África: 63% da população das cidades não consegue lavar as mãos

11 de junho 2020 - 13:46

O crescimento económico da África Subsariana nas duas últimas décadas não foi inclusivo e 437 milhões de pessoas vivem na pobreza extrema. A previsão para 2030 é que nove de dez pessoas em extrema pobreza no mundo viverão na região, diz o economista Raphael Bicudo entrevistado por Patricia Fachin para a Unisinos.

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Raphael Bicudo.
Raphael Bicudo.

Os primeiros casos de contaminação por covid-19 no continente africano foram oficialmente registados no final de fevereiro e início de março na cidade de Lagos, na Nigéria, e em Dacar, capital do Senegal, ambas localizadas na África Subsaariana, onde estão 47 dos 54 países africanos. Até o final da semana passada, 99.062 pessoas foram infetadas pelo novo coronavírus em todo o continente, sendo que a África Subsaariana é o epicentro da epidemia até o momento, com mais de 66 mil casos e mais de 1.500 mortes, enquanto a África do Norte, também conhecida como África Setentrional, regista 31.232 casos e 1.522 óbitos, informa o economista Raphael Bicudo à IHU On-Line.

Desde os anos 2000, Bicudo estuda o desenvolvimento económico da África Subsaariana e diz que o alastramento da pandemia na região é visto com grande preocupação por causa do quadro social e do precário sistema de saúde da maioria dos países. “A maior parte dos países da África Subsaariana se depara com sistemas de saúde globalmente precários e de baixa capilaridade espacial. Mais da metade da população não tem acesso a serviços de saúde, em função da precariedade dos estabelecimentos e dos equipamentos, carência de material e remédios, falta de camas e Unidades de Cuidados Intensivos, dificuldades de acesso etc.” Na Gâmbia, um pequeno país da África Subsaariana onde vivem aproximadamente 2,28 milhões de pessoas, menciona, “não existem UCIs. A necessidade ultrapassa 1.000 unidades. A Somália conta apenas com 15 leitos de UCI para quase 15 milhões de pessoas, situação semelhante ao caso do Malaui, que conta com 25 unidades de terapia intensiva para 17 milhões, e Uganda com 55 UCIs para mais de 40 milhões de pessoas”.

Nesta entrevista, o economista menciona que o crescimento económico do continente africano nas duas últimas décadas, oriundo fundamentalmente da exportação de recursos naturais para a China, “não gerou uma melhora do quadro social”, impossibilitando a superação da pobreza intergeracional, e 76% dos empregos nos países da África Subsaariana são informais. Esse quadro, ressalta, dificulta a adesão da população a medidas como o distanciamento social. “Milhões de adultos e crianças só possuem essa forma de sobrevivência e isso depende das ruas, dificultando o isolamento social – uma das principais formas de evitar o contágio”. Além disso, pontua, “em Nairóbi, capital do Quénia, existem favelas (chamadas de Mukuru), onde meio milhão de pessoas vivem em condições muito precárias. A maior parte das casas são feitas de papelão ou plástico, inexiste ventilação ou algum tipo de drenagem, não há coleta de resíduos, facilitando a proliferação de doenças. Como separar as pessoas em caso de infeção? Em grande parte da região, não existe esta possibilidade”.

Raphael Bicudo lembra ainda que em muitos países africanos faltam os elementos básicos para enfrentar a pandemia, como água e sabão para lavar as mãos. “63% da população da região que vivem em áreas urbanas (258 milhões de pessoas) não têm acesso à possibilidade de lavar as mãos. O acesso à água nos países da África Subsaariana é extremamente difícil nas áreas urbanas e principalmente nas áreas rurais. Mais de 30% de todas as pessoas nos países da África Ocidental e Central não possuem acesso à água potável”.

Segundo ele, tanto o desemprego quanto a retração das atividades informais poderão gerar consequências ainda mais drásticas pós-pandemia, levando milhões de africanos para a situação de pobreza extrema, “aumentando ainda mais o contingente que já é de mais de 400 milhões”. Na entrevista, Bicudo também reflete sobre como a pandemia de covid-19 pode agravar o enfrentamento de outras doenças que afligem a África, como o HIV, que atinge mais de dois milhões de crianças de zero a 14 anos.


IHU- Qual é a situação econômica e social da África Subsaariana? Quais são as causas desse cenário?

