diagnóstico participativo comunitário. Jóni dos Santos, presidente do conselho de administração da cooperativa, está numa posição que facilita a articulação com a Universidade do Algarve. É morador da Ilha da Culatra e doutorando em Engenharia Eletrotécnica na universidade, e por isso acompanhou e teve um papel importante na construção do projeto, que garante que teve como ponto de partida o diálogo com os moradores da ilha.

“As necessidades foram todas levantadas pelos residentes”, explica. E esse processo deu origem à “peça principal” do projeto, uma comunidade de energia renovável. Não por acaso, as comunidades de energia renovável em Portugal foram legisladas apenas em 2019, ano em que se começou a redigir a agenda de transição para a ilha. E o projeto aproveitou a oportunidade para, dadas as fragilidades energéticas da Ilha da Culatra, lançar mãos ao trabalho para garantir aos moradores alguma autonomia energética.

Ilha da Culatra
Ilha da Culatra. Fotografia de Vitor Oliveira/Flickr

A cooperativa tem instaladas cinco unidades de produção de energia fotovoltaica, que têm capacidade para suprir cerca de 28% das necessidades energéticas das ilha. Mas a ambição é maior. “Neste momento estamos a desenvolver projetos, um deles é a renovação da zona de trabalho dos pescadores e fazer a instalação de uma unidade um pouco maior, que nos vai permitir chegar a uma autonomia de 90% durante o dia”, explica Jóni.

O problema é que a capacidade de suprir as necessidades energéticas é teórica. Os painéis solares estão montados, mas essas unidades estão a funcionar como unidades de auto-consumo. Isto é, a fornecer energia apenas aos edifícios em que estão montados. As duas maiores instalações fotovoltaicas estão a satisfazer as necessidades energéticas da zona de trabalho dos pescadores, as outras três estão divididas pelos edifícios comunitários. Isto porque desde que a comunidade energética foi pensada, está em processo de licenciamento na Direção-Geral de Energia e Geologia.

“Sei que muitas comunidades estão a ter estas dificuldades”, lamenta o presidente do conselho de administração da cooperativa, assegurando que os problemas burocráticos para a criação de comunidades de energia renovável são generalizados a todos os projetos deste tipo. “Já tínhamos as pessoas selecionadas há mais de um ano, depois saiu um novo decreto-lei e depois um novo regulamento do auto-consumo para esse decreto-lei e tivemos de voltar a submeter o pedido”.

Nesse tempo, as pessoas que se querem juntar à comunidade de energia renovável foram perdendo algum interesse e vontade de participar no projeto, porque não veem um benefício de participar. “As pessoas não estão a ter qualquer benefício sobre os painéis porque eles acabam por estar em autoconsumo individual, a funcionar para os edifícios municipais”, explica Jóni.

Felizmente, o projeto da Cooperativa para a Sustentabilidade da Ilha da Culatra não se esgota no projeto da comunidade de energia renovável.

Da comunidade energética a um projeto multidimensional

Ao fazer o levantamento das necessidades dos moradores da Culatra, a cooperativa registou cinco áreas nas quais poderia melhorar a vida daquela comunidade e contribuir para uma transição ecológica a nível local.

Para além do principal pilar, aquele no qual o projeto está montado, que é a produção, armazenamento e consumo de energia através da comunidade de energia renovável, há também uma preocupação com a eficiência energética das casas.

Portugal é um dos países europeus com mais pobreza energética, onde se passa mais frio no Inverno e se gasta mais energia para aquecer as habitações. A ilha da Culatra, em particular, “acaba por ser um sítio onde as construções são um pouco mais fracas e também temos muita pobreza energética”. Por isso, o projeto para a sustentabilidade da Culatra está a juntar fundos e financiamentos para resolver o problema de eficiência energética das casas e a trocar telhados de amianto por outro mais isolantes.

Outro dos pilares é a mobilidade na ilha e para fora e dentro da ilha. Nessa área, a comunidade conseguiu obter 22 veículos elétricos para fazer apoio domiciliário às pessoas mais idosas da ilha, e estão também à procura de financiamentos para conseguirem veículos elétricos que permitam fazer a travessia até ao continente e a outras ilhas.

