A extrema-direita no governo

Há um casamento de conveniência entre nacionalismo e neoliberalismo e os novos autoritarismos fazem perigar a democracia. É o que defendem Stefanie Ehmsen e Albert Scharenberg em “A extrema-direita no governo: seis casos por toda a Europa” da Fundação Rosa Luxemburgo. Trazemos a introdução de um texto que pode ser lido aqui.

09 de fevereiro 2020 - 11:14
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Capa da brochura A extrema-direita no governo.
Capa da brochura A extrema-direita no governo.

Estamos a testemunhar correntemente uma mudança de maré na política global. A extrema-direita, que parecia estar a bater em retirada durante décadas, encenou um regresso de rompante. De Rodrigo Duterte nas Filipinas a Narendra Modi na Índia, de Jarosław Kaczyński na Polónia a Viktor Orbán na Hungria, de Recep Tayyip Erdoğan na Turquia a Benjamin Netanyahu em Israel, de Michel Temer no Brazil a Donald Trump nos Estados Unidos, os políticos de extrema-direita subiram aos escalões mais altos do poder mundial. Destas novas posições de força, iniciaram transformações autoritárias profundamente perturbadoras nos seus respetivos países.

A ofensiva neoliberal

Neste empreendimento, formam parte do mesmo fenómeno: representam o lado de baixo do globalização neoliberal.

O neoliberalismo é a última forma do capitalismo e aprofunda as suas contradições inerentes de forma substancial. Estamos a produzir muito mais riqueza do que em, digamos, 1980, mas a classe trabalhadora não tem visto nada dela. Para além disso, as políticas de austeridade produziram um aumento rápido da desigualdade social e insegurança económica, minando as noções de comunidade e solidariedade e conduzindo ao aumento da competição e do individualismo. Até a própria noção de “sociedade” tem estado sob ameaça desde a infame intervenção de Margaret

Thatcher de que “não há nada disso” e de que “não há alternativa” às polícias que ele defendia.

E, na verdade, a ofensiva neoliberal reformatou a sociedade – reformatou os nossos corações e e mentes, como sentimos e como pensamos. O neoliberalismo foi bem sucedido a substituir a velha hegemonia pelo sistema dominante da nossa era. Como pode a democracia, mesmo só a democracia profundamente imperfeita que temos hoje, sobreviver a este ataque fundamental aos seus princípios fundamentais?

Durante os últimos anos, e em particular desde a Grande Recessão de 2008, o “liberalismo progressivo” detalhado por Nancy Fraser – do velho centro, com a sua retórica liberal, a sua abordagem tecnocrática e as suas promessas crescentemente vazias – tem estado a perder rapidamente a perder terreno. Enquanto que a esquerda, pelo menos a maior parte dela, não tem conseguido estar à altura dos desafios, a direita autoritária certamente tem. Enquanto que a esquerda tem estado a equacionar se pode haver uma janela de oportunidade, a direita decididamente irrompeu por ela.

Na altura em que escrevemos estas palavras, as instituições e procedimento de governança democrática estão a ser ativamente minados, ou até removidos, pelos governos de direita. Veja-se só o que Trump, Orbán, Erdoğan e os seus pares estão a fazer: a transparência de governo, um sistema judicial independente, a liberdade de imprensa e o direito à negociação coletiva estão todos sobre ataque pesado e cada vez mais parecem fantasmas do passado.

Por outras palavras, a direita radical está a aumentar cada vez mais os ataques à própria essência da democracia, enquanto que as instituições e práticas democráticas existentes são cada vez incapazes de mobilizar pessoas para a sua defesa. E é por isto que a ameaça autoritária é tão imediata e tão perigosa.

Economia neoliberal e política identitária nacionalista: um casamento de conveniência

Enquanto o neoliberalismo, incluindo a sua variante “progressista”, falhou ao povo, muitos senão a maiorias das pessoas não o culpam. Ao invés, a direita conseguiu ser bem sucedida em fazer das minorias, dos imigrantes, dos liberais, das feministas, dos esquerdistas ou “da elite” bodes expiatórios (não as grandes empresas, claro, mas antes os académicos e o mundo do espetáculo) da deterioração das condições de vida e das condições de trabalho que são um resultado direto das políticas neoliberais.

