De há muito que as «praxes académicas» são noticiadas e debatidas, pelas piores razões, sempre que algum episódio chama a atenção para o seu lado perverso. Mas nunca como agora se tornaram tão visíveis e foram associadas a um tão amplo sentimento público de rejeição. No entanto, ninguém que tenha uma ideia daquilo que de sombrio e ingovernável o seu universo tem vindo a incorporar terá ficado surpreendido pelo que os trágicos acontecimentos da praia do Meco trouxeram a público. Algumas semanas depois do primeiro momento de horror e de espanto, quando o respeito devido à dor das famílias das vítimas forçou alguma contenção, as evidências e os documentos começaram a ser conhecidos, percebendo-se que nada do que se passou foi puramente acidental. Começou então uma avalanche de testemunhos e de informações a propósito das praxes, ao ponto de ser já difícil dizer algo de original a seu respeito. Para pessoas como eu, que participaram na resistência às praxes a partir dos inícios da década de 1970, e que além disso têm pensado e escrito sobre o tema, ainda se torna mais difícil escrever qualquer coisa de novo, pois muito do agora revelado pelos média lhes é familiar. Vou por isso tentar não me repetir, limitando-me a aspetos menos abordados, que associo a cinco mitos projetados a propósito do assunto.
Em primeiro lugar, aquele que define as «praxes académicas» como expressão de uma tradição. Eric Hobsbawm mostrou, num artigo bem conhecido, como a «invenção da tradição» é uma experiência que integra muito mais inovação que conservação. Quem conhece a história deste tipo específico de práticas, sabe como o que nelas há de tradicional é muito mais inventado que mantido. Os próprios códigos praxísticos são regularmente modificados, ou adaptados nos seus termos às novas práticas da realidade. Recordo como, num dado momento, pela década de 1990, quando visitei o ateliê de um produtor de eventos, este me mostrou o esquema dos «rituais académicos» que estava a desenhar, de raiz, para os cerimoniais «tradicionais» dos professores e dos alunos de uma universidade recém-criada. E em Coimbra, exemplo que naturalmente melhor conheço, observo a forma como foram recentemente inseridos na agenda das festividades académicas e das praxes dois novos «momentos tradicionais»: a «Noite dos Horários», em volta das noitadas passadas pelos estudantes, no início de cada semestre, para assegurarem um melhor lugar nas inscrições nas turmas, e a «Noite de Halloween», como é sabido uma data que até há pouco era evocada exclusivamente no mundo anglo-saxónico, que entrou na academia coimbrã talvez por influência milagreira da Internet. Posso ainda relembrar a proliferação de momentos e de espaços, outrora vedados pelo seu próprio código ao exercício das praxes, que agora foram esquecidos pelos «defensores da tradição». Noto, por exemplo, o modo como as suas manifestações se encontravam rigorosamente proibidas em lugares fechados que se encontrassem «debaixo de telha».
Um segundo mito tem sido construído em volta de uma falsa ideia de simpatia ou de empatia popular a respeito das atuais praxes. Quem ouve a generalidade das populações que moram na cidades com uma escola superior ou, mais ainda, que habitam a proximidade dos seus campi, sabe como tais práticas são particularmente mal recebidas e, em muitos casos, alvo até de protestos de comunidades que vêm a tranquilidade das suas noites, e mesmo a sua sensibilidade, agredida por um espetáculo e um ruído que de modo algum podem aceitar. Atualmente, dada a perversão e o alargamento incontrolado dos períodos e dos espaços da praxe, até professores universitários que em dado momento foram adeptos das suas formas, e mesmo ex-alunos que no passado foram praxistas, têm desenvolvido sinais de clara aversão a seu respeito, preocupados com a sua passagem de ritual simbólico a experiências violentas não reguladas de verdadeiro hooliganismo e de agressão de direitos humanos essenciais.
O terceiro é o mito da aceitação entusiástica por parte dos novos alunos, os chamados caloiros. É verdade que ela parece evidente e até ocorrerá entre uma boa parte dos estudantes, mas é muito difícil falar de aceitação quando esses alunos são colocados perante um cenário de inevitabilidade, ao ponto de nem sequer saberem que podem recusar ser objeto de tais práticas, sobretudo das mais agressivas e aviltantes, escolhendo outras formas de viver a sua integração numa nova fase da vida. Mas sabem, isso sim, que se tentarem resistir serão ostracizados, «desintegrados», por muitos colegas, quando não coagidos psicologicamente ou mesmo fisicamente. Existe pois uma «unanimidade» que é imposta pelo medo e pela lógica do mais forte, como acontece em todo o sistema social totalitário, no qual aqueles que o vivem são confrontados com a inexistência de uma alternativa e com a obrigatoriedade formal de seguirem o modelo imposto.
