Duas memórias da praxe

porMiguel Reis

A praxe está na berlinda e não é por ser uma versão sofisticada do jogo do berlinde. Para fazer “jogo abaixo”, recordo duas vivências nas duas faculdades por onde passei: o Instituto Superior Técnico e Letras de Lisboa.

09 de February 2014 - 4:06
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Foto do Movimento Anti-Tradição Académica.

1) Instituto Superior Técnico, 1997/1998.

Estava eu no segundo do ano do curso de Engenharia Física Tecnológica. Era início do ano letivo, época de praxes. A notícia correu depressa por vários pavilhões da universidade: dizia que um aluno do primeiro ano enfrentara os veteranos recusando enfeitar o seu cabelo com espuma de barbear. Pior: depois dos veteranos, contra a sua vontade, lhe espetarem com a espuma, o novo aluno devolveu a simpatia, sujando os senhores doutores (ultraje). De seguida, esgueirou-se para a zona do Pavilhão Central, exclusiva para as inscrições dos alunos do primeiro ano - a universidade garantira que só nesse pequeno recinto, e apenas nesse pequeno recinto, os novos alunos estariam a salvo da barbárie, a salvo dos borrões de tinta e laca nos impressos.

 

Um punhado de ativistas anti-praxe, em que me incluía, dirigiu-se para o local do crime, onde rapidamente se aglomerava uma multidão de alunos. Muitos de capa e batina, outros não. Mas quase todos ululavam. Sim, gritavam, vibravam, uivavam, tal como no Prós e Contras desta semana. Tinham carne fresca à sua espera. Aguardavam impacientemente que o aluno do primeiro ano saísse do coito. “Nem sabes o que te espera”, “Ó caloiro da m….estás fodi…”, “Agora é que tu vais ver!”. Unanimidade quase absoluta. Urgia repreender exemplarmente o caloiro que desobedecera. Perguntámos a um veterano que quase espumava de raiva: “Quem é o tipo?”, “É aquele, o da camisola da Nike”, respondia, assumindo sem questionar que estávamos ali pelas mesmas razões que eles (não seria óbvio?). “Ah sim, já estamos a ver”, dissemos nós, sem nos revelarmos. Foi aí que pedimos aos seguranças para entrar na zona exclusiva, no sentido de conversar com o aluno para “evitar males maiores”. Assim o fez um de nós, discretamente. Disse-lhe que, apesar da maioria que lá estava à sua espera ansiar por vingança, por mais estranho que parecesse havia gente com bom senso na universidade. Estávamos ali para o ajudar. À saída, rodeámos o aluno e com ele no meio furámos a multidão, num gesto ambíguo que baralhou os veteranos: “será que querem o caloiro só para eles?”.

 

Quando os boçais compreenderam ao que vínhamos, já era tarde. Gritaram de frustração. Tínhamos acabado de lhes roubar a presa pela qual já se babavam. Não podia ser. A perseguição durou até ao exterior da universidade. Sim, tivemos que fugir da também nossa universidade. Corriam atrás de nós em desespero, ameaçavam-nos com tudo e mais alguma coisa. Estávamos na Avenida António José de Almeida. Queriam porrada. Só acalmaram quando, junto a uma obra, um dos nossos - confesso que eu não teria coragem para isso, pois apesar do imperativo ético estava com aquele medo a trepar-me a espinha - pegou numa pedra da calçada e exclamou: “Quem tocar no caloiro leva com o calhau nos cornos!”. Aí tudo mudou: “Calma, calma, não é preciso…e tal…”. Recuaram. Mas não sem antes ameaçarem todos. A mim disseram: “Um dia destes arranco-te esse cabelo e essa barba ao pontapé” (felizmente foi de forma voluntária que acabei por cortá-lo alguns anos mais tarde). Frustrados, desistiram e foram procurar outras presas mais colaborantes, mais “livres” para aceitar a praxe.

 

Recordo este episódio para dar corpo a duas ideias: a primeira é que na praxe não há liberdade e a segunda é que a violência faz parte da praxe.

 

2) Faculdade de Letras de Lisboa, 1999/2000.

