Os argumentos de quem defende a praxe são conhecidos: a praxe constitui um património, uma tradição e um conjunto de práticas consideradas indispensáveis à integração dos novos estudantes no meio universitário. Nesta perspetiva, as praxes desenrolam-se sempre num ambiente amigável, de respeito mútuo e de confraternização, que passa por brincadeiras inocentes, mesmo que impliquem rituais como “andar de quatro” ou rastejar, insultos e simulação de atos sexuais. Para os praxistas, quando há agressão, violência ou humilhação, não estamos perante a praxe, mas perante abusos de pessoas malformadas. A falta de queixas criminais serve para demonstrar a bondade da “verdadeira praxe”, a qual remete os atentados à dignidade das vítimas e as agressões para o domínio da exceção. Ou seja, o facto de os poucos crimes denunciados terem acontecido durante rituais de praxe jamais é motivo de questionamento da própria praxe, na qual, conforme sustentam os praxistas, a participação é um ato livre e voluntário, que não está sujeito a qualquer tipo de coação.
Para quem é parte do mundo académico ou da sociedade civil que o rodeia, o que sobressai destes argumentos são duas coisas. Em primeiro lugar, a estratégia de negação da realidade com a qual somos confrontados todos os dias. Esta negação deriva não só de falta de conhecimento histórico (que demonstra o lugar central das hierarquias, da autoridade e da violência na genética da praxe), mas de uma cegueira voluntária relativa às transformações recentes da “tradição” nas academias onde a praxe é mais antiga, como Coimbra: as novidades que são os hinos e os “cancioneiros” de curso - de conteúdo invariavelmente grosseiro e em linguagem obscena, construindo masculinidades e feminilidades estereotipadas no sentido da submissão da mulher a uma virilidade exacerbada – entoados pelos caloiros, comandados a megafone, pelo espaço da universidade e muito para além dele; a alcoolização forte e persistente, muitas vezes sob coação; a extensão das práticas de iniciação a todo o ano letivo, ao invés de apenas nas primeiras semanas, como “era de praxe”, e o reforço fortíssimo da infantilização, da ridicularização, da dureza física e psicológica e da sexualização dos rituais.
Ora, esta realidade está extensamente documentada (basta ver os vídeos dos próprios no youtube ou ler os cancioneiros, que são publicados em pequenas brochuras e vendidos pelos estudantes) e tem provocado um distanciamento da praxe por parte de um número cada vez maior de estudantes, de docentes e até da comunidade não académica que outrora se identificava com a tradição. Muito embora resista, nos setores mais conservadores, a ideia da preservação de determinados cerimoniais e trajes, a “praxe de gozo e mobilização” tem sido objeto de repúdio crescente. A estratégia de negação dos praxistas encontra-se, por isso, seriamente fragilizada e a persistência e evolução das práticas de praxe no sentido que têm tomado tornaram-se tão evidentes como um gigantesco elefante movendo-se entre precárias prateleiras de porcelana. Isto torna-se claro quando, nos debates recentes, se tentou confundir praxes com convívios estudantis e até lutas académicas. O discurso da defesa da praxe – no qual praxe é nada e tudo - tornar-se cada vez mais insustentável.
Em segundo lugar, o que ressalta dos argumentos praxistas e da observação dos rituais de praxe é a (in)definição de liberdade, que põe em causa a função da universidade e da sociedade democrática na formação de indivíduos para a cidadania plena e o respeito pelos direitos individuais. De facto, a naturalização da violência simbólica e real faz com que insultos, humilhações, práticas aviltantes e degradantes não sejam frequentemente percebidos como ofensivos por parte de quem neles participa. Merece um estudo sociológico sério a existência de milhares de estudantes dispostos a defender com unhas e dentes o direito a humilhar e a ser humilhado, em vez de exercitar a sua consciência cívica, o pensamento crítico, livre e democrático, por exemplo, na luta pelos seus direitos enquanto estudante. É inevitável a associação da praxe e do fanatismo crescentemente a ela associado a uma sociedade que cultiva o conformismo, o vazio de valores, e a adesão acrítica a grupos que, ao invés de valorizarem as diferenças e, com isso, serem realmente integradores, consagram identidades normativas e conservadoras, onde a diferença ou a insubmissão são motivos para o exercício reforçado de práticas vexatórias, ao jeito do bullying.
A psicologia de massas explica a força da pressão do grupo, do mimetismo do coletivo, do fascínio pelo respetivo reportório simbólico, mesmo que esvaziado de valores, mecanismos que estiveram na base da mobilização popular por diversos regimes totalitários. O medo da exclusão ou da marginalização na vida académica é um fator de coação fortíssimo sobre os jovens que chegam à universidade, tal como é forte a ilusão de integração pela via da conformação às muitas normas não escritas de funcionamento dos grupos: “Eu trocava olhares enquanto punha os olhos no chão”, dizem alguns. No rebaixamento, sentem-se, pelo menos, iguais aos rebaixados e uma vez iniciada a participação na praxe, quando surge o sentimento de desconforto, é extremamente difícil sair dela. Ou seja, para além das ameaças reais exercidas sobre quem tem a coragem excecional de dizer “não”, não existe de facto um ambiente de liberdade e um estado de esclarecimento que permita fazer escolhas maturas e conscientes. Muito menos há liberdade para, em casos de crime, as vítimas fazerem as respetivas denúncias, permanecendo, portanto, numa situação traumatizante de silêncio e isolamento.
A verbalização do “sim” ou do “não “ à praxe não pode, por conseguinte, ser a medida de aferição da adesão às práticas, tal como a ausência de denúncias de atos criminosos perpetrados em contextos de praxe não pode ser sinónimo da bondade da praxe. Esta situação interpela, em primeiro lugar, as instituições universitárias e as associações de estudantes, as quais são responsáveis por garantir o direito de opção dos/as estudantes e a segurança perante as escolhas assumidas. As primeiras hesitam em agir disciplinarmente contra os estudantes, os quais detêm enorme poder sobre as universidades, a partir do momento em que se tornaram clientes e, portanto, financiadores das mesmas. As segundas estimulam a praxe e todo o negócio que floresce em torno dela, muitas vezes também como fonte de financiamento e de promoção política dos respetivos dirigentes. Em segundo lugar, esta é função do próprio Estado e das autoridades judiciais, que parecem fechar os olhos à praxe, como se estas atividades se desenrolassem fora da sua jurisdição. A solução passaria, neste caso, por tornar crime público os atos violadores da lei realizados em contexto de praxe, passíveis de denúncia por outra pessoa que não a vítima.
Se algum consenso se criou entre praxistas e anti-praxistas nos debates recentes foi a condenação daquilo que os primeiros designam de exageros e os segundos atribuem à própria natureza da praxe. Aproveite-se este consenso no sentido de uma intervenção rápida e concertada, que não deixe morrer o debate, que promova ações nas instituições do Ensino Superior no sentido da garantia da liberdade dos/as estudantes e de uma integração efetiva e construtiva, e que aja em termos pedagógicos, quer no Ensino Superior, quer no Ensino Secundário, preparando os alunos que irão, a breve trecho, frequentar as Universidades e os Politécnicos, para que a praxe seja cada vez mais questionada e não se propague, como há indícios de acontecer, aos níveis mais baixos de escolaridade.