O jornal Público publica este sábado um trabalho do Investigate Europe sobre um caso de conflito de interesses no Governo português. Trata-se de Bernardo Correia, ex-responsável da Google em Portugal e que foi escolhido este ano para o cargo de Secretário de Estado da Digitalização. Na carteira de rendimentos declarada ao Tribunal Constitucional, o governante incluiu mais de meio milhão de euros em ações da Google, que recebeu enquanto complemento salarial quando trabalhava na empresa onde auferiu no ano passado 44 mil euros mensais.
Agora, Bernardo Correia passou a ganhar num ano com o salário de governante apenas 15% do que ganhava por mês na Google. Uma quebra salarial que em contrapartida lhe garante influência sobre a legislação nacional que afetará a empresa para a qual trabalhava. Segundo o Investigate Europe, essa influência fez-se sentir mal chegou ao Governo, alterando a proposta de lei preparada pelo anterior executivo de Luís Montenegro para tornar a lei portuguesa compatível com a regulação europeia dos serviços digitais que diz ter por objetivo principal “evitar as atividades ilegais e nocivas online e a propagação da desinformação”.
Em resposta ao Investigate Europe, Bernardo Correia confirma deter uma carteira de títulos avaliad em cerca de 900 mil euros, da qual fazem parte as ações da Google e de um fundo português de capital de risco que não identificou. Já sobre a lei que impede governantes de intervir em atos que tenham influência numa empresa de que tenha ações no valor superior a 50 mil euros, ou de que tenha sido dirigente nos três anos anteriores à posse governativa, responde apenas que “qualquer membro do Governo obedece a um conjunto de regras muito específico que regulam essas situações”, pelo que não teme estar em situação de conflito de interesses.
Entidade Reguladora dos media e Comissão de Proteção de Dados foram excluídas da regulação
A primeira proposta de regulação, ainda aprovada no Governo de António Costa quando já estava demissionário, não agradou a Bruxelas, que abriu um processo no Tribunal Europeu contra Portugal. O documento ainda está em vigor, porque a anterior lei do Governo Montenegro que lhe sucedeu não chegou a ser aprovada. Esta previa que a fiscalização das empresas tecnológicas fosse feita pela Anacom, que regula as empresas de comunicações, juntamente com a Entidade Reguladora para a Comunicação Social (ERC) e a Comissão Nacional de Proteção de Dados (CNPD), em linha com as legislações da maioria dos países da UE.
Quando chegou ao Governo, Bernardo Correia alterou essa proposta, passando a concentrar a fiscalização na Anacom, cujos membros são nomeados pelo Governo, e excluindo as outras duas entidades. Um modelo que encontra par apenas em Malta e na Roménia, dois países com conhecidos problemas ao nível da regulação do espaço digital: o primeiro acolhe muitas das empresas de jogo online ilegais e o segundo teve as eleições presidenciais anuladas pelo Tribunal Constitucional por suspeitas de manipulação da opinião pública nas redes sociais.
A lei acabou por ser aprovada na generalidade em setembro com os votos favoráveis do PSD, CDS e JPP e a abstenção do PS, Livre e PAN. No parecer negativo entregue aos deputados, a CNPD alertou para “sérios riscos de incoerência normativa” que podem gerar “desconformidades na aplicação” da lei europeia de regulação dos serviços digitais. Já a ERC, a quem os deputados nem tinham pedido um parecer, entregou à mesma a sua apreciação, dizendo que a escolha do Governo “coloca em causa o princípio da independência das entidades Reguladoras (…), opta por uma solução administrativa centralizada, potencialmente menos eficaz e geradora de insegurança jurídica.”
No próprio dia da aprovação da lei, a vice-presidente da Anacom nomeada em fevereiro pelo Governo, defendeu numa conferência a necessidade de “compromissos dinâmicos” entre os interesses dos cidadãos e os das empresas tecnológicas. “Eu tenho os direitos fundamentais das pessoas singulares e tenho os direitos fundamentais das empresas. As empresas também têm direitos fundamentais”, afirmou Raquel Castro, equiparando as pessoas que são vítimas de desinformação e burlas online às poderosas multinacionais tecnológicas de Silicon Valley.