 

Há um ano que havia mudado de curso e de universidade. Trocara a Física pela Filosofia. Estava na Direção da Associação de Estudantes, numa lista muito ampla: gente, como eu, do recém-criado Bloco de Esquerda, muito mais gente da JCP, alguns alunos da JS e outros sem qualquer inclinação partidária, todos juntos pelo ensino público, universal, democrático e gratuito. Havíamos deixado a larga distância eleitoral a lista conotada com a JSD. Éramos um grupo muito heterogéneo mas que se ia entendendo até…até a praxe fazer das suas. Afinal, era uma tradição que nunca havia sido questionada. Todos os anos, a Associação de Estudantes dava um punhado de escudos para patrocinar o tribunal de praxe (acho que lá entrei uma vez para distribuir panfletos antipraxe e deparei-me com um ambiente medieval, quais trevas que se distinguiam pela luz de algumas velas). Escudos para comprar velas.

 

E ali estávamos nós numa reunião de Direção, para, no meio de mil outros assuntos, decidir o costume e o óbvio. Apoiar financeiramente o Tribunal de Praxe. Recusámos, numa votação renhida. Pela primeira vez, a Associação de Estudantes não seria cúmplice daquela palhaçada. O que nós fomos fazer…”Injúria! Profanação! Ultraje!”. Foi o suficiente para que quase metade da Direção se demitisse. (por sinal, muitos dos que se demitiram eram próximos da JS). E depois? Com uma Direção enfraquecida, fomos inexcedíveis. Promovemos uma greve que durou dois dias contra o fecho antecipado da biblioteca da faculdade, ocupámos a dita cuja, vencemos provisoriamente adiando o seu encerramento, lutámos em todas as frentes pelos direitos dos estudantes, avivámos culturalmente a faculdade. Tempos bons.

 

Mas enquanto uns lutavam outros preparavam o assalto à AE, pensando nas eleições seguintes. Os mesmos que se demitiram por causa da praxe uniram-se à Direita da faculdade. JS e JSD estavam agora juntas, por um “governo de salvação nacional da praxe”. O ambiente foi escaldante, as eleições foram duras e renhidas: com cerca de 1200 votantes, perdemos por 40 votos. Foi a força da praxe que nos derrotou.

 

Felizmente a história não acabou aqui. Não desistimos e continuámos a mobilizar estudantes para o que interessava: defender o ensino gratuito, lutar pelo investimento na Educação. No ano seguinte, o nosso “Projecto X”venceu as eleições à vontade, e nos anos posteriores também. Durante muitos anos, a Direita da faculdade de letras foi obrigada a contentar-se apenas com os corredores da praxe. O que não é pouco. Na verdade, a nossa Associação de Estudantes nunca combateu diretamente a praxe, limitou-se a evitar envolver-se nela. Até apoiámos tunas e incluiu elementos seus nas nossas fileiras, tentando separar (ainda que questionavelmente, penso eu) as “serenatas” da humilhação. Organizámos receções ao novo aluno sem praxe. Só que a relação de forças interna não permitia ir mais além. Não permitia atacar a praxe com a chancela da Associação de Estudantes. Afinal, provocar o gigante já mostrara ter os seus custos. Sim, o raio da tática.

 

Curiosamente, uma das raras vezes que, nesta época, uma Associação de Estudantes atacou de frente a praxe foi nesse ano de 1999, no Instituto Superior Técnico, quando um grupo de ativistas de esquerda venceu a Direção da Associação de Estudantes. Na receção ao novo aluno, organizaram atividades não só alternativas, como contra a praxe. Impossível esquecer o autocolante da AEIST, que muitos caloiros usaram, com o slogan: “Obrigado pela atenção, mas praxe não!”.

 

Recordo esta segunda história para ilustrar o seguinte: a praxe anda de mãos dadas com o poder. Mais: a praxe é poder. É por isso que vemos dirigentes académicos – como esta semana, no Prós e Contras, o quase envergonhado Presidente da AAC – a defender a praxe. Precisam dela para ganhar eleições. Precisam dela como um general precisa de um exército obediente. No meu tempo de estudante – e acredito que agora assim seja também - ouvia-se muito: “Eh pá, vai ser difícil ganhar as eleições para a Associação de Estudantes, os outros tipos têm a comissão de praxe do lado deles”. Foi sempre este calculismo eleitoral que impediu que o problema fosse enfrentado de frente. Até a JCP - com algumas exceções - recusava hostilizar a praxe, e por vezes preferia até a cumplicidade. Calculismo eleitoral.

 

Mas havia o MATA (Movimento Anti-Tradição Acacémica). Um grupo de ativistas contra a praxe. Éramos vistos por muitos como um bando de aves raras, demasiado sérios, esquisitos e antipáticos. Mais do que nunca, agora apetece perguntar: afinal, quem é que MATA?

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