Se a impunidade é uma das características da nova extrema-direita, Salvini é o seu exemplo acabado. Mobiliza atacando fortemente mas os contra-ataques que lhe são feitos parecem não o atingir. Pseudo-nacionalista, ainda recentemente queria romper com Itália em nome da independência da imaginária Padânia. Arauto anti-corrupção, quando os casos de corrupção lhe batem à porta do seu partido sai aparentemente incólume. Populista que tudo promete economicamente, quando o governo que co-liderava falha em providenciar consegue não ser responsabilizado. Tudo resvala, nada parece colar-se à pele do político fabricado cuidadosamente nas redes sociais e seguido por um exército de fanáticos.
Num escândalo que seria mortal para a quase totalidade dos políticos tradicionais, um dos dirigentes de topo do partido de Salvini, Gianluca Savoini, é apanhado numa gravação a negociar um contrato de petróleo em que o dinheiro russo serviria para financiamento pela porta traseira da Liga. Em 2018, Savoini viajou 14 vezes para a Rússia, facto que foi apagado do registo de transparência do partido. Salvini continua a vociferar contra a corrupção como se nada se tivesse passado.
Salvini também é paradigmático de outra coisa: o programa político ultra-liberal que é uma imagem de marca da nova extrema-direita. A isso iremos mais tarde.
Pré-história de uma Liga que vai perder o norte
A primeira vida da Liga Norte começa em 1991 enquanto fusão de várias forças regionalistas do norte da Itália. Umberto Bossi torna-se o seu líder. O projeto era ambicioso: tornar independente a “Padânia”, a zona a norte do rio Pó. O discurso era simplista: o norte do país carregava às costas, desde há séculos, um sul atrasado e ocioso; Roma constituía um poder centralista, burocrático e opressor que organizava o esbulho. Os impostos do norte não deviam pagar pois nem a malandragem do sul nem os políticos da capital.
O seu sucesso relativo leva a que, em 1994, consigam 17% nas eleições na zona da Lombardia, 8,7% no total do país. O partido chega ao governo com Berlusconi mas as duas partes nunca se vão encaixar verdadeiramente. Bossi rompe. Volta mais a tarde a juntar-se com Berlusconi. Durante anos, a Liga Norte parece ficar num impasse entre a retórica desmedida e a pequenez política da gestão governista.
O ciclo Bossi fecha-se em 2012. O impoluto político de direita é acusado de desviar dinheiro do partido para uso pessoal e cai em desgraça. O seu número dois, Roberto Maroni, assume em seguida a liderança. Nas eleições legislativas de 2013, a Liga Norte sofre uma queda eleitoral que a reduz a 4%. A eleição regional paralela que acontece na Lombardia vai em sinal oposto: Maroni é eleito presidente regional da região. Escolherá o cargo, abandonando a liderança do partido. É então que Salvini, um desconhecido conselheiro municipal de Milão e eurodeputado intermitente, entra definitivamente na cena política nacional.
Do “comunista” da Padânia ao político de laboratório das redes sociais
Matteo Salvini era militante do regionalismo/independentismo do norte desde jovem. Ironicamente, o homem forte da extrema-direita foi, em 1997, o cabeça de lista de uns obscuros “comunistas padanianos” na encenação feita pela Liga Norte quando esta tenta implementar um parlamento paralelo no sonhado caminho para a independência.
No ano seguinte é promovido na hierarquia local da Liga Norte em Milão e, no cargo autárquico que o começa a destacar, a sua intervenção é tudo menos comunista. Em nome da Liga Norte ataca ciganos e muçulmanos, promove o securitarismo. Sabia já bem o caminho que queria seguir. Em 2004 é eurodeputado por dois anos, antes de regressar ao grupo parlamentar do conselho municipal para o liderar. Em 2009 volta a ser eurodeputado.
Nas suas mãos, a Liga muda de agulhas: o vil poder de Roma passa a ser o de Bruxelas, os inúteis que sugam os impostos dos cidadãos honestos deixam de ser os seus compatriotas do sul para passarem a ser os estrangeiros ou os ciganos. Do nacionalismo da “Padânia” passa-se à soberania económica italiana sem nenhum embaraço. Cai assim o norte no nome do partido.
O novo campo político fica assumido. Começa a encontrar-se com Marine Le Pen, Geert Wilders e outros políticos da extrema-direita europeia. E, nas eleições europeias de 2014, marca simbolicamente esta viragem através da substituição da palavra Padânia pela palavra de ordem “Basta Euro” no logótipo do partido. Só que a cruzada anti-euro não consegue entusiasmar o eleitorado e os resultados não são brilhantes.
Podia ter sido o fim da carreira política só que era ainda o começo. O encontro com Luca Morisi é determinante na construção da persona política de Salvini. O mestre do spin e estratega das redes sociais revoluciona a comunicação pessoal e partidária fazendo do líder da extrema-direita o político italiano mais notório. A presença estudada ao mínimo detalhe e dependente de uma estrutura profissionalizada nas redes funciona. Da agressividade e “ironia” do tom às cuidadosamente trabalhadas imagens casuais da sua vida pessoal. A troco de selfies normaliza-se o seu discurso do ódio.
A extrema-direita no governo
Nas eleições de 2018, a Liga alcança 17,3% dos votos. O feito é ofuscado por aquele que parece ser o verdadeiro vencedor da noite eleitoral: Di Maio, à frente do populista Movimento Cinco Estrelas obtém 32%. O movimento fundado pelo cómico Beppe Grillo e que queria mudar todo o sistema político tornava-se o partido mais votado do país. Só que lhe faltava capacidade para gerar uma maioria de governo.
