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Especialista em saúde pública fala da covid-19 em Moçambique

Hélder Martins, antigo Ministro da Saúde, salienta que quando a vacina chegar ao mercado, os países de África serão os últimos a recebê-la, já que “os fabricantes, primeiro vão vacinar os países deles”, e aponta: “as medidas de prevenção é que devem nos preocupar.”
Hélder Martins, antigo Ministro da Saúde de Moçambique
Foto de Magazine CRV | Facebook

Numa entrevista à STV, Hélder Martins, fundador da Frelimo, antigo Ministro da Saúde de Moçambique e especialista em Saúde Pública, faz uma análise sobre a situação pandémica da covid-19 no país. Entre outras questões, faz comparação entre a crise em Moçambique com o resto do mundo, fala sobre o uso da máscara e sobre a polémica medida em Moçambique da desinfeção nos túneis, assim como do mecanismo de testagem e do números de assintomáticos no país. 

Hélder Martins não ficou surpreendido com os números epidemiológicos da doença em Moçambique porque “o que nós assistimos no mundo inteiro é que o número de casos está sempre a aumentar, e no início, o aumento é ligeiro. Mas, depois, a curva começa a subir.” Há quase dois meses que se confirmou o primeiro caso positivo no país e o número atual de infetados é de 104. Para o antigo Ministro da Saúde, a proporção de positivos é baixa relativamente ao número de habitantes e salienta o conceito de “doença benigna”, já que “temos um recorde mundial de assintomáticos” e “os assintomáticos é um sinal de benignidade”. Segundo um estudo, o nível de assintomáticos na China é de 78%, mas “em Moçambique já chegamos aos 84%”. 

A testagem no país, por dia, aumentou “exponencialmente” e a taxa de positivos diminuiu. A testagem em Moçambique, segundo o especialista em Saúde Pública, está a ser feita com base em critérios científicos, isto é, “baseando-se na vigilância epidemiológica” e não “a torto e a direito” porque a testagem é cara. Um teste custa 11 mil e tal meticais, quase 150 euros. Por isso, aposta numa testagem dirigida. 

Hélder Martins discorda dos modelos apresentados pela OMS para prever o pico de pandemia em cada país porque são “modelos matemáticos que foram desenvolvidos nos países do norte, e que estas instituições do norte tomam conta de África e fazem projeções lá. Todas essas projeções têm-se revelado falsas.” E refere um estudo sobre Moçambique feito pelo Instituto de Higiene e Medicina Tropical de Lisboa que “não tem valor nenhum, porque eu acho que não conhecem toda a realidade.”

Os três fatores para condicionar o desenvolvimento da pandemia 

Para o fundador da FRELIMO, existem três grupos de fatores que podem condicionar o desenvolvimento da covid-19: O primeiro é o estado imunitário da população e “que nenhum destes modelos matemáticos teve isso em conta” porque “pode ser uma capacidade imunitária geral, aquilo que chamam de efeitos não específicos, ou imunidade tardia”. O segundo fator é o ecológico, tal como o clima e dá o exemplo dos países do hemisfério Norte que estão no inverno e “é onde está a haver muitos casos”, enquanto no hemisfério Sul “têm tido muito menos casos em relação à sua população”. O terceiro fator são as medidas implementadas pelos países e aqui dá o exemplo da Suécia que “tomou muitas medidas diferentes dos outros” e decidiu não encerrar as escolas, mas porque eles têm condições para implementar isto já que “habitualmente só há 18 alunos por sala de aula.” 

Para Hélder Martins, a OMS criou “um cardápio” com medidas à base da ciência e cada país aplica-as com diferente “intensidade”. 

Sobre Moçambique, avançou que “não tem uma bola de cristal”, portanto não consegue prever quando será o pico no país e prefere fazer uma gestão a curto prazo, mês a mês.