O quarto mito é o suposto prestígio que estas práticas conferem aos cursos e às instituições de ensino superior nas quais são levadas a cabo. Um dos formatos mais constantes desta atitude é dado pela tentativa de, verbalmente ou através de atos de puro exibicionismo, se mostrar que o curso X ou Y é «o melhor» de uma dada escola ou faculdade. Ao mesmo tempo que os alunos que o tentam mostrar abandonam a frequência das suas aulas e os espaços e tempos de estudo e de sociabilidade inter-cursos, para se dedicarem, quase em full time, a mostrar essa suposta «superioridade», mais próxima da bravata de um membro de gangue que do natural orgulho de quem faz um trabalho bem feito e pertence a uma escola ou a um curso prestigiados pelo que valem naquela que é realmente a sua missão. Nos últimos anos, esta situação tem piorado na medida em que a própria tranquilidade das aulas, tal como a vida diária de professores, alunos e funcionários, é posta em causa pelo estado de ruído, coação e arruaça quase ininterruptamente introduzido pelas praxes, dado estas se estenderem agora, uma vez mais contrariando a própria tradição, praticamente a todo o ano letivo.
Mas o mito maior e mais pesado, o quinto, é aquele que tem sido construído em redor das razões que levam um grande número de alunos a aderirem, ou pelo menos a aceitarem, estas práticas. A ideia da «integração» ou da «preparação para a vida» é frequentemente invocada, mas da pior forma e pelas piores razões: ela impõe a aceitação do jogo da hierarquia e do conformismo contra o cultura da liberdade e capacidade crítica por parte dos estudantes, sublinhando a aceitação dos valores de grupo, sempre circunstanciais mas também sempre apresentados com os melhores e os mais puros, bloqueando o reconhecimento do direito de cada estudante, como de cada pessoa, a pensar pela sua própria cabeça e a escolher em liberdade o que quer ou não fazer, pensar, parecer ou dizer. É esta, no fundo, e uma vez mais, a lógica mais profunda do autoritarismo, aquela que as ideologias e os sistemas de natureza totalitária praticaram quando impuseram uma dada forma de viver e de pensar a ordem social como a única aceitável, obrigando à exclusão de quem não partilhasse de tal visão do mundo. Aqueles que na Alemanha foram alimento do nazismo e ainda hoje se chamam Mitläufer: os que vão com os outros.
Tudo isto é possível por razões objetivas. As circunstâncias sociais, culturais e políticas são sempre um fator justificativo, mas por si só não bastam, pois em momentos de grave crise ocorridos no passado, foi precisamente o universo estudantil que serviu em boa parte como lugar de acolhimento e de desenvolvimento dos fatores de esperança, de crítica e de transformação que em muito ajudaram a desbloquear situações de impasse social e político. Há por isso algo mais que é preciso ter em conta para compreender a forma como o fenómeno de praxes renasceu, ganhou raízes e evoluiu para as formas absurdas e inaceitáveis que podemos agora observar. Esse algo mais prende-se sobretudo com a inexistência de conhecimento das lições de história, com a falta de de interesses de natureza cultural que sempre formam um atitude crítica e livre perante o mundo, com a ausência da larga maioria dos estudantes de espaços de sociabilização (em grupos de teatro, atividades artísticas e musicais, clubes de cinema ou de leitura, práticas desportivas, experiências lúdicas em grupo, combate cívico ou político), o que, associado ao horizonte de limitado futuro que a atual situação lhes coloca à frente, deixam a maior parte sem um espaço de sociabilidade e de identidade do qual naturalmente carece. Essa vida estudantil associada a uma vivência coletiva, a um tempo de troca de experiências e de suposta identificação de grupo que lhe surge sob a forma de adesão às «praxes académicas» emerge então como um sucedâneo dum processo de integração do indivíduo na vida coletiva do qual todos precisamos. E do qual precisam especialmente jovens, alguns ainda a sair da adolescência, que têm hoje menos de 21 anos.
Não basta acharmos que o estudante comum, que aceita a praxe ou a põe em prática, é um simples e acéfalo maria-vai-com-as-outras, controlado quase sempre pelos medíocres «veteranos», que vêem nestes momentos uma ocasião única para fruírem da autoridade e do reconhecimento que jamais terão no resto das suas vidas. E também não podermos forçá-lo a ler Wilhelm Reich para compreender a psicologia de massas do fascismo e reconhecer o modo como o caminho da submissão cega à hierarquia e ao império do mesmo é um passo curto para o reino uno da escravidão. Mas podemos impedir por regulamento – podem-no o Estado, as universidades, as associações de estudantes, os partidos políticos, as famílias (que por vezes têm também responsabilidades nesta matéria), até as juventudes partidárias (para algo de socialmente positivo podem elas servir) – que o pequeno totalitarismo praxista se instale e governe as escolas superiores e o universo estudantil a seu bel-prazer.
Mesmo sem proibir as praxes, o que não me parece de todo possível ou sequer muito saudável, até porque poderia provocar como efeito oposto a sua proliferação não-controlada, é possível conter formalmente os excessos e a loucura das suas práticas mais violentas e obsessivas, separando o que é a fruição de rituais de grupo dos atentados à liberdade individual e à dignidade das pessoas. Das que delas participam ou das que são forçadas a conviver diariamente com elas. Depois competirá aos próprios estudantes perceberem que existem atividades bem melhores, mais emocionantes e integradoras, mais divertidas até. E procurarem-nas, fazendo delas alimento da melhor parte das suas vidas.
Artigo publicado no blogue A Terceira Noite.