Coimbra não é vossa

Para quem não está a ver como é a vida na cidade que viu nascer a tal de praxe, passo a narrar. Quinze dias do ano em particular, e muitas das terças e quintas em geral, as leis por aqui não são iguais para todos. Artigo de João José Cardoso, publicado no blogue Aventar.

09 de February 2014 - 4:04
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Foto de Paulo Abrantes.

 

Para quem não está a ver como é a vida na cidade que viu nascer a tal de praxe, passo a  narrar. Quinze dias do ano em particular, e muitas das terças e quintas em geral, as leis por aqui não são iguais para todos.

Hordas de bêbados atravessam as ruas a qualquer hora da noite berrando, no intervalo de elas  em coro exigirem mais caralho que as foda e eles mais cona que os satisfaça, Coimbra é nossa. Todas as regras sobre ruído e manifestações públicas são mandadas às malvas com a cumplicidade amedrontada da PSP, Polícia Municipal e Ministério Público.

Este estado de excepção leva a que o sono dos indígenas e aqui emigrantes seja um direito perdido num território com  uma constituição à parte, a que podíamos acrescentar  a esterqueira em forma de vómitos e detritos vários que temos de suportar na manhã seguinte. Mas é considerado normal numa cidade onde por exemplo o saque e a vandalização não são perseguidos, um longo historial de burlas nas contas  das festas académicas não é investigado, um simples roubo no Museu Académico é narrado ao contrário.

Com toda a naturalidade está convocada uma manifestação para 2ª feira  pressionando um debate televisivo e podem ter a certeza que nem foi cumprida a lei nem será impedida, como sucederia se fosse de outro teor. Recentemente os dirigentes da AAC pura e simplesmente arrendaram o centro da cidade aos seus confrades portuenses que provocaram desacatos sem que se visse um só polícia nas ruas. No dia seguinte aos cortejos da Queima das Fitas bandos alcoolizados invadem as escolas secundárias, entrando nas salas de aula onde até podem estar miúdos de 12 anos, e nem se vê a Escola Segura de prevenção.

Se há tradição que Coimbra não perdeu foi a do foro académico, que tinha guarda (os arqueiros), legislação e prisão própria, só que agora funcionando em regime de completa impunidade.

Questionar isto leva sempre com a eterna resposta: Coimbra vive dos estudantes. Nem é verdade, vive sim da Universidade que é muito mais do que isso, nem isso foi necessariamente um benefício já que teve custos ao longo da História por exemplo no desinvestimento industrial (a cidade do saber era suposto não ter fábricas), e sem querer entrar na especulação do como teria sido se o rei João II não a tivesse trazido para a cidade do Mondego (precisamente porque em Lisboa eram muitas as queixas contra os estudantes e suas praxes), a sua localização geográfica privilegiada teria permitido outras alternativas. Convém recordar que aqui se fundou Portugal e houve o mais parecido com a primeira capital do reino.

Se aproveito o facto de finalmente as ditas praxes serem objecto de discussão nacional para denunciar isto? aproveito, sim senhor.

A tal tradição só o era realmente em Coimbra (e foi-se reinventado como muito bem explica o Rui Bebiano) e, proclamou o Dux* local, dela depois se fizeram “cópias mal feitas” pelo país fora, dando ideia de que a culpa foi da fotocopiadora.

Não é bem assim. Desde a década de 90 que progressivamente as fotocópias entraram em Coimbra e foram objecto de estudo pelos energúmenos locais como ele muito bem sabe: a prática erótica de depilar testículos não tem tradição conhecida, é apenas um exemplo que veio a público porque correu mal e, mais grave, ocorreu num julgamento, essa cerimónia secreta tão peculiar e de que tanto se ouve falar pela cidade, mas que anda envolta num pacto de silêncio.

Coimbra não é vossa. Há muito que o assunto praxe me desinteressou, não apanhei na faculdade mais que os trajes e o sossego nas bibliotecas por alturas da Queima. Pregavam-se algumas partidas aos novos alunos, com piada e sem qualquer humilhação, o facto de não me meter no assunto não impediu que só quando finalista tivesse conhecido os meus colegas de ano porque sempre acompanhei sobretudo com os mais velhos, achei sacanita esquecerem-se de mim para os jantares de curso porque não tinha ido no cortejo e recusara o meu nome no livro respectivo, mas paciência. Coimbra era de todos nesse tempo, em que a distância entre o futrica e o estudante era mínima e entre todos se brindava nas tascas, e em que o Pratas aprendia a fazer cervejão comigo e com o Mário da Costa.

Coimbra não é vossa. É do Manuel que se tem de levantar para que vocês almocem, da Emília que precisa de ir cedo para o mercado para que vocês jantem, do Francisco que tem de sair às 6 com o autocarro que vos vai levar à faculdade, da Fernanda médica que vos trata os comas alcoólicos,  e de quem souber viver connosco, que sempre vos soubemos receber sem pinturas, ordens, insultos e humilhações.

Coimbra não é vossa e está a ficar muito farta de vos aturar, sei do que falo porque antes de doutor fui e morrerei futrica, vi como lentamente aquilo que começou numa boa evoluiu para rituais violentos, repelentes, que envergonham os meus amigos envolvidos na restauração da praxe em 1979. Sim fui anti-praxista sempre com amigos praxistas, porque sempre nos entendemos mesmo discordando sobre o seu regresso, porque tínhamos e temos em comum o que mais vos falta: amar Coimbra, com os seus imensos defeitos mas humildemente sem espaço no coração para as suas pequenas virtudes, e sem precisarmos de o berrar aos outros, que o vinho serve para conversar, discutir, despertar ideias.

Coimbra pode voltar a ser vossa, isolem os canalhas, aprendam a respeitar primeiro os vossos colegas, e depois a todos nós. Vão ver que não dói nada.

* O João Luís Jesus anda nas bocas do mundo. Conheço-o desde a sua primeira ou segunda matrícula, era responsável técnico remunerado da RUC, nunca o vi sendo estudante como profissão, trabalhou em muitas coisas, dir-se-á que hoje é um empreendedor. Senhor de algumas lacunas na inteligência e outros excedentes na esperteza, sempre foi bom moço: pode ser conivente com práticas que destruíram a tal tradição, mas nem deve ter reparado nisso. Não façam dele bode expiatório, lá porque dá a cara, duvido muito que tenha ganho directamente grande coisa com isso.


Artigo publicado no blogue Aventar.

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