Do ponto de vista estritamente econômico, podemos caracterizar a situação económica dos países da África Subsaariana - ASS, a partir das seguintes fases:

1ª fase, entre 1960-74: crescimento mais rápido. O PIB cresceu a uma taxa média anual de 5,3%. Podemos destacar dois sub-períodos: 1) 1960-70, com o impulso das independências e o lançamento de programas de investimento em infraestrutura – a taxa média de crescimento do PIB foi da ordem de 5,2%; e 2) 1970-74, o boom das matérias-primas, cujo crescimento de receitas permitiu novos programas de investimento – a taxa média de crescimento registou 5,4%.

2ª fase, entre 1974-1981: crescimento mais moderado (taxa de crescimento de 2,4%). Situação de declínio económico, provocada pela quebra do impulso inicial da década de 1960, decorrente da queda acentuada do preço das matérias-primas da segunda metade da década de 1970. O período que compreende 1977 a 1981 foi marcado pelo forte endividamento dos países da África Subsaariana.

3ª fase, entre 1981 e 1993: foi a fase da chamada “década perdida”, com uma taxa média de crescimento da ordem de 1%. Foi também o período do ajustamento estrutural, dado o peso que a agenda das reformas económicas do Banco Mundial e do Fundo Monetário Internacional - FMI acabou por exercer sobre o continente.

4ª fase, desde 1993: fase tímida de recuperação, com uma taxa média de crescimento anual de 3,2%. Um dos fatores responsáveis por tal recuperação foi o fluxo de Investimento Externo Direto - IED, cujo crescimento está aquém do que acontece em outras regiões em desenvolvimento, mas que, comparado com o passado, é significativo para a ASS.

5ª fase, a partir dos anos 2000: as economias da África Subsaariana passaram a apresentar um crescimento económico bastante significativo, da ordem de 5,5% a 6% a.a., com algumas oscilações e situações diferenciadas entre os países, praticamente até o ano de 2019. Esse período de crescimento pode ser explicado pelo aumento das exportações de recursos naturais (commodities: minerais, metálicas e agrícolas) para a China, por um maior volume de Investimento Externo Direto, na sua maior parte chinês, bem como pelo aumento de obras públicas na região.

No tocante às questões sociais, a região da África Subsaariana apresenta indicadores bastante negativos, comparativamente a outras regiões. O crescimento económico obtido ao longo dos anos 2000 pode ser considerado como não inclusivo, do ponto de vista social, principalmente quando olhamos para os números da pobreza extrema (famílias que vivem com US$ 1,90 dia) que, segundo o Banco Mundial, em 2019, registou um contingente de 437 milhões. Cabe acrescentar, ainda, que as projeções para 2030, segundo o mesmo Banco Mundial, indicam que, de cada dez pessoas em situação de pobreza extrema, nove viverão nos países da África Subsaariana.

Pobreza intergeracional

A África Subsaariana, segundo a UNFPA da ONU (Órgão para os estudos da população da ONU), apresenta uma população de aproximadamente 1.080.429 pessoas, com uma taxa de crescimento populacional de 2,7 a.a. (2000-2018). A população com menos de 18 anos gira em torno de 530.744, e aqueles com idade inferior a cinco anos perfazem um total de 171.759. Dessa forma, mais da metade da população é considerada jovem. Quando cruzamos os dados populacionais com os indicadores de pobreza extrema, bem como outros indicadores sociais, isso nos remete ao problema da pobreza intergeracional. Ou seja, as crianças e jovens da África Subsaariana, provavelmente, terão uma vida igual ou pior daquela vivida por seus pais.

Outros indicadores sociais importantes dizem respeito à Taxa de Mortalidade de menores de cinco anos (TMM5) - por mil nascidos vivos e a expectativa de vida ao nascer. Em ambas, a região da África Subsaariana apresenta evolução, quando consideramos o ano de 2000 e 2018. A TMM5 era 153 em 2000, passando para 78 em 2018. Em relação à esperança de vida ao nascer na região, passou de 50 anos em 2000, para 61 anos em 2018 – baixo para os padrões mundiais, o que não deixa de ser um avanço importante para os países da África Subsaariana.

Cabe acrescentar, também, a gravidade da situação referente à insegurança alimentar na região. Com base nos últimos dados da Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura - FAO, o número de pessoas que não ingere a quantidade calórica necessária para passar um dia é de quase 300 milhões de pessoas. Aproximadamente, 40% das crianças africanas com idade até cinco anos apresentam quadro de desnutrição.