A ria Formosa é uma zona protegida, e portanto mais do que o reduzido consumo de eletricidade que os veículos elétricos garantem, o importante é que não poluam as águas daquele parque natural. A poluição da ria já chegou mesmo a impedir a apanha de bivalves.

É também por isso que outro dos pilares é a gestão de resíduos de forma sustentável. Especialmente por a Culatra ser uma comunidade insular, com recursos reduzidos e infraestruturas também reduzidas, a gestão e disposição de resíduos pode ser um problema para os ecossistemas naturais e consequentemente, para a própria saúde dos moradores.

Na ria Formosa, um estudo da Universidade do Algarve encontrou matéria orgânica proveniente de fertilizantes e resíduos animais, mas também tributilestanho, poluentes orgânicos persistentes, contaminantes emergentes e disruptores endócrinos, todos com origem humana e com consequências nos ecossistemas da ria. Alguns desses contaminantes têm origem nas ilhas e nos moradores da ilha.

O último pilar sobre a qual a cooperativa trabalha é a circularidade da água. A seca é um dos problemas que afeta de forma aguda o Algarve e o Alentejo, e as ilhas da ria Formosa não estão isentas desse problema. É novamente uma questão de autossuficiência, mas também de preparar a ilha para o futuro. A escassez de água que assola a região terá tendência para se agravar com as alterações climáticas, e a cooperativa quer garantir que a ilha tem formas eficientes de transportar e gerir água e reutilizá-la.

Trabalhar sobre todas estas áreas permitiu manter a comunidade envolvida e a receber benefícios diretos destas transformações da ilha. “Estamos sempre a trabalhar em todos os aspetos de forma a manter sempre os residentes unidos e a verem que neste momento embora a parte da energia esteja um pouco parada, estamos a avançar noutras áreas”.

Como se constrói um projeto de adaptação?

O programa Clean Energy for European Islands não garante à cooperativa qualquer tipo de financiamento, mas antes apoio técnico. E portanto todo o dinheiro que a Cooperativa para a Sustentabilidade da Ilha da Culatra vem de diferentes financiamentos europeus e municipais para diferentes vertentes do projeto.

“Nós atiramo-nos a tudo e temos sempre muitos projetos. Já temos muitos projetos e portanto quando abrem estas chamadas, tentamos inserir os nossos projetos nesses parâmetros para conseguir o financiamento”, explica Jóni dos Santos. “Temos tido sucesso”.

Mas ter o apoio da Universidade do Algarve ajudou bastante a cooperativa a encontrar projetos e a fazer as candidaturas. A equipa de coordenação do Culatra 2030, o projeto que juntou a universidade e os moradores para criar a cooperativa, “tem muita experiência em candidaturas”, que é uma lacuna dos moradores. “Qualquer entidade na ilha não tem essa capacidade, é um apoio muito valioso”, diz o presidente do conselho de administração da cooperativa.

Por estarem numa zona protegida da ria Formosa, todos os projetos que a cooperativa planeia e põe em prática têm de ter especial atenção à proteção ambiental. Não podem, por exemplo, ser instaladas turbinas eólicas, ou criadas infraestruturas novas na ilha. Para além disso, a ilha da Culatra está sob a jurisdição de sete entidades diferentes, e nenhum destes projetos pode acontecer na ilha sem a aprovação das sete. Por isso, foi criado um comité insular, que reúne responsáveis de todas as entidades para tomar decisões sobre os projetos na ilha.

Mas essas dificuldades não desencorajaram a cooperativa nem os habitantes. “Quando se começam a ver os frutos do trabalho e as coisas começam a aparecer, é cada vez mais fácil as pessoas aderirem”, explica. “Por incrível que pareça, as sessões do diagnóstico participativo tiveram muita aderência, e as pessoas pensavam que não ia andar para a frente, mas agora veem as coisas a acontecer”.

Contra as dificuldades burocráticas e os atrasos, e apesar de ainda haver muito caminho a percorrer na construção de verdadeiras comunidades de energia renovável, a C-Coop pode ter encontrado um molde para viabilizar projetos locais de partilha de energia e de adaptação ecológica, criando um projeto multifacetado, que não aborde só a energia e que tenha impacto direto nas vidas dos moradores e nas comunidades mais afetadas pelas alterações climáticas.

Daniel Moura Borges
Sobre o/a autor(a)

Daniel Moura Borges

Militante do Bloco de Esquerda.