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Conferência sobre vacinas discutiu patentes e partilha de tecnologia

Especialistas nacionais e internacionais discutiram esta quarta-feira, a convite do Bloco, as formas de ultrapassar a atual situação de escassez na produção de vacinas e a desigualdade na sua distribuição a nível global.

Decorreu esta quarta-feira ao final da tarde a conferência online "Vacinas: quantas vidas vale um negócio?". Convocada com o objetivo de discutir a questão das vacinas e as causas que originam a escassez na produção e distribuição, o painel contou com figuras nacionais e internacionais proeminentes da área da Saúde, do Direito e de ONG's. Aqui resumimos o essencial das suas intervenções.

A eurodeputada Marisa Matias, que fez parte do grupo de contacto do Parlamento Europeu com as farmacêuticas, abordou a trajetória da investigação em tempo recorde, que considerou uma vitória da ciência e lembrou que o desenvolvimento da vacina contou com um investimento europeu muito forte, de 9,8 mil milhões, tendo retirado todo o risco associado às farmacêuticas. Marisa criticou a ausência de transparência como um bloqueio que não permitiu o acesso aos contratos. E disse que "quando olhamos para os contratos que existem, percebemos que, se é verdade que a definição dos termos foi praticamente totalmente definida pelas farmacêuticas, se é verdade que os acordos assinados país a país dependem muito das farmacêuticas, depois não são as farmacêuticas que assumem a responsabilidade em caso de falhas. Porquê colocar as vacinas nas mãos dos privados, se esses falharam? É um prémio que é dado a quem falhou.” A prioridade aos passaportes sanitários foi também criticada na sua intervenção.

O médico Bruno Maia fez uma abordagem pelo percurso histórico da luta contra o VIH, as dificuldades das populações dos países mais pobres para conseguirem ter acesso a medicamentos e o confronto com as grandes farmacêuticas que se opuseram a decisões de governos como o de Nelson Mandela, para ilustrar as dificuldades deste momento e os interesses económicos que também se aproveitam desta crise pandémica. Considerou ainda que "os mesmos Estados que pagaram o desenvolvimento da vacina compraram a totalidade da sua produção à medida que ela vai sendo feita. Ou seja, em resumo: o povo pagou o desenvolvimento da vacina e a seguir ainda vai pagar a produção da sua própria vacina". Lamentou ainda que "talvez estas vacinas nem sequer venham a acabar com esta pandemia. Porque a vacina só funciona a partir do momento em que a população mundial atinja a imunidade de grupo e isso só deve acontecer em cerca de quatro anos, de acordo com a OMS”.

José Aranda da Silva, que foi Bastonário dos Farmacêuticos, Presidente do Infarmed e Diretor do Laboratório Militar, diz que quem contacta de perto com o setor sabe que existe capacidade excedentária para a produção de vacinas. Apesar de, na sua opinião, o negócio das empresas farmacêuticas ter vindo a direcionar-se para a investigação, feita em locais públicos muitas vezes, e ainda que tenham sido fechadas muitas unidades industriais no sul da Europa, considera que "verdade é que as grandes empresas já fazem a produção através de terceiras", subcontratando outras empresas. Acrescenta que "não se percebe o que anda a fazer a Comissão Europeia e a presidência da União Europeia, que por acaso neste momento é portuguesa. Estamos perante uma situação dramática e ainda por cima sabemos que há leis a nível global, a nível europeu e a nível nacional que regulam a utilização em casos especiais de mecanismos que permitam obrigar à produção, por razões de saúde pública e catástrofe.” 