Portanto, mesmo com uma fase bastante positiva de crescimento económico nas últimas décadas (como falamos acima), a mesma não gerou uma melhora do quadro social. Depreende-se dessa situação, que o crescimento económico por si só não vem sendo suficiente para incluir a maior parte dos africanos na sociedade. Faz-se necessário políticas sociais estruturais nas mais diversas áreas, para tentar reverter o problema da pobreza intergeracional.

 

IHU- Quais são as principais diferenças entre a África Subsaariana e a África Setentrional?

A África Subsaariana corresponde à região do continente africano localizada ao sul do Saara, excluindo, dessa forma, os países que fazem parte do Norte da África (Argélia, Egito, Líbia, Mauritânia, Marrocos e Tunísia). O termo “subsaariano” é derivado da conceção eurocêntrica, segundo a qual o Norte estaria acima e o Sul abaixo – não só em termos de espaço, mas também nos sentidos económico, político e cultural.

 

IHU- Como a pandemia de covid-19 tem impactado a África Subsaariana? Quais são os países mais afetados pela covid-19?

A última atualização em 21/05/2020, apresentada pelo Centro de Controle e Prevenção da União Africana - África CDC, regista um aumento de 95.201 para 99.062 no número de infetados pela covid-19, nas últimas 24 horas e um total de mais de 3.000 óbitos.

Cabe um esclarecimento inicial importante: a minha pesquisa, desde o início dos anos 2000, se concentra sobre a região da África Subsaariana, portanto, vou procurar enfatizar essa realidade ao longo da entrevista.

Sobre o total de infetados e os casos de óbitos decorrentes da pandemia ocasionada por covid-19, cabe apresentar os dados sobre o continente africano como um todo, pois a concentração maior do número de casos até o momento está na África Subsaariana.

A África Ocidental apresenta 27.168 infetados e um total de 578 óbitos e na África Austral, o número de pessoas infectadas é da ordem de 20.616 e 389 mortes - no caso da África Austral, a África do Sul concentra a quase totalidade dos casos, com 19.137 infetados e 696 óbitos. O Norte da África, por sua vez, regista 31.232 casos e 1.522 óbitos.

Seis países concentram 2/3 dos casos no continente africano: África do Sul (19.137), Egito (15.003), Argélia (7.728), Marrocos (7.211), Nigéria (7.016) e Gana (6.486).

Alguns países da região da África Subsaariana estão apresentando evolução no número de infetados, são eles: Camarões (4.288), Sudão (3.138), Djibuti (2.047), República Democrática do Congo (1.944), Gabão (1.567), Somália (1.534), Quênia (1.109), Níger (924), Zâmbia (866) e Burquina Faso (812).

A grande preocupação com o alastramento da pandemia na região se dá em virtude do quadro social e das precárias condições dos sistemas de saúde na maioria dos países da África Subsaariana.

 

IHU- Que medidas têm sido adotadas na África para enfrentar a pandemia? Quais são as diretrizes dos governos?

Os primeiros casos de contaminação foram oficialmente registados nas metrópoles de Lagos (27/02/2020) e Dacar (03/03/2020). Governos e autoridades sanitárias do continente adotaram, quase imediatamente, políticas, medidas e protocolos de prevenção e tratamento semelhantes aos do resto do mundo.

Considerando a precariedade dos sistemas e equipamentos de saúde pública de muitos países, governos africanos levaram imediatamente em consideração que um aumento exponencial dos casos de covid-19 geraria uma situação de colapso nos centros de saúde e estabelecimentos hospitalares. Com o intuito de reduzir a transmissão do vírus, as autoridades agiram rapidamente no sentido de limitar as aglomerações de pessoas em lugares públicos, de promover o distanciamento social, além de adotar medidas de contenção territorial (controle mais rígido das fronteiras terrestres, limitação do tráfego aéreo etc.). Por exemplo: a Gâmbia fechou sua fronteira com o Senegal, na África do Sul foi decretada a quarentena obrigatória, a Nigéria decretou o confinamento nas suas duas cidades mais populosas, no Quénia há um toque de recolher, Angola vem mantendo o isolamento social, ou seja, os governos vêm fazendo um esforço significativo para quebrar a cadeia de transmissão, na maior parte dos casos, contando com vários fatores adversos.

