Entrevista

Álvaro Filho: “Há um costume de ler autores brasileiros como se fossem uma crónica do Brasil”

05 de dezembro 2024 - 16:25

No seu mais recente romance, Álvaro Filho descreve a discriminação que os trabalhadores brasileiros sofrem em Portugal e cria uma mística em torno da 'desobediência. Em entrevista ao Esquerda, o autor fala da realidade por detrás da obra e dos fenómenos sociais e políticos que influenciam o livro.

porDaniel Moura Borges

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Álvaro Filho
Fotografia cortesia de Álvaro Filho

O Mau Selvagem conta a história de um imigrante brasileiro que trabalha em Portugal e que é confrontado com preconceitos no seu quotidiano. Em estilo de policial noir, a personagem vai investigando a lenda do “Mau Selvagem”, um outro imigrante que trabalhou na mesma livraria e que não tolerava o catequismo dos clientes.

É um romance que reúne histórias de preconceito e vivências de trabalhadores imigrantes em torno de um mito de desobediência, e que se desenlaça numa inspiração dos clássicos do noir. Entre verdade e ficção, estão situações reais e um acompanhamento atento do que se passa na política brasileira a partir de Portugal.

Álvaro Filho é jornalista n’A Mensagem de Lisboa e autor de outros livros como Alojamento Letal e Meu Velho Guerrilheiro. Imigrou para Portugal com a ascensão da extrema-direita no Brasil, escrevendo sobre cultura e sobre a cidade de Lisboa.


Falas de uma nova vaga de imigração que surge depois da vitória de Bolsonaro e aplicas a essa vaga o mito do “bom selvagem”. Com uma comunidade imigrante mais recatada. Achas que se pode também aplicar a vagas anteriores? 

Acho que essa vaga é ligeiramente diferente porque é a primeira que não sai por necessidade financeira - óbvio que a vaga não é homogénea. É a primeira que sai porque não quer concordar e vivenciar o bolsonarismo. Outras vieram por outras necessidades e tiveram que se virar de outra forma. É uma vaga que vem com outros skills e com outra forma. E obviamente esse tipo de migração vai causar também um atrito maior, porque nas vagas anteriores os brasileiros já eram vítimas de um certo preconceito financeiro no próprio Brasil. Então quando eles vêm para cá, mudam de país mas a realidade é a mesma. Está num emprego que alguém lhe trata mal, mas ele era maltratado lá também e aqui está ganhando dinheiro e manda para o Brasil, mas essa outra vaga que vem tem outra capacidade de articulação, consegue transitar de outra forma e isso gera um atrito, porque você começa a ocupar um espaço que o local não estava à espera. 

Durante a narrativa, as personagens têm muita relação com a política brasileira no plano no plano das eleições. Portanto uma ligação à distância. E com a política portuguesa há uma ligação mais visceral. Isto é, do dia-a-dia, com a xenofobia e o racismo. Concordas?

Sim, porque esse livro teve como propósito trazer a reflexão dos portugueses. Para os portugueses lerem e entenderem como é que um brasileiro médio vive aqui, o que é que ele pensa e como é que ele reage a essas coisas que aparentemente são inofensivas. Mas o livro circula hoje em dia muito mais pela comunidade brasileira do que pelos portugueses. Mas eu não entrei pela política também porque eu acho que não cabia na história. A política está ali nas entrelinhas. Aliás, na hora que eu estava escrevendo o livro, não sabia que o Lula ia ganhar, podia ter perdido. E o livro teria outro desenrolar. É meu lado jornalista, vai acontecendo e eu vou incorporando.

Porque é que a circulação na comunidade portuguesa não é tão grande?

Tem uma certa tradição do mercado editorial português de publicar os autores brasileiros que moram no Brasil. Não estou dizendo que não há espaço para o autor brasileiro, não é isso, mas deu-se um certo costume ao leitor português de só ler autores brasileiros como se fossem uma crónica do Brasil. O que está acontecendo na Amazónia? O que está acontecendo no interior da Bahia? O que está acontecendo na favela do Janeiro? Nunca o autor brasileiro pode tratar o que está acontecendo aqui. Aconteceu-me isso. O livro foi apresentado a alguns editores e todos eles disseram muito educadamente que isso não está acontecendo e que não interessa tocar nesse assunto.

Achas que a comunidade brasileira em Portugal não tem tido voz, portanto?

Existe uma comunidade brasileira que está aqui, e a questão da imigração está também. Mas a gente tem pouco espaço ainda. E agora há uma coisa curiosa, como os jornais têm uma secção brasileira, a gente não entra mais nas outras secções. Antigamente eu entrava no Ípsilon [suplemento de cultura do jornal Público], por exemplo, mas agora a entrevista sai no Público Brasil e só lê quem já está interessado naquela secção.

O livro trata o trabalho de imigrantes brasileiros em Portugal, mas tem como pano de fundo uma livraria. Porquê?

Escolhi um lugar onde essa questão da palavra estava premente e também porque é uma desculpa para o protagonista saber de literatura policial. A língua pode ser tratada porque está lá dentro, é uma forma de xenofobia light e também a razão para o cara saber de literatura policial. 

A história do Mau Selvagem aprofunda e desenvolve sobre uma série de preconceitos com os quais os imigrantes brasileiros vão lidando no dia-a-dia. Isso é um exercício de dar voz? 