Suerie Moon, co-diretora do Centro de Saúde Global do Instituto Universitário de Altos Estudos Internacionais de Genebra e co-Presidente do Fórum Global para a Governação de Harvard, considera que há muitas ferramentas que os Governos têm à sua disposição se quiserem "ir ao volante". E que "é uma questão de vontade política". Diz que "há muitos canais que podem ser usados", como as vias legais "e a Europa pode mudar a sua posição, que até agora tem sido de opor-se à renúncia do acordo TRIPS (Acordo sobre Aspectos dos Direitos de Propriedade Intelectual Relacionados ao Comércio)." Considera que "apoiar esse levantamento é fortalecer o poder que todos os governos têm para obrigar à transferência tecnológica".  Acrescenta que "no fundo, seria mais rápido se os detentores da tecnologia dissessem 'queremos fazer isto' em vez de terem de ser obrigados" mas que "às vezes as coisas acontecem mais rápido quando estamos um bocadinho pressionados". Considera ainda que se assistiu a uma muito interessante viragem no debate público. Numa nota de esperança, a oradora disse ainda que quando há umas semanas apenas se ouvia que não há know-how, nem capacidade, nem material, agora já não se ouve isso por parte de dirigentes europeus e responsáveis públicos por causa do efeito da pressão política. Acredita numa mudança, da qual "precisaremos no longo prazo" uma vez que "não sabemos ainda quantas vezes vamos precisar de vacinas". Que este é "um negócio muito grande" e que atualmente não existem inventivos de mercado para partilha e transferência de tecnologia e que os governos nao podem aceitar isso, assim como impedimentos à exportação de medicamentos e vacinas, como recentemente assistimos na Europa. Considera ainda que dos contratos que a Comissão assinou com as empresas advém um poder negocial que deveria estar a ser exercido  para exigir outras soluções no que toca à transferência de tecnologia, o que não está a ser feito.

Covid tornou "mais visiveis as imperfeições deste sistema"

João Antunes, Representante em Portugal dos Médicos Sem Fronteiras, avisa que antes da Covid já havia um desafio com que se deparavam devido à dificuldade de acesso a medicamentos e vacinas e que, com a Covid, ainda ficaram "mais visiveis as imperfeições deste sistema." O que os Medicos Sem Fronteiras pedem é a anulação de patentes e de outros monopólios que prejudiquem o acesso das populações a medicamentos, porque "só assim se pode garantir a disponibilidade dessas ferramentas" de combate à pandemia. Recordou ainda que existe uma proposta que foi lançada pela África do Sul e pela Índia e que conta já com mais de 100 países, para a suspensão da propriedade intelectual. Em nome dos Médicos Sem Fronteiras pediu para que "Portugal faça história na sua presidência da União Europeia, apoiando esta proposta.” 

Teresa Summavielle - é investigadora no i3S, Bioquímica e Professora Universitária, defendeu que "precisaríamos de cerca de 45 milhões de euros para termos uma vacina que passasse os ensaios clínicos e fosse aprovada", sendo necessário investir mais 100 milhões numa infraestrutura para passar à fase de produção. Que a fase inicial de desenvolvimento do imunizante contra o Covid está estimada num montante entre os 500 mil euros e um milhão de euros, assegurando que Portugal tem “absoluta capacidade de desenvolver” este trabalho de investigação. A transição para ensaios pré-clínicos representaria um investimento entre entre os três e os cinco milhões, enquanto os ensaios clínicos efetivos rondariam entre os 30 e os 40 milhões de euros. Defendeu que com este tipo de investimento se passaria a dispor de “capacidade para produzir estas vacinas que nos dariam uma resposta mais eficaz do que as grandes empresas farmacêuticas e com as quais poderíamos chegar a bom porto de uma forma muito mais inteligente”.

Moisés Ferreira, deputado na Assembleia da República pelo Bloco de Esquerda, abriu o painel de debate da perspetiva economico jurídica e criticou que enquanto "individualmente podemos abdicar, em nome da pandemia, de determinadas liberdades constitucionais e universais", que depois "nunca se pode pôr em causa a propriedade privada e o levantamento das patentes." Disse que "se o investimento é público, a propriedade deve ser pública" e que "se é preciso uma resposta global para combater a pandemia, então essa resposta deve ser construída com base em solidariedade e não em competitividade”. Acrescentou ainda que o Bloco de Esquerda deu já entrada no Parlamento de uma resolução para que o governo português tome uma posição sobre a suspensão dos direitos das patentes.   

"Se partilharmos tecnologia, o processo vai acelerar"

Miguel Prata Roque, jurista, Professor de Direito e ex-Secretário de Estado da Presidência do Conselho de Ministros, considera que o "Direito tem de se adaptar às necessidades de cada momento histórico, resolvendo problemas concretos das pessoas". E que quando existe fundamento de interesse público, a propriedade privada pode ser colocada em causa. Acrescenta que o artigo 17 da Declaração Universal dos Direitos Humanos determina precisamente que ninguém pode ser arbitrariamente privado da sua propriedade. Segundo Miguel Prata Roque o código da propriedade industrial prevê também a expropriação, sendo que apenas prevê que um interessado, "no caso uma empresa de genéricos", pudesse pedir uma licença. No entanto, o Estado poderia intervir, uma vez que há um manifesto interesse público no acesso, salientando os vários mecanismos legais já previstos na lei. Refere ainda o papel da Comissão Europeia neste tema, uma vez que o mercado português tem pouca dimensão para solucionar este problema.

