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Na resposta às crises, o barato sai caro

Portugal é dos países da zona euro que menos gasta no combate à crise, superado até pelos que têm uma dívida pública superior. Mesmo face à recessão histórica que o país atravessa, a palavra de ordem no Ministério das Finanças continua a ser contenção. Mas o barato pode sair muito caro. Artigo de Vicente Ferreira.
Na última crise, os países que aplicaram mais austeridade foram aqueles onde a dívida pública mais aumentou. Gráfico publicado por Phillip Heimberger.
Na última crise, os países que aplicaram mais austeridade foram aqueles onde a dívida pública mais aumentou. Gráfico publicado por Phillip Heimberger.

Os dados da execução orçamental referentes a 2020 continuam a dar que falar: no ano passado, o Governo acabou por gastar menos €550 milhões do que o previsto em diversos apoios sociais, incluindo os que foram criados excecionalmente face à crise da Covid-19. No final do ano, o défice orçamental ficou 3,7 mil milhões abaixo do previsto pelo Governo, sendo que boa parte da diferença (70%) é explicada pela despesa prevista que não foi realizada, tanto nos apoios ao tecido empresarial, como no investimento público, passando pela aquisição de bens e serviços e pelas transferências correntes, como explicou Susana Peralta no Público. Mesmo face à recessão histórica que o país atravessa e com taxas de juro em mínimos históricos, a palavra de ordem no Ministério das Finanças continua a ser contenção.

O resultado foi apresentado por alguns jornais como uma poupança, mas a experiência da última crise diz-nos que este é um erro que se paga caro: em plena crise, a contenção orçamental não só é errada, como agrava a própria dívida pública. Na última crise, os países que aplicaram programas de consolidação orçamental (i.e. austeridade) mais acentuados foram os que viram a dívida pública em % do PIB crescer mais nesse período, como se vê no gráfico acima, publicado pelo economista Philipp Heimberger. Isso acontece devido ao paradoxo da poupança descrito por Keynes: se o Estado tentar poupar em contextos de incerteza elevada, em que as famílias e empresas também apostam na poupança e recuam nas decisões de consumo e investimento, todos acabam com menos rendimento, já que a redução da procura agregada tem como efeito a contração da atividade económica e da produção. É por isso que estes países foram também os que tiveram uma recuperação mais lenta após a última crise - é o resultado das cicatrizes deixadas pela austeridade.

Há outros dados que ajudam a avaliar a resposta à crise. A estimativa divulgada anteontem pelo INE aponta para que, em 2020, Portugal tenha tido a maior quebra do PIB de que há registo (uma queda de cerca de 7,6%), sublinhando que "a procura interna apresentou um expressivo contributo negativo para a variação anual do PIB, devido, sobretudo, à contração do consumo privado". Embora as medidas de confinamento e restrição das atividades económicas expliquem boa parte do recuo no consumo, este também pode estar relacionado com a insuficiência dos apoios públicos às famílias, sobretudo tendo em conta que Portugal foi o país europeu que registou maior quebra salarial entre o 1º e o 2º trimestres do ano passado (foi de 13,4%, face à média europeia de 6,5%, de acordo com a Organização Internacional do Trabalho).

Enquanto as Finanças poupam nos apoios e continuam a dar prioridade à contenção do défice, a espiral recessiva de quebra do consumo e aumento das falências e do desemprego acentua-se. O estudo divulgado esta semana pelo BCE mostra duas coisas: não só somos dos países com menor esforço orçamental para combater a crise, como somos superados por países com níveis de dívida pública próximos do nosso. E isso tem implicações importantes para o debate público sobre a resposta à crise, por desconstruir duas ideias erradas.

Por um lado, cai por terra a ideia de que o país tem levado a cabo um esforço orçamental incomportável no combate à crise que se atravessa. Como se vê no gráfico abaixo, quase todos os países da União Europeia têm um nível de apoio público à economia superior ao nosso. Portugal tem sido, na verdade, um dos mais contidos deste ponto de vista, tendo até merecido elogios por parte da Comissão Europeia por isso mesmo.

Esforço orçamental dos países da zona euro. Gráfico publicado pelo BCE. Esforço orçamental dos países da zona euro. Gráfico publicado pelo BCE.

 

Por outro lado, a ideia de que a debilidade das contas públicas do país justifica essa contenção não condiz com a realidade: a Itália e a Grécia, os dois países com dívidas públicas superiores à portuguesa, registam um esforço orçamental bastante superior ao nosso (como se vê no gráfico em baixo, que compara o nível de endividamento dos países com a variação do seu saldo orçamental primário ajustado ao ciclo, sendo este último uma aproximação mais ou menos razoável do esforço que cada país fez no ano passado, ainda que o seu cálculo seja discutível).

Relação entre o nível de endividamento e o esforço orçamental dos países. Gráfico publicado pelo BCE.

Relação entre o nível de endividamento e o esforço orçamental dos países. Gráfico publicado pelo BCE.
 

 

A verdade é que a atuação do BCE, que aprovou um novo programa de injeção de liquidez e aquisição de títulos de dívida pública no início da pandemia, garante que as condições de financiamento se mantêm estáveis com as taxas de juro muito baixas, permitindo precisamente que países mais endividados consigam dar resposta à crise. E parece que a maioria dos países o tem aproveitado. Não é o caso de Portugal.

É preciso ter em conta que este estudo foi feito ainda antes de se conhecerem os dados de execução orçamental dos diferentes países - na prática, avalia a despesa que os governos estimaram, mas não o que foi efetivamente gasto (valor que em Portugal, como se viu, é ainda mais baixo). Começa a ser difícil olhar para a gestão orçamental sem se chegar à conclusão que a fixação com os orçamentos equilibrados e com o défice zero continua de boa saúde. Com isso, o Governo não só não responde aos problemas de quem perdeu rendimento no curto prazo, como se arrisca a agravar as vulnerabilidades da economia no longo prazo. O barato pode sair bastante caro.

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Economista
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