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Cronologia da violência das praxes

Com base nas notícias compiladas por coletivos antipraxe ao longo da última década e meia, lembramos aqui alguns dos casos denunciados por vítimas da praxe que chegaram à comunicação social.
Foro Sónia Garcia/Flickr

Novembro 1999
Uma aluna da Escola Superior de Educação de Leiria declara-se vítima de agressões físicas e humilhações durante as praxes: num “tribunal de praxe” a “sentença” dita o corte do seu cabelo. É a primeira vez que alguém anuncia a vontade de iniciar um processo em tribunal – o que não chegou a acontecer.

Janeiro de 2003
Ana Sofia Damião, aluna do Instituto Piaget de Macedo de Cavaleiros, denuncia publicamente as agressões de que terá sido alvo durante as praxes do início do ano lectivo. Insultada, obrigada a despir-se e a vestir-se novamente – agora com a roupa interior por fora –, forçada a simular orgasmos, a relatar pormenores da sua vida sexual e a simular relações sexuais com colegas. Pedro Lynce, Ministro da Ciência e Ensino Superior da altura, declara que levará “até às últimas consequências” uma investigação sobre o sucedido e que revela que, entre 1997 e 2000, foram arquivados 9 casos de violência nas praxes.
No final deste caso, agressores e agredida foram sancionados, por igual, com uma repreensão escrita – Ana Sofia Damião “pela forma subjectiva excessiva como relatou os factos, que sabia não terem a gravidade que decorre da sua exposição”; os agressores “por não terem a preocupação de avaliar se as ordens da praxe poderiam ferir susceptibilidades individuais”.

Março de 2003
Ana Santos, estudante da Escola Superior Agrária de Santarém, decide avançar com a denúncia pública. Faz uma queixa na polícia, envia uma carta para a direcção da escola e uma carta para o Ministro do Ensino Superior. Teria sido “esfregada” com bosta, insultada e impedida de usar o telemóvel durante várias horas e, finalmente, abandonada a quilómetros de casa. O Presidente do Conselho Directo da ESAS, Henrique Soares Cruz, abre um inquérito. Fazendo contudo saber que, no seu tempo de estudante, também tinha “recebido bosta no corpo”, o que era uma “tradição da escola”. O Tribunal de Santarém viria a condenar sete estudantes, numa sentença confirmada em 2009 pela Relação de Évora, a multas entre os 640 e 1600 euros. Foi a primeira condenação da praxe em tribunal.

Maio de 2003
Um grupo de alunos do Instituto Piaget de Macedo de Cavaleiros denuncia ter sido agredido durante um “tribunal de praxe”. Os alunos agredidos chegam a prometer fazer queixa na polícia, mas acabam por não avançar. O presidente do Instituto suspende, durante 15 dias, os 25 alunos que organizaram o “tribunal” e anuncia a suspensão das praxes “por tempo indeterminado”, pelo menos “até à elaboração do código de praxes com base na Carta de Princípios”.

Outubro de 2003
Mais uma queixa no Instituto Superior de Engenharia de Coimbra: um aluno denuncia que foi obrigado a atar, no seu pénis, um cordel que amarrava um tijolo. A Ministra da Educação recebe um carta assinada pelo pai do aluno e declara que exigirá todos esclarecimentos à escola. O caso ficará por aqui.

Novembro de 2003
As praxes na polícia são notícia. “Praxe sexual” no Instituto Superior de Ciências Policiais. Há queixas e ameaças de expulsão. Segundo as notícias, os caloiros teriam sido obrigados a lamber chantilly num pénis de borracha aplicado num manequim. Uma das vítimas afirma na imprensa: “estive duas noites sem dormir e nunca fui tão humilhado”.

Outubro de 2004
A revista Grande Reportagem publica um artigo em que revela a morte, em circunstâncias estranhas, de um membro de uma tuna da Universidade Lusíada de Famalicão. “Morte na tuna” ou “vítima da praxe” são títulos da responsabilidade da jornalista Felícia Cabrita, que pretendem deixar clara a sua tese: Diogo Macedo foi assassinado, pelos seus colegas, numa “praxe” da tuna em 2001. Um pacto de silêncio entre os envolvidos nunca permitiu apurar a responsabilidade pelo crime. Onze anos depois, a justiça obrigou a Universidade Lusíada a pagar uma indemnização de mais de 90 mil euros à família da vítima.

Novembro de 2004
O processo judicial da Ana Sofia Damião chega à fase decisiva. O juiz responsável pelo processo declara não haver razões para o julgamento, alegando-se que a aluna, ao ter participado nas praxes, o teria feito com consentimento, sem se declarar anti-praxe.

Agosto de 2006
Ana Sofia Damião avança com um processo cível contra o Piaget de Macedo de Cavaleiros. Perdido o processo-crime contra os agressores, tenta agora responsabilizar a escola, exigindo 70 mil euros pelos “danos morais e patrimoniais” decorrentes do caso. É a primeira vez que uma faculdade se vê obrigada a defender-se em tribunal pela sua negligência e conivência com as violências da praxe.

