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Itália: a pandemia atacou com força um país debilitado pelo neoliberalismo

Corte de 37 mil milhões de euros nos gastos de saúde nos últimos dez anos, redução de 50% de camas de hospital, menos 46 mil trabalhadores nos hospitais. Foi este o estado de saúde do setor da saúde que o coronavírus encontrou quando desembarcou tragicamente em Itália.
"100% trabalhadores". Protesto no Hospital San Carlo em Milão contra a gestão regional da crise sanitária. 30 de abril de 2020. Foto de Duilio Piaggesi/Fotogramma/EPA/Lusa.
"100% trabalhadores". Protesto no Hospital San Carlo em Milão contra a gestão regional da crise sanitária. 30 de abril de 2020. Foto de Duilio Piaggesi/Fotogramma/EPA/Lusa.

A primeira vaga do surto do novo coronavírus foi mais trágica em Itália do que em muitos outros países europeus. Apesar de ainda não estarmos propriamente num momento de balanço, há que começar a desfiar algumas das pontas deste novelo.

As relações próximas do norte altamente industrializado com a China poderão explicar a chegada mais rápida do vírus. A aplicação tardia de medidas de confinamento, somada às campanhas locais do “não se fecha”, que insistiam em manter a atividade económica normal, para além do patronato ter forçado a laboração em setores não essenciais mesmo depois das primeiras medidas de encerramento, ajudarão a explicar a sua propagação. Mas quer um possível balanço quer os debates políticos sobre o futuro imediato de Itália terão de contar com algumas das coisas que o coronavírus encontrou quando desembarcou em Itália.

Uma Itália com uma dívida pública record

No final de 2019, a dívida pública italiana era 136% do seu Produto Interno Bruto. Numa década, aumentou 30%. Com a crise do coronavírus, o gasto público já aumentou, as receitas já diminuíram e esse endividamento crescerá ainda não se sabe até que patamares. Só em medidas de emergência, já se despenderam 50 mil milhões de euros.

Por isso, para além do debate sobre a eficácia das medidas de urgência de combate à Covid-19, a Itália dos políticos mainstream está envolvida em duas discussões interligadas: quem (e como se) pagará esse endividamento futuro e qual o papel da União Europeia neste processo. Como as esperanças numa mutualização europeia da dívida não parecem ser realistas e como a discussão sobre a permanência no euro é de marés mas tem sido vaga, o primeiro ponto parece ganhar ainda mais relevância.

Uma Itália refém do neoliberalismo

A resposta da Europa austeritária à questão da dívida italiana foi ditar as regras de gestão das contas públicas que têm contribuído para o seu aumento. Stefano Palombarini sublinha como momento-chave da determinação destas regras, a carta co-assinada em 2011 pelo presidente do Banco Central Europeu da altura, Jean-Claude Trichet, e pelo seu sucessor anunciado, Mario Draghi, ditando as “reformas estruturais” que o país deveria seguir.

Sem surpresa, era uma check-list das habituais medidas neoliberais: “flexibilização” do mercado de trabalho (de que o Jobs Act de Renzi será o exemplo), corte de serviços públicos, redução da proteção social (como a reforma das pensões). Sem surpresa, será este o programa adotado pelo “governo técnico” de Mario Monti que assume o poder a seguir à queda de Berlusconi. Também sem surpresa, marcou as políticas governamentais de toda a última década. Estas regras de Bruxelas, claro, são apenas a confirmação de um caminho que já vinha a ser seguido antes e que é tudo menos alheio aos interesses das elites económicas italianas. São assim tanto exógenas quanto endógenas.

De qualquer forma, as consequências sociais deste tipo de medidas deixaram o país mais vulnerável face à atual crise sanitária. Quer pela precarização e empobrecimento de setores alargados da população. Quer pelo desinvestimento na saúde. Nesses últimos dez anos, cortaram-se 37 mil milhões de euros de gastos no sistema público de saúde, enquanto se favoreceu a saúde privada. Entre 1997 e 2015, houve uma redução de 50% de camas de hospital, passando-se de 575 camas por cem mil habitantes para 275). Se compararmos 2009 com 2017, passou a haver menos 46 mil trabalhadores nos hospitais. Só que, ao contrário da dívida, estes números têm estado mais desaparecidos do debate político italiano.

Uma Itália com uma classe política “gatopardista” em que “muda tudo para tudo ficar na mesma”

As consequências políticas têm sido convulsões sucessivas do quadro político italiano com projetos e protagonistas a irromperem para depois desaparecer ou com partidos tradicionais a serem reduzidos à insignificância eleitoral.

Os dois partidos que brilharam mais recentemente, o “populismo” “nem de esquerda nem de direita” do Movimento Cinco Estrelas e a extrema-direita da Liga de Salvini, foram protagonistas de um casamento de interesse no governo anterior. Este, apesar de ambos jurarem ser “anti-sistema”, não se afastou do mesmo caminho político traçado por Bruxelas e pelos interesses das elites económicas italiana. A experiência governativa que defraudou as promessas feitas terá, contudo, penalizado muito mais o primeiro do que o segundo, pelo menos a fazer fé nas sondagens.