O primeiro livro que eu vendi na pré-venda foi de um amigo meu, português, que é casado com uma brasileira. Porquê? Quando ele casou, ele não entendia porque se falava nisso, assédio e preconceito. Mas foi o primeiro a comprar quando pus o livro em pré-venda, até respondeu no Instagram imediatamente. Porque ele sente isso todos os dias agora. E acho que essa última vaga de imigração fez esse atrito, porque a pessoa que trabalha sabe os seus direitos.  Então essa crítica, essa voz, começa a vir com essa última vaga. 

Há uma personagem que batiza um “complexo de jesuíta”, sobretudo entre os clientes portugueses a lidar com trabalhadores brasileiros. De onde surgiu essa ideia?

É um batismo meu. No livro, quem batiza é a psicóloga, mas era uma coisa que eu identifiquei aqui. Porque tem que ter uma pregação, às vezes. Acontecia muito isso. Eu entrava no lugar e tinha uma fila, eu ia para o lugar errado na fila, vamos supor para comprar um bilhete no comboio. O pessoal da fila dizia que era o lugar errado e eu voltava. Podia ter encerrado assunto aí, mas aí a pessoa ficava: “Onde já se viu, vem de fora e quer furar a fila”. E o assunto não encerrava nunca. E isso acontece nos balcões de imigração. Já me aconteceu, não ter o documento certo e começar logo: “Tem que olhar no site, tem que vir com os documentos certinhos, etc”. Tem uma catequização em que parece que nós somos meio incapazes.

Falando no conceito do Mau Selvagem, veio-me também à cabeça um outro Selvagem, o do Admirável Mundo Novo, que faz a travessia inversa à do colonizador, como tu também descreves neste livro, e que apreende esse mundo como uma estranheza. Reconheces aí alguma ligação?

Eu acho que se reflete mais uma estranheza porque a primeira impressão de Portugal para essas pessoas foi como turista. E o tratamento é outro. Quando você vira vizinho, você vira concorrente para ter um imóvel, concorrente para ter trabalho, essa ternura do primeiro contato gera uma frustração. Porque a pessoa quando vem para cá, acha que vai ser sempre tratada com essa gentileza que o turista é tratado. Não sei se isso acontece com outros imigrantes, com os expats, como se fala. Esses o português parece que respeita ou teme. Mas quando a gente vem de baixo, é outra confusão.

Álvaro Filho

Achas que essa confusão está ligada a uma perceção de diferença social sobre os imigrantes? Essa classificação que fazes (expats/imigrantes) e que sugere diferentes funções sociais e económicas?

Eu sou contra quando se justifica a presença do imigrante pelo viés económico. Porque isso dá uma ideia de que a gente é importante só por causa disso. E que é como se a gente fizesse parte do Orçamento do Estado. Acho isso perigoso, inclusive porque gera um entendimento que você é importante por causa disso. Que é uma coisa pública, e que o Estado pode mandar em você. Você vira um bem.

Escrevias este livro durante as eleições no Brasil. Cá em Portugal as coisas mudaram.  Sente-se mais confronto por causa da imigração e o Chega tem 50 deputados. Se escrevesses hoje, mudavas alguma coisa?

Eu acho que escreveria um outro livro. Esse livro não é tão radical como parece. Como há uma radicalização do processo, isso mereceria uma radicalização na narrativa. Interessa-me muito isso, como é que tem um brasileiro de extrema-direita em Portugal. Eu acho que ia fazer esse exercício, para um personagem de extrema-direita racista, como o deputado brasileiro do Chega. Porque teria que ser uma coisa dessa forma, eu acho revoltante mesmo. Eu acho que há uma acentuar desses sentimentos. Por exemplo, eu sou ciclista, e quando entrou o Moedas na Câmara Municipal de Lisboa, e queria retirar as ciclovias, eu já notei os motoristas mais agressivos. Com 50 deputados do Chega, não sei se é uma coisa psicológica, mas já notei que as pessoas não têm tanto receio para ter esse discurso. Falam comigo falando de uma pessoa, que sou eu, para mim. 

Entretanto a situação dos imigrantes também se tornou mais complicada com as políticas do atual governo, sobretudo a retirada da manifestação de interesse. A mesma história sobre a qual escreveste agora teria outros termos?

Sim, até porque achei maquiavélica a posição do governo de dizer que existem imigrantes melhores que outros. Inclusive dizer que o brasileiro não vai ter problema, pode fazer manifestação de interesse. Porque isso é uma tentativa de desarticular o trabalho com os outros migrantes. Eu acho péssimo. Eu acho que cada brasileiro que fala português tem que ser responsável por esse outro imigrante que não fala. Eu me sinto responsável por Mister Khan, que tem uma mercearia na minha rua. Eu me sinto responsável e explico, vai ter isso, vai ter aquilo. E ele também se preocupa connosco. 

Tens intenção de continuar a escrever para descodificar estes problemas?

No próximo livro vou tratar essa questão do problema na educação, porque o meu filho sofreu alguns problemas. A professora disse que ele não ia passar de ano se não falasse português. Ele está aqui há oito anos e pouco, chegou com um ano. Ele não tem amigos brasileiros, todos os amigos são portugueses. Não tem primos. Ele só tem um pai, a mãe e o irmão. E o YouTube. Tentei resolver esse problema na DGE [Direção-Geral da Educação], mas não resolvi, só que a professora teve de ser substituída. Mas era um negócio ostensivo, dizia para os colegas: “Não gosto como o menino fala, vai ficar falando errado”. E a gente só sabia disso pelos pais dos outros, porque os meninos quando chegavam em casa contavam aos pais. 

Daniel Moura Borges
Sobre o/a autor(a)

Daniel Moura Borges

Militante do Bloco de Esquerda.