Outubro de 2006
No Porto, uma estudante apresenta queixa na PSP contra uma agressão por um grupo de estudantes e uma ameaça de agressão por parte de dois estudantes, recorrendo a uma colher de pau de grandes dimensões utilizada na praxe.
A Reitoria da Universidade de Aveiro proíbe as praxes no interior do “campus”, na sequência de “excessos” que obrigaram à hospitalização de uma aluna. E lança um ultimato: ou se regulamentam as praxes ou são simplesmente proibidas.

Maio de 2007
A imprensa relata o caso de um aluno da Faculdade de Medicina da Universidade de Coimbra que terá sido ferido no escroto durante um “rapanço” e de outro que teria vários ferimentos no crânio resultante de lhe terem rapado o cabelo. Esta sanção terá sido deliberada por um Tribunal de Praxe. As vítimas decidem não avançar com queixa para além dos organismos das praxes.

Novembro de 2007
Dois estudantes ficaram gravemente feridos em iniciativas ligadas à praxe no mesmo dia, em Coimbra e Elvas. Um aluno do 3º ano da Escola Superior Agrária de Coimbra ficou tetraplégico após uma queda durante as praxes. Em Elvas, um aluno do 1º ano da Escola Superior Agrária caiu do do castelo durante o rallye das tascas da semana de receção ao caloiro.

Outubro 2008
Um aluno do primeiro ano da Escola Superior de Tecnologia e Gestão de Leiria sofreu a ruptura de um aneurisma cerebral, depois de uma praxe académica que culminou com o “baptismo” na Fonte Luminosa.

Junho 2009
O Supremo Tribunal de Justiça dá razão a Ana Sofia Damião e condena o Instituto Piaget a uma indemnização de 38 mil euros, considerando que “um estabelecimento de ensino superior tem o dever jurídico e social de impedir que seja levado à prática nas suas instalações um "Regulamento de Praxes de Alunos" contendo praxes humilhantes e vexatórias, procedimentos constrangedores que podem levar ao exercício de violência física e psíquica sobre os alunos, claramente restritivas dos direitos, liberdades e garantias dos visados”.

Outubro 2009
O Ministério Público acusa oito alunos do Colégio Militar de maus tratos contra três colegas mais novos em 2007 e 2008. Uma das vítimas ficou com um tímpano furado e outra permaneceu mais de um mês numa cadeira de rodas.

Novembro 2009
Tal como na Faculdade de Economia da Universidade do Porto, Instituto Superior Técnico e outras instituições, também o presidente do Instituto Politécnico de Viseu segue a recomendação do ministro Mariano Gago e proíbe as praxes dentro e nas imediações da instituição. Fernando Sebastião aponta outra razão: a denúncia recebida acerca dos “negócios lucrativos” dos organizadores das praxes, que ganham comissões dos bares para onde levam os caloiros, obrigando-os a consumir.

Dezembro 2009
Estudantes do primeiro ano da Escola Superior de Educação de Portalegre denunciam praxes violentas na instituição durante um “tribunal de praxe”. As agressões terão partido de membros da Comissão de Praxe encapuzados, conhecidos por “carrascos” pelos restantes praxistas.

Fevereiro 2010
Alunos do 1º ano do pólo de Chaves da Universidade de Trás-os Montes e Alto Douro (UTAD), queixam-se de séries intermináveis de praxes violentas. Dizem que o mesmo não acontece no pólo de Vila Real da mesma universidade.

Outubro 2010
Aluno do Instituto Superior de Engenharia de Lisboa apresenta queixa ao Ministério da Ciência, Tecnologia e Ensino Superior contra as práticas homofóbicas durante a praxe na semana de receção ao caloiro.

Janeiro 2011
Uma aluna do 1º ano da Academia Militar é internada com um traumatismo craniano, após uma queda durante a praxe.

Março 2011
Estudantes da Universidade Católica de Braga fazem praxe noturna no centro da cidade, instigando os mais novos a acordar e insultar um grupo de sem-abrigo. A PSP foi chamada para conter a rixa que que se seguiu.

Outubro 2011
Duas estudantes de Psicologia da Universidade de Coimbra queixam-se de ser vítimas de agressões durante uma praxe realizada de madrugada, tendo recebido tratamento hospitalar. Quando o assunto vem a público meses depois, o Conselho de Veteranos da Universidade de Coimbra suspendeu as praxes e suspendeu também oito alunos de as poderem realizar, descartando as queixas de agressões por serem “meramente esfera criminal”.  

Abril 2012
Um grupo de docentes da Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra lança um abaixo assinado a alertar para o clima de intimidação sofrido pelas vítimas de praxes violentas, solicitando aos órgãos de gestão medidas de combate a este fenómeno.