Cabe aqui uma observação: os países da África Subsaariana, através de seus governos, vêm apresentando um comportamento muito superior ao do governo brasileiro. Os países da África Subsaariana seguem as recomendações da Organização Mundial da Saúde - OMS, baseadas nos preceitos da ciência, bem como consideram a opinião de muitos bons especialistas em diversos países da região. Não existe tempo a perder com charlatanice, quando o assunto é salvar vidas.

 

IHU- Que instituições têm desempenhado um papel importante no enfrentamento da pandemia nos países africanos?

Além dos governos já mencionados, o papel de diversas ONGs africanas e não africanas, bem como o de instituições como Fundo das Nações Unidas para a Infância - Unicef, Médico sem Fronteiras, são sempre dignos de nota, além da Organização Mundial da Saúde, da União Africana e a contribuição dos cientistas locais, das universidades. Um coletivo de 25 intelectuais africanos (Diagne, Sarr, Lopes, Mbembe, Nubukpo etc.) destaca que as redes de solidariedade sociais de proximidade e a gestão familiar das doenças, que costumam compensar parcialmente as falhas dos aparelhos de Estado, podem mitigar os impactos sanitários e psicológicos da pandemia.

 

IHU- Quais são as maiores preocupações e dificuldades no momento tanto no âmbito social quanto da saúde? Ainda nesse sentido, como é o sistema de saúde na região?

Na área da saúde, com base em relatórios da Comissão Econômica das Nações Unidas para a África - Uneca, poucos países da África Subsaariana (África do Sul, Senegal, Quénia, Costa do Marfim) dispõem de infraestruturas sanitárias mais adequadas. A maior parte dos países da África Subsaariana se depara com sistemas de saúde globalmente precários e de baixa capilaridade espacial. Mais da metade da população não tem acesso a serviços de saúde, em função da precariedade dos estabelecimentos e dos equipamentos, carência de material e remédios, falta de camas e de Unidades de Cuidados Intensivos – UCI, dificuldades de acesso etc.

Por exemplo, no caso de Gâmbia, não existem UCIs. Neste momento, estão sendo criadas cem em todo o país. A necessidade ultrapassa 1.000 unidades. A Somália conta apenas com 15 leitos de UCI para quase 15 milhões de pessoas, situação semelhante ao caso do Malaui, que conta com 25 unidades de terapia intensiva para 17 milhões, e Uganda com 55 UCIs para mais de 40 milhões de pessoas.

Cabe considerar também que, em muitos países da África Subsaariana, os deficitários sistemas de saúde possuem muitos pacientes acometidos de doenças como a tuberculose, HIV, malária e muitos casos de desnutrição aguda.

No Norte do Mali, o Comité Internacional da Cruz Vermelha aponta que 93% das estruturas sanitárias foram destruídas pelo conflito em curso. O acesso às distantes instalações do Sul do país é oneroso e inseguro demais para a maioria da população. No Burquina Faso, os conflitos no Leste do país provocaram um afluxo de deslocados em cidades médias cujas capacidades sanitárias já beiram a saturação.

Social

Na área social, o problema da alta densidade populacional pode facilitar o alastramento da covid-19 na maior parte dos países da região. Em Nairóbi, capital do Quénia, existem favelas (chamadas de Mukuru), onde meio milhão de pessoas vivem em condições muito precárias. A maior parte das casas são feitas de papelão ou plástico, inexiste ventilação ou algum tipo de drenagem, não há coleta de resíduos, facilitando a proliferação de doenças. Como separar as pessoas em caso de infeção? Em grande parte da região, não existe esta possibilidade.

Um outro agravante é o problema da fome, como salientamos no início da entrevista. A maior parte dos empregos nos países da África Subsaariana estão na economia informal, para ser mais preciso, 76%. Dessa forma, milhões de adultos e crianças só possuem essa forma de sobrevivência e isso depende das ruas, dificultando o isolamento social – uma das principais formas de evitar o contágio.

Acrescento ainda a diminuição da ajuda humanitária – essencial para muitos países da região, ou seja, como a pandemia afeta também muitos países doadores, esses recursos em volume menor irão dificultar ainda mais a situação na região.

 

IHU- Segundo dados do Fundo das Nações Unidas para a Infância - Unicef, 258 milhões de pessoas que vivem na África Subsaariana não podem lavar as mãos porque não têm acesso a água e sabão. A realidade é mesmo esta? Que informações o senhor tem sobre isso?

