Tornou-se corrente nas esquerdas o uso de termos fascismo e neofascismo para descrever criticamente nosso presente.
Estamos acostumados a identificar o fascismo com a presença do líder de massas como autocrata. É verdade que, hoje, embora os governantes não se alcem à figura do autocrata, operam com um dos instrumentos característico do líder fascista, qual seja, a relação direta com “o povo”, sem mediações institucionais e mesmo contra elas. Também, hoje, se encontram presentes outros elementos próprios do fascismo: o discurso de ódio ao outro – racismo, homofobia, misoginia; o uso das tecnologias de informação que levam a níveis impensáveis as práticas de vigilância, controle e censura; e o cinismo ou a recusa da distinção entre verdade e mentira como forma canónica da arte de governar.
No entanto, não emprego esse termo por três motivos: (a) porque o fascismo tem um cunho militarista que, apesar das ameaças de Trump à Venezuela ou ao Irão, as ações de Netanyahu sobre a faixa de Gaza, ou a exibição da valentia do homem armado pelo governo Bolsonaro e suas ligações com as milícias de extermínio, não podem ser identificados com a ideia fascista do povo armado; (b) porque o fascismo propõe um nacionalismo extremado, porém a globalização, ao enfraquecer a ideia do Estado-nação como enclave territorial do capital, retira do nacionalismo o lugar de centro mobilizador da política e da sociedade; (c) porque o fascismo pratica o imperialismo sob a forma do colonialismo, mas a economia neoliberal dispensa esse procedimento usando a estratégia de ocupação militar de um espaço delimitado por um tempo delimitado para devastação econômica desse território, que é abandonado depois de completada a espoliação.
Em vez de fascismo, denomino o neoliberalismo com o termo totalitarismo, tomando como referência as análises da Escola de Frankfurt sobre os efeitos do surgimento da ideia de sociedade administrada.
O movimento do capital transforma toda e qualquer realidade em objeto do e para o capital, convertendo tudo em mercadoria, instituindo um sistema universal de equivalências próprio de uma formação social baseada na troca pela mediação de uma mercadoria universal abstrata, o dinheiro.
A isso corresponde o surgimento de uma prática, a da administração, que se sustenta sobre dois pilares: o de que toda dimensão da realidade social é equivalente a qualquer outra e por esse motivo é administrável de fato e de direito, e o de que os princípios administrativos são os mesmos em toda parte porque todas as manifestações sociais, sendo equivalentes, são regidas pelas mesmas regras. A administração é concebida e praticada segundo um conjunto de normas gerais desprovidas de conteúdo particular e que, por seu formalismo, são aplicáveis a todas as manifestações sociais. A prática administrada transforma uma instituição social numa organização.
Uma instituição social é uma prática social fundada no reconhecimento público de sua legitimidade e de suas atribuições, num princípio de diferenciação que lhe confere autonomia perante outras instituições sociais, sendo estruturada por ordenamentos, regras, normas e valores de reconhecimento e legitimidade internos. Sua ação se realiza numa temporalidade aberta ou histórica porque sua prática a transforma segundo as circunstâncias e suas relações com outras instituições.
Em contrapartida, uma organização se define por sua instrumentalidade, fundada nos pressupostos administrativos da equivalência. Está referida ao conjunto de meios particulares para obtenção de um objetivo particular, ou seja, não está referida a ações articuladas às ideias de reconhecimento externo e interno, de legitimidade interna e externa, mas a operações, isto é, estratégias balizadas pelas ideias de eficácia e de sucesso no emprego de determinados meios para alcançar o objetivo particular que a define. É regida pelas ideias de gestão, planejamento, previsão, controle e êxito, por isso sua temporalidade é efêmera e não constitui uma história.
Por que designar o neoliberalismo como o novo totalitarismo?
Totalitarismo: por que em seu núcleo encontra-se o princípio fundamental da formação social totalitária, qual seja, a recusa da especificidade das diferentes instituições sociais e políticas que são consideradas homogêneas e indiferenciadas porque são concebidas como organizações. O totalitarismo é a afirmação da imagem de uma sociedade homogênea e, portanto, a recusa da heterogeneidade social, da existência de classes sociais, da pluralidade de modos de vida, de comportamentos, de crenças e opiniões, costumes, gostos e valores.
Novo: por que, em lugar da forma do Estado absorver a sociedade, como acontecia nas formas totalitárias anteriores, vemos ocorrer o contrário, isto é, a forma da sociedade absorve o Estado. Nos totalitarismos anteriores, o Estado era o espelho e o modelo da sociedade, isto é, instituíam a estatização da sociedade; o totalitarismo neoliberal faz o inverso: a sociedade se torna o espelho para o Estado, definindo todas as esferas sociais e políticas não apenas como organizações, mas, tendo como referência central o mercado, como um tipo determinado de organização: a empresa – a escola é uma empresa, o hospital é uma empresa, o centro cultural é uma empresa, uma igreja é uma empresa e, evidentemente, o Estado é uma empresa.