Inês Monteiro Alves, Coordenadora Jurídica da Inventa International, disse que o sistema de patentes prevê a salvaguarda dos interesses públicos, nomeadamente licenças compulsórias. Considera que "uma licença compulsória é uma prática de um Governo autorizar a si próprio ou terceiros o uso de uma patente, sem o consentimento do seu titular, por razões de políticas públicas e mediante pagamento de uma compensação." Que "o motivo para licença compulsória que faz sentido num contexto de pandemia são as razões de interesse público. Há interesse público quando se verifique insuficiência em quantidade ou qualidade da exploração e isso implicar grave prejuízo para o desenvolvimento económico do país. A licença compulsória está dependente de um juízo de proporcionalidade entre o direito à propriedade e o direito à saúde, que aqui não há qualquer tipo de dúvidas que se encontra preenchido, e por isso se tem considerado que este é o mecanismo que tem de se acionar para conseguir combater a pandemia eficazmente.” Sobre a discussão político-juridica internacional, tem observado uma combinação de posições criticas e de modelos alternativos que fazem a rejeição do atual modelo de patentes como sendo incapaz de assegurar os interesses públicos, seja com uma defesa da dianteira pública que permita uma distribuição equitativa, seja por um levantamento de regras da propriedade intelectual.

Sangeeta Shashikant, consultora jurídica e Coordenadora do Programa de Desenvolvimento e Propriedade Intelectual na Third World Network, referiu que os direitos de propriedade intelectual não são direitos absolutos. Que existe legislação prevista para as licenças compulsórias e que há várias soluções disponíveis, até as que enquadram uma compensação com as empresas. Reforça que é falso que precisemos de transferir conhecimento ou a vacina não será produzida, uma vez que já vimos vários países transferirem tecnologia para outros países e que "se partilharmos tecnologia o processo vai acelerar". E que no caso das licenças compulsórias elas dizem geralmente respeito aos mercados domésticos, o que para exportar se torna mais complicado. Sobre isso, afirmou que o artigo 31 é um mecanismo importante, mas que a UE optou por nao o usar.

"Se não existir uma solução global, não existe uma solução em lado nenhum"

O eurodeputado bloquista José Gusmão considerou que "se o princípio da vida humana não for suficiente para convencer os liberais, acho que os devemos recordar que o confinamento a que estamos todos submetidos por força da persistência desta pandemia está a ser um fator de violação de um conjunto de direitos económicos de empresas e indivíduos que não são certamente menos importantes do que direitos de propriedade." Acrescentou que "se não existir uma solução global, não existe uma solução em lado nenhum" e que "é importante que façamos chegar ao governo português esta mesma mensagem, porque já existem vários países na UE a colocar pressão sobre a Comissão Europeia"

"O governo português tem sido pouco atuante, pelo menos daquilo que se sabe publicamente”, prosseguiu Gusmão, abordando o problema da velocidade e da eficácia da pandemia como estando interligados. "Esta não é uma questão de sabermos se vacinamos até março ou até agosto", mas antes de como garantir que utilizamos a capacidade instalada a nível global para impedir o surgimento de novas variantes, contra as quais as novas vacinas podem já não ter efeito. E que o foco central da discussão tem de ser a partilha de tecnologia, até porque ao longo da história recente, na maioria das vezes, os estados não chegam a quebrar patentes. Isto porque a mera ameaça faz iniciar um processo de negociação cujos efeitos são os mesmos: a partilha de tecnologia.

José Gusmão considera também que a decisão é saber se possibilitamos que toda a indústria, pública e privada, possa produzir e vender vacinas com a sua compensação razoável, ou se mantemos esta solução para meia dúzia de grandes empresas obterem lucros pornográficos. Para o eurodeputado, a Europa está a falhar na vertente interna, porque "não só não resolvem o problema, na sua relação com farmacêuticas, como o estão a bloquear à escala europeia".

 

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