De fato, os dados conferem. Em muitos países da região falta o básico, como água e sabão. Conforme apontam os dados do Unicef, 63% da população da região que vivem em áreas urbanas (258 milhões de pessoas) não têm acesso à possibilidade de lavar as mãos. O acesso à água nos países da África Subsaariana é extremamente difícil nas áreas urbanas e principalmente nas áreas rurais. Mais de 30% de todas as pessoas nos países da África Ocidental e Central não possuem acesso à água potável.

No Sudão do Sul, somente 34% dos lares conseguem acesso a um poço ou uma pia coletiva em menos de 30 minutos. Dessa forma, a limpeza regular das mãos usando sabão e álcool em gel enfrenta também a dupla problemática da penúria de produtos e do baixo poder aquisitivo da maioria da população. Diante desse quadro, as condições de higiene, uma das principais formas de evitar o contágio, tornam-se uma tarefa bastante complexa.

 

IHU- Como a experiência que os países africanos tiveram com o enfrentamento do vírus ebola contribui para o enfrentamento da covid-19? Qual é a situação em relação ao vírus ebola neste momento?

A epidemia do vírus ebola teve início em março de 2014, na Guiné, e propagou-se para países vizinhos como Libéria, Serra Leoa e Nigéria, atingindo quase 30 mil pessoas e levando mais de 11 mil à morte. A epidemia foi contida apenas no final de 2015.

A experiência principal decorrente do enfrentamento do ebola, e que pode ser utilizada neste momento, seria a questão do isolamento social, maior atenção com as fronteiras, cuidados maiores com a higiene das mãos para aqueles que possuem condições adequadas para isso.

Em abril deste ano, foram detetados alguns novos casos de ebola na República Democrática do Congo, na província do Kivu Norte.

 

IHU- Que outras epidemias têm sido frequentes na África e como os países têm lidado com elas?

A situação do HIV na região ainda é bastante preocupante. Do total de 37,9 milhões de pessoas vivendo com o HIV, 68% fazem parte dos países da África Subsaariana, segundo a Unaids [Programa Conjunto das Nações Unidas sobre HIV/Aids]. O último Relatório do Unicef (2019) sobre a situação infantil no mundo apresenta indicadores bastante estarrecedores sobre o número de crianças infetadas pelo HIV. O total de meninos e meninas, com idade entre 0-14 anos, vivendo com HIV na região da África Subsaariana é da ordem de 2.430.000. O total mundial nessa mesma faixa etária é de 2.700.000 crianças infetadas pelo vírus.

A pandemia do coronavírus pode também prejudicar os programas de luta contra doenças e epidemias preexistentes (tuberculose, sarampo, malária etc.) suscetíveis de perder parte dos recursos financeiros que lhe são atribuídos por governos e ONGs.

As mesmas dificuldades do ponto de vista das condições do sistema de saúde na região, bem como os problemas sociais, geram uma série de transtornos para o combate de diversas outras epidemias que sempre fizeram parte da realidade dos países da região. Caso o número de infetados pela covid-19 venha a aumentar na África Subsaariana, o setor de saúde, já bastante debilitado, poderá deixar muitas pessoas sem acesso a qualquer tipo de atendimento.

 

IHU- Quais são as projeções económicas e sociais para a África Subsaariana pós-pandemia?

Ao longo do período 2000/2014, a trajetória das economias africanas tem sido caracterizada por um ritmo de crescimento do PIB superior à média mundial. Após esse período, observamos uma desaceleração da expansão económica nos últimos anos. O menor ritmo de crescimento afeta particularmente os países exportadores de petróleo e de minérios, além de um forte aumento do nível do endividamento público. Fica evidenciado também que, salvo exceções como Etiópia, Ruanda ou Senegal, a inserção competitiva na globalização não estimulou a diversificação de economias que seguem dependentes das exportações de um pequeno número de bens primários.

Segundo o Banco Mundial e o Fundo Monetário Internacional, ambos antecipam um cenário recessivo para a região da África Subsaariana. Os economistas da instituição preveem uma queda do PIB oscilando entre -2,1 e -5,1% em 2020, caracterizando, assim, a primeira recessão desde o final da década de 1990. Há uma combinação de fatores como a desorganização dos circuitos produtivos e comerciais, a queda dos Investimentos Diretos Externos - IDE e outros fluxos financeiros, como ajuda internacional, remessas de trabalhadores migrantes, receitas do turismo etc., bem como os impactos do confinamento e das restrições à circulação.