Deixando de ser considerada uma instituição pública regida pelos princípios e valores republicano-democráticos, passa a ser considerado homogéneo ao mercado. Isto explica porque a política neoliberal se define pela eliminação de direitos económicos, sociais e políticos garantidos pelo poder público, em proveito dos interesses privados, transformando-os em serviços definidos pela lógica do mercado, isto é, a privatização dos direitos, que aumenta todas as formas de desigualdade e exclusão.
O neoliberalismo vai além: encobre o desemprego estrutural por meio da chamada uberização do trabalho e por isso define o indivíduo não como membro de uma classe social, mas como um empreendimento, uma empresa individual ou “capital humano”, ou como empresário de si mesmo, destinado à competição mortal em todas as organizações, dominado pelo princípio universal da concorrência disfarçada sob o nome de meritocracia.
O salário não é visto como tal e sim como renda individual e a educação é considerada um investimento para que a criança e o jovem aprendam a desempenhar comportamentos competitivos. O indivíduo é treinado para ser um investimento bem sucedido e para interiorizar a culpa quando não vencer a competição, desencadeando ódios, ressentimentos e violências de todo tipo, destroçando a percepção de si como membro ou parte de uma classe social e de uma comunidade, destruindo formas de solidariedade e desencadeando práticas de extermínio.
Quais são as consequências do novo totalitarismo?
– social e economicamente, ao introduzir o desemprego estrutural e a terceirização toyotista do trabalho, dá origem a uma nova classe trabalhadora denominada por alguns estudiosos com o nome de precariado para indicar um novo trabalhador sem emprego estável, sem contrato de trabalho, sem sindicalização, sem seguridade social, e que não é simplesmente o trabalhador pobre, pois sua identidade social não é dada pelo trabalho nem pela ocupação, e que, por não ser cidadão pleno, tem a mente alimentada e motivada pelo medo, pela perda da autoestima e da dignidade, pela insegurança;
– politicamente põe fim às duas formas democráticas existentes no modo de produção capitalista: (a) põe fim à social-democracia, com a privatização dos direitos sociais, o aumento da desigualdade e da exclusão; (b) põe fim à democracia liberal representativa, definindo a política como gestão e não mais como discussão e decisão públicas da vontade dos representados por seus representantes eleitos; os gestores criam a imagem de que são os representantes do verdadeiro povo, da maioria silenciosa com a qual se relacionam ininterruptamente e diretamente por meio do twitter, de blogs e redes sociais – isto é, por meio do digital party –, operando sem mediação institucional,pondo em dúvida a validade dos parlamentos políticos e das instituições jurídicas, promovendo manifestações contra eles; (c) introduz a judicialização da política, pois, numa empresa e entre empresas, os conflitos são resolvidos pela via jurídica e não pela via política propriamente dita. Em outras palavras, sendo o Estado uma empresa, os conflitos não são tratados como questão pública e sim como questão jurídica, no melhor dos casos, e como questão de polícia, no pior dos casos; (d) os gestores operam como gangsters mafiosos que institucionalizam a corrupção, alimentam o clientelismo e forçam lealdades. Como o fazem? Por meio do medo. A gestão mafiosa opera por ameaça e oferece “proteção” aos ameaçados em troca de lealdades para manter todos em dependência mútua. Como os chefes mafiosos, os governantes também têm os consiglieri, conselheiros, isto é, supostos intelectuais que orientam ideologicamente as decisões e os discursos dos governantes, estimulando o ódio ao outro, ao diferente, aos socialmente vulneráveis (imigrantes, migrantes, refugiados, lgbtq+, sofredores mentais, negros, pobres, mulheres, idosos) e esse estímulo ideológico torna-se justificativa para práticas de extermínio; (e)transformam todos os adversários políticos em corruptos, embora a corrupção mafiosa seja, praticamente, a única regra de governo; (f) têm controle total sobre o judiciário por meio de dossiês sobre problemas pessoais, familiares e profissionais de magistrados aos quais oferecem “proteção” em troca de lealdade completa (e quando o magistrado não aceita o trato, sabe-se o que lhe acontece);