Setembro 2012
Uma estudante da Escola Superior de Tecnologia e Gestão do Instituto Politécnico de Beja ficou inanimada e entrou em paragem respiratória durante a praxe. Foi internada nos Cuidados Intensivos do Hospital José Joaquim Fernandes, em Beja e nunca chegou a recuperar, mantendo-se durante um ano com total dependência de terceiros. Cristina Ratinho viria a morrer um ano depois, deixando uma filha de quatro anos.

Dezembro 2013
Seis estudantes com responsabilidade pela organização das praxes na Universidade Lusófona morrem ao serem arrastados pelo mar na Praia do Meco. A imprensa tem revelado fortes indícios de se ter tratado de um ritual de praxe noturna.

Janeiro 2014
António Silva Gomes, professor de Psicologia Aplicada da Universidade do Minho queixa-se de ter sido agarrado e humilhado por praxistas quando tentou intervir numa praxe abusiva na Universidade.
 


Cronologia publicada em 2007 pelo Movimento Anti-Tradição Académica. Foram acrescentados casos posteriores à sua publicação no primeiro semestre de 2008.Fontes: blogue do M.A.T.A, blogue Anti-praxe, jornais Público, Correio da Manhã e Diário de Notícias.

Comentários (1)

Neste dossier:

Praxes: humilhação e impunidade

O país despertou no último mês para a realidade das praxes do ensino superior, esses rituais de humilhação e violência psicológica que ganharam força nos últimos anos e hoje contaminam uma parte importante da vida universitária e do convívio entre estudantes.
Dossier organizado por Luís Branco.

Cronologia da violência das praxes

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“Não há boa praxe ou má praxe, praxe há só uma”

Bruno Moraes Cabral, realizador do documentário “Praxis” - premiado no Doclisboa 2011 e recentemente transmitido na RTP - diz ao esquerda.net que não faz sentido falar de “integração” quando todas as praxes se baseiam em valores de dominação “contrários ao que deviam ser os princípios da universidade”.

Se não agora, quando?

A primeira intervenção que fiz no Parlamento, no final de 2007, foi sobre a violência nas praxes. Seis anos depois, esse exercício de poder e a impunidade continuam a ser a regra, se não dentro, à porta das Universidades.

O que dizia o relatório parlamentar de 2008 sobre as praxes

Por iniciativa do Bloco de Esquerda, a Comissão de Educação e Ciência da Assembleia da República discutiu as praxes e recolheu contributos do meio académico. Mas as conclusões e propostas concretas nunca foram seguidas pelos governos.

Cinco mitos em torno das praxes

O historiador Rui Bebiano regressa a um tema que conhece bem para colocar em causa cinco mitos sobre as praxes: os da “tradição”, “simpatia popular”, “aceitação pelos caloiros”, “prestígio para as instituições” e “integração ou preparação para a vida”. Artigo publicado no blogue “A Terceira Noite”.

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O debate sobre a praxe que surgiu, como uma avalanche, nos media e redes sociais nas últimas semanas apresenta poucas novidades e corre sérios riscos de deixar tudo na mesma, apesar de, pela primeira vez, ter interpelado toda a sociedade e todos os responsáveis, das associações de estudantes ao Primeiro-ministro.

Duas memórias da praxe

A praxe está na berlinda e não é por ser uma versão sofisticada do jogo do berlinde. Para fazer “jogo abaixo”, recordo duas vivências nas duas faculdades por onde passei: o Instituto Superior Técnico e Letras de Lisboa.

A Volta da Praxe

Em meados da década de 1990, a praxe e a “tradição académica” já estavam disseminadas no ensino superior público e privado. Esta reportagem de Luísa Costa Gomes, publicada em 1996 na revista Grande Reportagem, parte dessa realidade para recuar aos últimos séculos da história das praxes em Portugal.

Coimbra não é vossa

Para quem não está a ver como é a vida na cidade que viu nascer a tal de praxe, passo a  narrar. Quinze dias do ano em particular, e muitas das terças e quintas em geral, as leis por aqui não são iguais para todos. Artigo de João José Cardoso, publicado no blogue Aventar.

A praxe coimbrã no fim da ditadura

Este artigo do historiador Miguel Cardina, publicado em 2008 na Revista Crítica de Ciências Sociais, relaciona os movimentos estudantis dos últimos anos da ditadura com as mutações então ocorridas no terreno da praxe académica em Coimbra.

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Em 2003, o Movimento Anti-Tradição Académica juntou-se ao coletivo Antípodas e à República das Marias do Loureiro para lançar um desafio a personalidades de dentro e fora do meio académico: juntarem-se pela primeira vez numa tomada de posição pública contra as praxes.

Receber ou praxar?

O jogo de semântica inerente à distinção entre praxes-que-são-praxes e praxes-que-não-são-praxes é tão inútil quanto revelador da incapacidade da praxe se auto-regular ou sequer olhar para dentro de si mesma.

A praxe é uma aventura

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Praxistas defendem "direito à humilhação"

Praxistas defendem a humilhação como forma de integração na universidade e na vida activa, num debate na Aula Magna, em Lisboa, depois da projeção do filme "Praxis".