A polémica dos túneis de desinfeção 

Cada vez tem sido mais usual no país a aplicação de túneis de desinfeção para supostamente desinfetar as pessoas, mas que começou por ser só utilizada em mercadorias. Sobre isto, Hélder Martins, refere que “eu próprio, numa intervenção pública que tive há alguns tempos elogiei a iniciativa que começou nos municípios de Chimoio, mas que entretanto, se espalhou por outros sítios, de fazer fumigações, pulverizações de objectos, de veículos, superfícies, de móveis, de corrimões, botões de elevadores e também de espaços públicos e no chão das ruas. Sobre os túneis criou-se uma ideia de que é possível desinfectar pessoas.” Mas afirma que isto não tem qualquer cabimento científico e há vários perigos associados a esta prática.

Sobre outras medidas no âmbito da covid-19, existe uma preocupação no país relativamente às crianças. As aulas foram suspensas, mas as crianças passam muito tempo na rua, tal como fazem os adultos, mas o antigo Ministro é completamente contra o “lockdown” que foi aplicado noutros países. “Sou contra o lockdown, contra o confinamento obrigatório e sempre serei, porque em África não é possível. Os efeitos colaterais que isso teria sobre a economia das famílias seria terrível. As pessoas não iam morrer de covid-19, iam morrer de fome”, refere e aponta falhas a comunicação “eu acho que talvez o que está a falhar é a campanha de comunicação, de fazer passar a mensagem”.

O uso da máscara

Ao longo da entrevista reforçou a necessidade do uso da máscara, mas alertou que “se for mal usada, pode ser um perigo”, já que “uma máscara tem que ser colocada para tapar a boca, o nariz e o queixo e depois não se deve andar a tocar na máscara, nem na cara. Há um estudo que mostra que as pessoas normalmente tocam 32 vezes a cara, por hora. Este é um estudo que foi feito muito antes da Covid-19.” 

Dada a pouca capacidade que Moçambique tem para importar este produto, o especialista em Saúde Pública recomenda o fabrico próprio e informa que “o Ministério da Saúde já tem um manual de como produzir a máscara, mesmo as máscaras caseiras”, portanto “quem tiver máquina de costura que aproveite e faça”.

Restrições nos hospitais devido à covid-19 

Em Moçambique, à semelhança de outros países, foram aplicadas restrições nos serviços hospitalares, tal como a suspensão de consultas de rotina, mas Hélder Martins considera que sobre isto “houve excesso de zelo” porque “as unidades sanitárias estão muito bem organizadas e já estão criadas as condições de triagem. Quando alguém sai de lá é triado se pode ser covid-19 ou não. Se for, vai para um lado, se não, vai para outro” e vinca que “a área do covid-19 está vazia, está completamente vazia. Não há nenhuma cama ocupada. O país está a se preparar para, no caso de surgirem doentes, haver um sítio para irem, mas, por enquanto, não estão a ser utilizadas porque não foi preciso. Agora, houve uma certa precipitação, em dizer para as pessoas não irem às consultas normais”. Pede para que os profissionais de saúde moçambicanos que “parem de ver televisões estrangeiras” porque a situação em Portugal e outros países é diferente a de Moçambique. 

Durante estas últimas semanas têm aparecido soluções milagrosas, por exemplo, à base de chá, como a que anunciou recentemente o Madagáscar que tem nome de “COVID organics” e já foi importada por alguns países do continente africano, mas Hélder Martins afirma que “não tem nenhuma evidência científica”. No entanto, o antigo Ministro da Saúde aconselha a reforçar o sistema imunológico como por exemplo com “uma alimentação saudável, com alimentos que sejam ricos em vitamina C e com a exposição ao sol”. 

Ainda vamos ter que esperar pela vacina

Sobre a vacina e a sua distribuição pela população considera que não é para já porque é um processo com várias fases e demorado, o também antigo funcionário da OMS refere que “neste momento estão a ser testada sete vacinas em todo o mundo” e que as várias fases vão demorar, mas “agora, em virtude da covid-19 está a fazer-se tudo para acelerar os passos”. Mesmo assim, “quando chegar ao mercado, nós vamos ser os últimos a receber a vacina. Os fabricantes, primeiro vão vacinar os países deles. Eu acho que daqui até lá, as medidas de prevenção é que devem nos preocupar.” 

 

Entrevista completa, aqui. 

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