– ideologicamente, com a expressão “marxismo cultural”, os gestores perseguem todas as formas e expressões do pensamento crítico e inventam a divisão da sociedade entre o bom povo, que os apoia, e os diabólicos, que os contestam. Por orientação dos consiglieri, pretendem fazer uma limpeza ideológica, social e política e para isso desenvolvem uma teoria da conspiração comunista, que seria liderada por intelectuais e artistas de esquerda. Os conselheiros são autodidatas que se formaram lendo manuais e odeiam cientistas, intelectuais e artistas, aproveitando-se do ressentimento que a extrema direita tem por essas figuras. Como tais conselheiros estão desprovidos de conhecimentos científicos, filosóficos e artísticos, empregam a palavra “comunista” sem qualquer sentido preciso: comunista significa todo pensamento e toda ação que questionem o status quo e o senso comum (por exemplo: que a terra é plana; que não há evolução das espécies; que a defesa do meio ambiente é mentirosa; que a teoria da relatividade não tem fundamento, etc.). São esses conselheiros que oferecem aos governantes os argumentos racistas, homofóbicos, machistas, religiosos, etc., isto é, transformam medos, ressentimentos e ódios sociais silenciosos em discurso do poder e justificativa para práticas de censura e de extermínio;
– a dimensão planetária da forma económica neoliberal faz com que não exista um “fora” do capitalismo, uma alteridade possível, levando à ideia de “fim da história”, portanto à perda da ideia de transformação histórica e de um horizonte utópico. A crença na inexistência da alteridade é fortalecida pelas tecnologias de informação, que reduzem o espaço ao aqui, sem geografia e sem topologia (tudo se passa na tela plana como se fosse o mundo) e ao agora, sem passado e sem futuro, portanto sem história (tudo se reduz a um presente sem profundidade). Volátil e efémera, nossa experiência desconhece qualquer sentido de continuidade e se esgota num presente vivido como instante fugaz;
– a fugacidade do presente, a ausência de laços com o passado objetivo e de esperança em um futuro emancipado, suscitam o reaparecimento de um imaginário da transcendência. Assim, a figura do empresário de si mesmo é sustentada e reforçada pela chamada teologia da prosperidade, desenvolvida pelo neopentecostalismo. Mais do que isso. Os fundamentalismos religiosos e a busca da autoridade decisionista na política são os casos que melhor ilustram o mergulho na contingência bruta e a construção de um imaginário que não a enfrenta nem a compreende, mas simplesmente se esforça por contorná-la apelando para duas formas inseparáveis de transcendência: a divina (à qual apela o fundamentalismo religioso) e a do governante (à qual apela o elogio da autoridade forte).
Diante dessa realidade, muitos afirmam que vivemos num mundo distópico, no qual as distopias são concebidas sob a forma da catástrofe planetária e do medo. Vale a pena, entretanto, mencionar brevemente a diferença entre utopia e distopia.
A utopia é a busca de uma sociedade totalmente outra que negue todos os aspetos da sociedade existente. É a visão do presente sob o modo da angústia, da crise, da injustiça, do mal, da corrupção e da rapina, do pauperismo e da fome, da força dos privilégios e das carências, ou seja, o presente como violência nua. Por isso mesmo é radical, buscando a liberdade, a fraternidade, a igualdade, a justiça e a felicidade individual e coletiva graças à reconciliação entre homem e natureza, indivíduo e sociedade, sociedade e poder, cultura e humanidade. Uma utopia não é um programa de ação, mas um projeto de futuro que pode inspirar ações que assumem o risco da história, fundando-se na ação humana como potência para transformar a realidade, tornando-se imanentes à história, graças à ideia de revolução social.
A distopia tem um significado crítico inegável ao descrever o presente como um mundo intolerável, porém corre o risco de transformá-lo em fantasma e rumar para o fatalismo, a imobilidade e o desalento do fim da história. A utopia também parte da constatação de um mundo intolerável, mas em lugar de curvar-se a ele, trabalha para colocá-lo em tensão consigo mesmo para que dessa tensão surjam contradições que possam ser trabalhadas pela práxis humana. A imobilidade distópica decorre de sua estrutura fantasmática: nela, o intolerável não é o ponto de partida e sim o ponto de chegada. Ao contrário, a mobilidade utópica provém de sua energia como projeto e práxis, como trabalho do pensamento, da imaginação e da vontade para destruir o intolerável: o intolerável é seu ponto de partida e não o de chegada.
Se a utopia é a visão do presente sob o modo da angústia, da crise, da injustiça, do mal, da corrupção e da rapina, do pauperismo e da fome, da força dos privilégios e das carências, do presente como violência intolerável, não podemos abrir mão da perspetiva utópica nas condições de nosso presente.
Marilena de Souza Chauí é uma filósofa brasileira especialista na obra de Espinosa, professora emérita de Filosofia Política e Estética da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo. Entre a sua longa participação política, conta-se a resistência ativa à ditadura militar do Brasil.
Texto publicado em Outras Palavras a 08/10/2019.