Esta torsão – de substituir assuntos económicos por culturais – resultou bem para a direita radical. O facto da insatisfação cultural pedir soluções políticas muito diferentes das exigidas pelo mal-estar económico ou social é a principal razão para a crescente atração da extrema-direita por parte dos economicamente poderosos. Enquanto a insatisfação a a raiva poderem ser direcionadas para os fracos em vez de para os mais fortes, permanecerá uma ferramenta com utilidade tanto para controlar a agitação como para avançar políticas que beneficiem mais os riscos às custas dos pobres e das classes médias. Olhem só para o corte de impostos de Trump para as empresas.

Em geral, muitos entre a elite económica (fora das indústrias orientadas para as exportações) parecem estar a criar condições para este casamento de conveniência entre economia neoliberal e política identitária nacionalista feito pela direita radical. Esta “viragem nacionalista” está a moldar crescentemente o discurso na sociedade mais alargada, tanto quanto mais especificamente entre as elites económicas. O apoio crescente dos poderosos economicamente encoraja ainda mais a direita radical e contribui para o seu sucesso.

A ascendência da direita radical na Europa

A situação política na Europa serve como um bom estudo de caso neste fenómeno mais vasto. Nos anos mais recentes, os partidos populistas de direita cresceram em força em praticamente todos os países do continente. Em França, a líder da Frente Nacional, Marine Le Penm, ultrapassou os partidos tradicionais do centro-esquerda e de centro-direita nas eleições presidenciais de 2017, alcançando o segundo lugar e passando à segunda volta, na qual recebeu cerca de um terço dos votos. Nos Países Baixos, o Partido para a Liberdade de Geert Wilders ficou em segundo lugar nas eleições nacionais desse mesmo ano. Entretanto, a Alternativa para a Alemanha (AfD) metamorfoseou-se de partido primariamente neoliberal para partido populista anti-imigrante, recebendo 12,6% de votos nas eleições federais de setembro de 2017, tornando-se o primeiro partido de extrema-direita a entrar no parlamento alemão desde a Segunda Guerra Mundial. Esta mudança continental à direita inclui também a Itália, onde a Liga obteve um sucesso grande nas eleições federais de 2018, e a Suiça, onde quase 30 porcento votaram no Partido do Povo Suíço (SVP).

É importante notar, contudo, que a direita radical não está confinada à política partidária populista. Envolve tudo desde a direita do velho centro-direita, o qual na maior parte dos países continua a sofrer erosão, tal como têm sofridos os partidos sociais-democratas do centro-esquerda. No outro polo do espectro da extrema-direita organizações abertamente fascistas como a Aurora Dourada grega ou mesmo terroristas declarados – como Anders Breivik na Noruega ou a Clandestinidade Nacional Socialista (NSU) na Alemanha – cada vez mais se tornam uma ameaça séria.

Há uma certa sobreposição destes polos do populismo. Por exemplo, muitos dos membros da direita populista, como Alexander Gauland da AfD, costumavam ser políticos dos partidos de centro-direita e Breivik tinha sido membro do populista Partido do Progresso. Contudo, a direita populista está claramente a tentar posicionar-se entre o velho centro-direita e a extrema-direita abertamente fascista. Com este propósito aumentam a raiva contra imigrantes e particularmente muçulmanos, criticam a globalização e o “cosmopolitanismo” e culpam o liberalismo, feminismo e socialismo por tudo o que sentem estar errado. Além disso, o seu nacionalismo coloca-os em oposição fundamental face à União Europeia. Esta é a cola que sustém este polo populista de direita emergente.

Para além destes pontos de acordo geral, há muitas diferenças, devidas ou a especificidades nacionais, dependências ou a graus de radicalismo.

Enquanto a maioria é firmemente anti-muçulmana, alguns, como o Jobbik da Hungira e até o Fidesz, são também anti-semitas. Enquanto alguns são abertamente neoliberais, como por exemplo o SVP da Suíça, outros criticam vários aspetos do neoliberalismo como por exemplo a Frente Nacional da França ou o Partido do Povo Dinamarquês. Alguns são sociais-liberais como o holandês PVV, enquanto que outros, incluindo o polaco Partido da Lei e da Justiça são socialmente reacionários.

Isto quer dizer que mesmo que as razões subjacentes para o crescimento da direita populista sejam similares, os partidos individuais podem diferir fundamentalmente em termos de ideologias, eleitorado e políticas.

Stefanie Ehmsen e Albert Scharenberg organizaram a brochura “A extrema-direita no governo: seis casos por toda a Europa” para a Fundação Rosa Luxemburgo. Trazemos um excerto da introdução. O conjunto da obra pode ser lido aqui em inglês.

Tradução de Carlos Carujo.

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