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“A bolso-economia está destinada ao fracasso”
Visto de fora, o "bolsonarismo" parecia à partida um projeto mais apoiado numa retórica anti-corrupção, justicialista, saudosista de um passado inventado. Havia à partida uma "bolso-economia"?
Jair Bolsonaro foi um político do chamado "baixo clero" da Câmara dos Deputados por três décadas. Desde o início de sua atuação parlamentar, ele buscou representar demandas corporativas dos militares e, posteriormente, com o crescimento do fenómeno das milícias cariocas, passou a incorporar também os interesses desses grupos. Nunca se destacou por nada de propositivo na Câmara, além de suas declarações sexistas, racistas, homofóbicas e autoritárias.
No contexto da crise política brasileira aberta pelo impeachment da presidente Dilma, pelos desdobramentos a operação Lava-Jato e pelo aprofundamento da crise económica (2015-2016), Bolsonaro soube se aproveitar da confusão generalizada da cena política do país, lançando-se como candidato da restauração da ordem. Trata-se de um discurso politicamente ambíguo, pois ele nunca detalhou o que faria para restaurar e, afinal, que “ordem” seria realmente restaurada.
A confusão gerada pela crise, as ambiguidades políticas do candidato – que diga-se, não participou dos debates presidenciáveis devido a uma facada recebida na ciade de Juiz de Fora – e, sobretudo, a ausência de um candidato alternativo ao campo de centro-esquerda viável eleitoralmente, transformaram Bolsonaro num político competitivo durante a campanha eleitoral de 2018. O debate económico em torno do programa do candidato praticamente não foi debatido e os media corporativistas brasileiros preferiram ocultar as informações sobre o programa do candidato e criar a figura do “Posto Ipiranga” (aquele que sabe tudo) Paulo Guedes, na época, assessor de Bolsonaro para assuntos económicos.
Enquanto os setores de centro-esquerda atacava o racismo do candidato, praticamente ninguém debatia sua agenda económica. E que agenda é essa: o programa “ultra-neoliberal” que, em termos esquemáticos, significa cortes radicais de gastos públicos, privatizações de empresas estatais e ataques aos direitos trabalhistas e previdenciários. A “economia política” de Guedes-Bolsonaro é a mesma do impopular governo de Michel Temer, ainda que radicalizada. Sem investimentos públicos e atacando os rendimentos do trabalho, sobram apenas a poupança internacional e os investimentos privados. Como os investidores internacionais estão fugindo do risco devido à crise EUA-China e como há uma reconhecida sobrecapacidade instalada nas empresas brasileiras, algo que bloqueia o investimento privado, o desempenho económico do país não consegue ser superior a 1% há três anos consecutivos. A “bolso-economia” é um programa condenado ao fracasso.
Que interesses tem servido a governação de Bolsonaro?
O governo Bolsonaro articula três grandes ordens de interesses sociais: o corporativismo das forças repressivas do Estado – isto é, as forças armadas, a polícia federal e as polícias militares estaduais; o corporativismo do poder judiciário brasileiro que busca a qualquer custo defender seus escandalosos privilégios de camada burocrática (ou seria, plutocrática?); e a pauta socialmente conservadora em relação aos costumes associada ao setor evangélico, em especial, neopentecostal, que tem garantido a base popular do governo. Bolsonaro soube contentar e integrar as corporações repressivas e judiciárias ao seu projeto de governo. Não há dúvidas quanto a isso. No entanto, a base popular do governo, apesar de ideologicamente alinhada ao “bolsonarismo”, é excessivamente sensível ao aumento das desigualdades sociais. Em especial, ela é sensível à compressão dos rendimentos do trabalho e aos ataques aos benefícios previdenciários. O ano de 2020 será um ano de enormes desafios para o governo, pois, a base popular do governo não é tão estável quanto crê a extrema-direita brasileira. As eleições municipais serão um bom termômetro para auferir a popularidade do bolsonarismo.
Pode-se classificar o setor que domina atualmente a política brasileira como neoliberal? O que aconteceu ao protecionismo económico tradicional na extrema-direita?
Não há nenhum traço de nacionalismo entre aqueles grupos que dominam o governo federal. Nem mesmo os militares. Na verdade, eles avalizaram sem questionar a venda da Embraer para a Boeing – uma empresa dirigida, basicamente, por militares das forças aéreas - além de apoiarem o plano radical de privatizações de Paulo Guedes, ministro da economia. O grupo dominante é basicamente oriundo do setor financeiro. E o poder judiciário está completamente imerso em sua tentativa de defender seus privilégios burocráticos. Ou seja, o governo é formado por setores entreguistas e egoístas. Daí a aceitação acrítica de uma agenda ultra-neoliberal.
Que impacto social teve este ano e pouco de governo? Há uma regressão de direitos?
No ano passado, o Congresso Nacional aprovou a mais dura contra-reforma da previdência social de que se tem notícia no país, com eliminação de direitos, aumento do tempo de contribuição e cortes nos benefícios. O desemprego continua elevadíssimo para os padrões nacionais (no último trimestre de 2019, a taxa de desocupação manteve-se em 12,1%, e o da taxa de desocupação por horas trabalhadas chegou a 15,4%) os rendimentos do trabalho seguem declinantes (o salário de admissão em dezembro foi mais baixo do que o de igual período em 2018, caindo de 1.597,94 reais para 1.595,53 reais) e a informalidade nunca foi tão elevada: entre as mais de 94,4 milhões de pessoas em atividade, 38,8 milhões encontravam-se em ocupações informais, trabalhando por conta própria ou no setor privado, sem registo formal. Essa fatia representa 41,1% da população ocupada. Um recorde histórico.
Qual o ponto da situação das resistências ao governo?
As perspetivas entre os setores mais ou menos tradicionais de oposição, ou seja, partidos políticos e sindicatos, não são nada boas. A fragmentação política não cede, a principal liderança política da oposição é incapaz de se renovar e mostra-se alguém muito mais alinhado com o passado do que com o futuro e, com o fim do imposto sindical implementado pelo governo Bolsonaro, o movimento sindical brasileiro enfrenta uma inédita e muito grave crise de financiamento. O polo mais dinâmico de resistência e que eventualmente poderia criar constrangimentos ao governo é formado por movimentos sociais urbanos ligados à moradia e ao transporte, por estudantes, e por aqueles setores da classe trabalhadora usualmente desorganizados, mas com um potencial disruptivo enorme, como os motoristas de autocarros e camiões. Ocorre que esses setores encontram-se: ou muito pressionados pelas forças repressivas do Estado, caso do MTST, por exemplo, ou são inexperientes politicamente, caso dos estudantes, ou continuam deixando-se cooptar pelo governo, caso dos camionistas. Ou seja, as principais fontes de resistência ao governo estão desarticuladas e fragilizadas. Daí a “aparência” de haver um "governo" quando, na realidade, o que temos é um assalto aos fundos públicos orquestrado por uma aliança política esdrúxula formada por milicianos, militares, banqueiros, policiais e juízes. Isso sem mencionar os terraplanistas e os criacionistas que controlam o Ministério da Educação. Enquanto o ritmo da vida política no país não se alinhar ao restante da América Latina, não haverá a menor chance de uma solução progressista para a crise brasileira.
Ruy Braga é Professor de Sociologia na Universidade de São Paulo, especialista em Sociologia do Trabalho. É chefe do Departamento de Sociologia da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP, onde coordena o Centro de Estudos dos Direitos da Cidadania (Cenedic).
Entrevista de Carlos Carujo.
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