Cinco Estrelas e Liga chegam a acordo. E é o parceiro menor da coligação governamental que passa a ser visto como a força política determinante no país. Definitivamente, as Cinco Estrelas esmorecem depois disso e Matteo Salvini e a sua Liga tornam-se desta forma estrelas maiores na constelação da extrema-direita europeia.
Com sagacidade, Salvini ilude à partida o tema da economia, ocupando a pasta de ministro do Interior e refugiando-se na sua zona de conforto: a perseguição aos refugiados, o seu bode expiatório de estimação a par com os ciganos. E consegue eficazmente lançar o odioso dos maus resultados económicos do governo para o seu parceiro de coligação, agora em processo autofágico.
Se o imposto é chato a taxa deve ser única
No plano económico as políticas dos dois partidos não casavam. Se o Cinco Estrelas tinha como receita para mudar o país o rendimento básico incondicional, a Liga apostava todas as fichas na taxa única de impostos. A extrema-direita cola-se assim ao programa ultra-liberal. Da tentativa de explorar o sentimento de rejeição para com o pagamento de impostos, passa-se ao Santo Graal dos “novos” liberais para os quais “simplificar” os impostos implica acabar com a progressividade dos impostos, a política redistributiva segundo a qual quem ganha mais, paga mais. Para além do imposto de taxa única, a Liga defendia uma amnistia fiscal. Somadas as promessas eleitorais as despesas do Estado aumentariam, contabilizadas as propostas de redução de impostos as receitas reduzir-se-iam.
Ambas as partes aceitam, contudo, uma solução de governo que não é carne nem é peixe. O realismo político volta a imperar na Liga para lá das encenações. Sinais de que tudo se vende para esta extrema-direita: a Liga aceita a rejeição do presidente da República do eurocético Paolo Savona que deveria chefiar as finanças; o partido dos contribuintes participa de boa mente num governo que aumenta a carga fiscal; e também o desafio à Comissão Europeia pelo qual ambas as partes pugnavam se revela um vazio: no essencial aquilo que Bruxelas manda, o governo obedece. O orçamento seguiu as regras do déficit, investimento público limitado.
Bruxelas não gosta da proposta de Liga de reverter o aumento da idade da reforma, suspende-se. Bruxelas não gosta da proposta de abolir o Jobs Act de Renzi, que facilitou o despedimento sem justa causa, esquece-se. Bruxelas não gosta do rendimento básico incondicional, suspende-se e altera-se tanto que deixa de ser universal, parecendo-se mais com um rendimento mínimo garantido, deixa-de ser incondicional, já que está dependente da não recusa de mais de três ofertas de emprego e será utilizado um cartão para controlar em que é gasto para não ser mal gasto, e o montante prometido fica pela metade.
Euro e dar o dito por não dito
A tradição de incongruência da Liga, aliás, já vinha do tempo de Bossi que também criticava Bruxelas e votava a favor dos tratados de Maastricht ou de Lisboa. Salvini, esse, aproveita o cargo ministerial para endurecer a política migratória, perseguir as organizações que prestam ajuda humanitária aos refugiados, acusando-as de ajudar os traficantes de pessoas. Faz o mesmo com os ciganos anunciando que iria fazer um recenseamento específico a este grupo étnico de forma a deportar quem não estivesse em Itália legalmente. Declara então que “infelizmente” aqueles que sejam italianos não podem ser deportados. O primeiro-ministro rechaça a proposta mas o efeito estava criado.
Na economia, Salvini tem a capacidade singular de conseguir fazer esquecer o que antes definia como essencial e de escapar às contradições. A saída da moeda única é uma delas. Em 2013, Salvini gritava que o euro era “um crime contra a humanidade”. Chegado ao governo foi cúmplice do “crime”. Passou a afirmar não querer sair da União Europeia nem do euro.
Depois de bater com a porta do governo voltou ao espetáculo: “vou viver e morrer um homem livre, não um escravo de ninguém” afirmou, referindo-se à UE, e acrescentado “não queremos ir a Bruxelas de chapéu na mão”.
A gota de água que fez transbordar copo e as sardinhas que se mobilizam contra a extrema-direita
Se é bom de ver que o casamento de conveniência parecia à partida destinado a falhar e que cada parte do governo fazia pela vida, o executivo descarrilou definitivamente na discussão do comboio rápido. A proposta de linha TGV Lyon-Turin teve por um lado a Liga a apoiar por ser “bom para os negócios”, por outro o cinco estrelas a opor-se porque seria inútil, faria mal ao ambiente e propensa à corrupção. Salvini sonhava fazer cair o governo, levar o país imediatamente a eleições enquanto estava numa posição de força e governar finalmente sozinho.
O acordo de governo entre o Cinco Estrelas e o Partido Democrata frustrou a curto prazo o intento. Tal como as sardinhas, o movimento antifascista de base, ajudou a frustrar o segundo momento dessa ofensiva nas eleições regionais de Emilia-Romagna. Salvini pretendia ganhar o bastião histórico da esquerda para passar mensagem que o governo já não tinha legitimidade.
Perdeu. Mas continua, como sempre, à ofensiva. A mobilização popular do movimento das sardinhas é a grande incógnita. Poderão as sardinhas acabar com a persistente impunidade de Salvini?