Os impactos da covid-19 afetam a economia mundial como um todo, fazendo com que a retração seja da ordem de 2,0% a 3%, e o volume do comércio mundial, que já vinha apresentando enfraquecimento nos últimos dois anos, poderá se contrair entre 13% e 32% em 2020.

Considerando os principais parceiros comerciais, com destaque para a China e a Zona do Euro, deve impactar os países africanos mais integrados às redes do comércio mundial de commodities da ordem de 35% para os países da região, afetando principalmente os países exportadores de petróleo (Nigéria, Angola, Chade, Guiné Equatorial, Sudão do Sul, República do Congo). A renda das exportações desses países já tinha sido impactada pela queda do preço do barril decorrente da guerra comercial entre Arábia Saudita e Rússia.

No tocante ao turismo, os países mais afetados deverão ser a África do Sul, Cabo Verde e o Quênia.

Questões sociais

Sobre as questões sociais, começo destacando os possíveis impactos entre os grupos mais expostos à contaminação intracomunitária pelo coronavírus: eles figuram os refugiados, deslocados e outras vítimas de conflitos e perseguições, um contingente de aproximadamente 26,4 milhões de pessoas, segundo o Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados - Acnur.

No Sudão do Sul, 200.000 pessoas vivem em campos superpovoados e sem acesso a instalações sanitárias adequadas. As restrições à circulação das pessoas, que se impõem aos profissionais do setor humanitário, são suscetíveis de agravar ainda mais a situação, prejudicando o acesso das agências da ONU e as ONGs aos campos.

O impacto da pandemia sobre as famílias africanas pode, também, ser considerável. A combinação entre o aumento do desemprego – 20 milhões de empregos formais estariam ameaçados – e de retração das atividades informais, que representa mais de 70% na região, pode levar milhões de africanos para a situação de pobreza extrema, aumentando ainda mais o contingente que já é de mais de 400 milhões.

 

IHU- Como as viagens do papa Francisco à África Subsaariana repercutiram na região? Que repercussões o senhor tem visto nesse sentido?

A viagem do papa Francisco para Uganda, Quênia, República Centro-Africana foi bastante importante para enfatizar o respeito e a tolerância em relação à diversidade religiosa.

No que diz respeito às questões sociais, chamou atenção para problemas como de crianças soldados, refugiados, mutilados de guerra, as vítimas do HIV, condenando todas as formas de desigualdade, e enfatizou também o problema da mudança climática.

 

IHU- Deseja acrescentar algo?

Gostaria de deixar claro que as minhas reflexões sobre os países da África Subsaariana estão baseadas em estudos que venho fazendo desde o início dos anos 2000 e, principalmente, em mais de uma década de docência em Angola em cursos de Pós-Graduação, oferecendo a disciplina Macroeconomia do Desenvolvimento voltada para África Subsaariana e Angola.

Dessa forma, enfatizo alguns pontos que julgo importantes, para a reflexão sobre a região:

(i) não existe uma África e sim várias Áfricas numa só. A diversidade entre os países é muito grande, portanto, deve ser considerada;

(ii) apesar dos indicadores sociais pouco favoráveis, não compartilho a visão baseada no afropessimismo, qual seja, de um presente e futuro caótico para a região, nem um otimismo exagerado. Acredito muito no potencial de resiliência do povo africano;

(iii) uma região na qual brotou um dia o movimento Pan-Africanista e pessoas do mais alto gabarito, como os líderes Amilcar Cabral, Mandela, Agostinho Neto, Lumumba, e nas artes, Cesaria Évora, Mia Couto, Pepetela e Agualusa, pode e deve pensar de forma endógena, fazer sua própria reflexão acerca de seu presente e futuro.


Raphael Bicudo é mestre em Economia Política pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUCSP e doutorando em História Econômica pela Universidade de São Paulo - USP. Atualmente, leciona na Universidade Presbiteriana Mackenzie, na Fundação Getulio Vargas - FGV, no Centro Universitário Belas Artes e na BBS Escola Internacional de Negócios, em Luanda, Angola. É autor de “A Economia Social de Angola e da África Subsaariana” (São Paulo: Editora Xamã, 2012).

Entrevista de Patricia Fachin para a Unisinos.