Destes dois, o candidato mais sólido a um futuro governo parecia pois ser Salvini. Se perdeu na aposta imediata de ir eleições e vencer logo, continua a apresentar-se como o salvador da pátria contra os males de Bruxelas. Claro que, enquanto esteve no governo, seguiu igualmente o essencial da receita ditada pelo BCE. E o elemento central da sua política económica, que prescindiu de aplicar para salvaguardar a sua posição no governo, é o imposto de taxa única que cortaria o imposto dos ricos e depauperaria os cofres do Estado. A medida-farol dos ortodoxos ultra-liberais.

A ascensão ao governo de uma extrema-direita conservadora nos costumes, autoritária contra os setores mais desfavorecidos da população e os bodes expiatórios do costume e neoliberalmente conformista no plano económico, parecia ser, até há muito pouco tempo, o cenário político mais provável dada a impopularidade dos partidos tradicionais. O novo casamento de conveniência entre Cinco Estrelas e Partido Democrático que ocupou entretanto o governo, barrando o caminho do líder da extrema-direita mas causando uma cisão de monta no PD, parecia ser um interlúdio que apenas desgastaria mais ambos os parceiros.

Mas, em primeiro lugar, Salvini esbarrou com as “sardinhas”. Um potente movimento de base popular que, com as suas manifestações, mostrou que era possível deter o caminho da extrema-direita. Nas ruas primeiro, depois nas eleições regionais de Emilia-Romagna.

Em segundo lugar não sabemos ainda se terá chocado com a atual situação. Obviamente que sobre os efeitos políticos da tragédia social, a esta altura, apenas se pode especular. Tendo ficado de fora do governo, Salvini sentiu que tinha as mãos livres para a crítica. Mas, neste caso, como em tantos outros, esteve longe da coerência. De adepto dos movimentos de não parar a economia, aplicados por várias das zonas sob controlo do seu partido, nomeadamente a Lombardia, a região mais rica e mais afetada do país, e de que se comemorasse a Páscoa com cerimónias presenciais, passou a ser partidário de um confinamento mais estrito do que o aplicado pelo governo. Num mês, passou de campeão do fechamento das fronteiras do país para defensor da abertura de fronteiras na Lombardia por conveniência económica da região. Para já, as sondagens, nomeadamente a do Ipsos, dão uma queda de oito pontos na sua popularidade e um aumento de cinco na do primeiro-ministro, Giuseppe Conte, um jurista desconhecido antes de ser nomeado para o cargo pela sua proximidade com o Cinco Estrelas.

Depois do coronavírus, “nada será como dantes”, diz-se. E em Itália ainda mais por força da devastação social e humana. Mas o “nada será como dantes” pode afinal ter como contraponto o “tudo muda para tudo ficar na mesma” que tem sido a sina política italiana. A política económica de pendor neoliberal, mais ou menos assumido, que teve já tantas caras em Itália posiciona-se como a grande candidata à gestão de um pós-covid, o que seria a manutenção da mesma orientação política num quadro político muito diferente. Assim, a ideia de que o neoliberalismo ficou derrotado a partir do momento em que o Estado Social foi elemento indispensável para combater a pandemia pode muito bem vir a envelhecer tão mal quanto a ilusão de que os seus dias estavam contados depois do papel da desregulamentação na crise financeira de 2007/8.

Uma Itália com uma esquerda desfeita

A esquerda à esquerda do Partido Democrático e suas cisões, que poderia ser alternativa, continua a viver dias difíceis. Longe vão os tempos da Itália em que o partido comunista mais forte do ocidente parecia sólido como uma estaca. Depois, da queda do Muro de Berlim, ainda houve quem acreditasse que o euro-comunismo iria resistir dada a sua originalidade e que o PCI manteria a força dado o seu enraizamento social.

Só que esta história acabou com a dissolução do partido comunista no projeto social-liberal. E, depois disso, a tentativa mais sólida de reconstrução desse espaço, aliás, mais propriamente, de alargamento e abertura do mesmo, a Refundação Comunista, faliu politicamente depois de ter se ter transformado do revitalizado partido dos movimentos na altura da mobilização alterglobalização num partido de governo sem capacidade de se impor como alternativa.

Se politicamente há, entretanto, várias outras tentativas de reconfiguração do espaço à esquerda, tão dinâmicas e algumas delas efémeras quanto o conjunto do mapa político da bota, socialmente há sinais encorajadores. Ainda antes da devastação, podiam encontrar-se no antifascismo das “sardinhas” que ultrapassaram em muito os intentos dos seus fabricantes. Podiam encontrar-se ainda na resistência à retórica xenófoba que era praticada pelos movimentos de apoio aos refugiados, bem como em vários outros movimentos sociais que continuavam vigorosos. Na força dessas militâncias, a Itália mostrava que ainda era o que tinha sido.

Durante a crise, esses mesmos sinais chegaram-nos do movimento dos trabalhadores que, contra tudo e contra todos, paralisaram a produção que os patrões queriam continuar a manter à custa de vidas humanas. Greves muitas vezes espontâneas e ultrapassando o sindicalismo tradicional, sempre corajosas, a arriscar a incompreensão e o despedimento.

Também durante a crise, o antifascismo fez-se esperança quando veio às janelas no dia da libertação, o 25 abril italiano. E, para além das janelas, a solidariedade não tem ficado confinada. São inúmeros os coletivos que se mobilizaram a várias escalas nas respostas solidárias para com as vítimas da crise. Sinais de que apesar de tudo não há vias únicas e que se encontram forças para uma outra resposta à crise.

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Professor.
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