Só de liberalismo é que não Chega

O partido com mais sucesso da extrema-direita nacional pretende passar por partido de protesto. Mas em questões económicas é totalmente alinhado com os interesses dominantes. O seu programa levaria à destruição da escola pública, ao fim do Serviço Nacional de Saúde e do princípio de que quem ganha mais, paga mais impostos.

13 de fevereiro 2020 - 12:04
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André Ventura junto com Pedro Passos Coelho na campanha eleitoral que o irá eleger como vereador do PSD em Loures. Foto de Nuno Fox/Lusa.
André Ventura junto com Pedro Passos Coelho na campanha eleitoral que o irá eleger como vereador do PSD em Loures. Foto de Nuno Fox/Lusa.

O Chega é o caso das suspeitas de ter utilizado no processo de legalização assinaturas falsas e que está a ser averiguado pelo Ministério Público, é o ex-autarca do PSD que o dirige que também está a ser investigado no âmbito do processo Tutti-frutti de corrupção e contratação de falsos assessores de forma a financiar o próprio partido ou grupos dentro dele, é o discurso anti-ciganos que o mesmo André Ventura promoveu no âmbito da campanha autárquica do PSD de Loures que o levaria a ocupar esse cargo, são as declarações sobre a deportação da deputada Joacine Katar-Moreira. É a exploração do medo e a promoção do securitarismo promovida pelo Ventura-político que tinha sido desmistificada pelo Ventura-académico. É a captura pelos seus interesses partidários das reivindicações laborais das polícias e a mistura disso com a negação ou desculpa da existência de casos de violência policial. É o partido sugerido por Mário Machado para os neonazis militarem. Mas não é só isso.

O primeiro partido da extrema-direita a entrar na Assembleia da República no pós-25 de abril é também o programa económico neoliberal que se esconde por detrás dos gritos de “vergonha”. A aparência anti-sistema do partido desvanece-se assim quando se lê o que pretende fazer à economia do país.

O programa com que se apresentou a eleições não deixa margem para dúvidas: “ao Estado não compete a produção ou distribuição de bens e serviços, sejam esses serviços de Educação ou de Saúde, ou sejam os bens vias de comunicação ou meios de transporte.” Fim do Sistema Nacional de Saúde e desmantelamento da Escola Pública.

Enunciado e repetido com toda a clareza: “o Estado não deverá, idealmente, interferir como prestador de bens e serviços no Mercado da Saúde mas ser, apenas, um árbitro imparcial e competente, um regulador que esteja plenamente consciente da delicadeza, complexidade e sensibilidade deste Mercado.” Para o partido de André Ventura, a saúde é um mercado maiúsculo antes de ser um direito universal.

O Chega quer a implementação de ferramentas de financiamento público de negócios privados como o “cheque-ensino” e o “cheque-saúde”. Mecanismos que define como provisório “durante um período de adaptação”. O reino dos seguros de saúde é o horizonte programático aqui enunciado.

O partido que era nacionalista defende afinal o seguimento das regras de Bruxelas referindo a “sã política de rigor orçamental no que respeita aos países integrantes do euro”. Empresas nacionalizadas também não: “ao Estado não compete a detenção direta ou indireta, maioritária ou minoritária, com golden-share ou sem ela, do capital social de qualquer empresa industrial ou de serviços no âmbito primário, secundário ou terciário da economia.” Vender ao desbarato todas as empresas públicos, privatizar transportes e águas são consequências deste credo neoliberal. Nem a Segurança Social está a salvo.

Aumentar a flexibilização laboral com redução de “salários, restrições legais (...), contribuições para a Segurança Social e custos de despedimento”, facilitando-os, criar uma taxa única de IRS para baixar os impostos a quem ganha mais, deixar que as grandes empresas paguem menos IRC e aumentar o imposto sobre consumo que toca todos, acabar com impostos sobre mais-valias e dividendos que atingem quem tem mais rendimentos são outros elementos importantes da política económica desta formação política.

O jornalista Daniel Oliveira resume assim a sua análise ao documento programático do Chega: o Estado não deve ter “nem escolas, nem hospitais. Rigorosamente nada. Tudo para o mercado. Ao Estado cabe defender o dinheiro dos ricos e ter cassetete pronto para os pobres”.

O economista João Rodrigues fala, no Le Monde Diplomatique, na “defesa do desmantelamento do Estado Social – dos direitos laborais que ainda subsistem ao fim do Serviço Nacional de Saúde e da escola pública, passando pela complementar defesa do fim da progressividade fiscal”. A este propósito explica ainda que “o liberalismo e o neoliberalismo não têm apenas consequências antidemocráticas, sendo desde logo marcados por causas antidemocráticas”, uma referência às simpatias políticas de economistas com von Mises ou Hayek, heróis dos liberais. E explica o mecanismo político do “populismo” de Ventura da seguinte forma: “trata-se no fundo de procurar enraizar o autoritarismo neoliberal, através de um estilo populista dito triádico. Este alimenta uma clivagem, sobretudo cultural, entre povo e uma certa elite, sendo que esta última é acusada de proteger um terceiro grupo, minoritário, que serve então de bode expiatório para problemas reais.”

Este “populismo” de André Ventura revela-se ainda em momentos como aqueles em que é capaz de criticar no Parlamento a falta de investimento público na saúde, sendo defensor da sua privatização como sublinhou o deputado Moisés Ferreira no recente debate do orçamento.

Ou quando apagou o programa eleitoral da sua página e prometeu, depois das críticas por querer acabar com o SNS, “uma clarificação em sentido inverso em relação ao que é o espírito do actual programa do partido”.

Vivendo de explorar a indignação, o Chega conseguiu ir a votos sem que as suas propostas económicas fossem conhecidas. Fez-se assim passar como anti-sistema, sendo afinal um partido do autoritarismo liberal. A aplicação deste seu programa favorece os ganhadores do sistema.

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