"Europa comete um tremendo erro ao atrasar vacinação por não ter coragem de quebrar as patentes"

Em entrevista ao esquerda.net, a eurodeputada Marisa Matias aborda a falta de transparência do processo de decisão europeu sobre as vacinas, a que assistiu enquanto coordenadora da respetiva comissão no Parlamento Europeu. E diz que o Covax, a iniciativa da OMS para levar a vacina a todo o mundo, se arrisca a ser uma "caixa dos restos" se continuar a ser boicotado.

07 de março 2021 - 16:47
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Marisa Matias.
Marisa Matias. Foto Daina Le Lardic/Parlamento Europeu

A eurodeputada Marisa Matias é uma das coordenadoras da Comissão de Indústria, Investigação e Energia (ITRE) e, por isso, esteve no grupo de contacto do Parlamento Europeu com os CEO's das grandes farmacêuticas. Em entrevista ao Esquerda.net, diz que não ficou surpreendida com estes resultados (de escassez, de incumprimento de contratos e de desigual distribuição da vacina), uma vez que assistiu a toda a falta de transparência deste processo, ao sobrepeso das empresas nas tomadas de decisões e à complacência das autoridades europeias com os seus interesses. Recorda o que se "andou na luta contra as patentes no VIH" mas que "para o Covid não temos esse tempo". E considera que nunca foi pelo secretismo que se fez ciência.


Como foi o inicio do processo no Parlamento Europeu de contacto com as farmacêuticas, que tipo de condições foram estabelecidas? Era previsível que viesse a desenrolar desta forma?

O processo foi desencadeado no Parlamento Europeu através de um procedimento de consulta rápida e, portanto, não houve um papel legislativo do Parlamento Europeu ou de influência da decisão, mas houve sim pareceres e houve muitas reuniões com base nos procedimentos escritos de tomada de decisão sobretudo na fase inicial, no que diz respeito a adjudicar verbas públicas europeias para investigação. E foi até um momento particularmente interessante, porque nessa altura nós estávamos na fase de negociação do programa Horizonte Europa, que é o maior programa público de investimento na investigação e na inovação a nível mundial, em que o Conselho estava a puxar o orçamento para baixo, a tentar reduzir e cortar muito. Mas com a pandemia, à medida que se foi percebendo a importância da investigação pública europeia, a importância da investigação passou a estar em cima da mesa. Por exemplo, no método de investigação alternativo das vacinas, que tem a ver com a técnica mRNA, essa investigação foi muito desenvolvida em várias partes da Europa e em bolsas, por exemplo, do European Research Council. Então nós, coordenadores dos grupos parlamentares, fomos consultados, em reuniões à porta-fechada, "in camara", e basicamente demos luz verde a todo o investimento possível na área da investigação para se poder caminhar para o desenvolvimento da vacina. Foi esse o papel, não decisório mas, se quisermos, de desbloquear e de incentivar todo o investimento público possível na investigação da vacina. No total, com legislação e fundos europeus com mecanismos de cooperação, a União Europeia acabou por juntar 9,8 mil milhões de euros para investir nesta área. Na segunda fase, começamos a fazer audições com as farmacêuticas, também tudo à porta fechada, os coordenadores de três comissões. Em todos os encontros que tivemos com os comissários, a questão das patentes foi sempre a questão central. E nunca tivemos resposta para as perguntas e nenhum feedback em relação às exigências. Não é que no Parlamento Europeu haja uma maioria pró libertação da patente, isso não existe. E nessas reuniões havia grupos parlamentares, eu incluída, a exigir um acordo que mantivesse a propriedade pública, no seguimento do financiamento público à investigação, transparência, que houvesse abertura na negociação dos contratos e nada disso foi cumprido. E independentemente das posições, para ser justa com os meus colegas, houve sempre uma tónica grande em tentar perceber como é que iria funcionar a patente. De um lado havia a exigência para que ela fosse pública, mas do outro também havia uma tónica grande para ter conhecimento, transparência no processo, etc. E nada disso aconteceu. Nós acabámos depois por ser confrontados com o facto consumado dos acordos já negociados com as farmacêuticas, com os contratos assinados, dos preços já definidos, com os pagamentos adiantados. E é do conhecimento público, quando se revelaram os conteúdos dos contratos, que nós tivemos acesso a uma parte muito mínima e quase nada do que era crítico em relação aos contratos.

Quando se tornaram públicos os contratos e a realidade das suas clausulas, foste surpreendida?

Infelizmente não foi surpreendente. Porque tanto secretismo, tanta falta de interesse em prestar contas ao Parlamento, quando nós estávamos a fazer tudo que era possível para incentivar a Comissão a investir para aprovar, para facilitar, etc., obviamente só poderia ser ausência de resposta e eu fiz várias perguntas em várias audições que ficaram paradas, sem resposta. Portanto, ausência de resposta só podia ser um sinal de que não havia essa preocupação e, além disso, nas primeiras reuniões que tivemos com representantes das farmacêuticas, também ficou muito claro que eles estavam só interessados no processo se pudessem manter a propriedade das vacinas e, portanto, só se pudessem manter a propriedade intelectual. Isso foi claríssimo, desse ponto de vista não me surpreendeu. O que me surpreende é a insistência das instituições europeias em manter o processo completamente escondido, em não perceber ou não querer alterar as coisas, porque entretanto temos problemas de produção, temos problemas de distribuição, temos problemas relacionados com quase tudo o que está com a vacina. É como disse o António Guterres e bem, foi um sucesso para a ciência, foi surpreendente o que se conseguiu fazer em termos de investigação científica, desenvolvimento em tão pouco tempo, taxas de sucesso muito mais elevadas do que qualquer outra vacina em processos muito mais longos...  mas foi um sucesso para a ciência que não teve nenhum respaldo na solidariedade, que está a ser um fracasso e obviamente retirou-se das mãos do público essa possibilidade. Eu recordo-me que na altura que a Comissão Europeia até se envolveu mais ativamente e foi a primeira vez que vimos a Comissão a tratar de uma questão de saúde pública, proativamente e com uma atitude de investir, porque geralmente tendem a tentar cortar o investimento. Mas depois foi isto: os custos são todos públicos e os benefícios são privados e com consequências muito trágicas a todos os níveis.

Tem sido dito por algumas vozes que as patentes são essenciais para a alavancagem de financiamento à investigação. Trabalhas em questões da área da saúde há muitos anos, qual é a tua perceção?

Uma das razões que levou a rapidez de encontrar uma resposta e uma vacina foi a troca de informação, foi a partilha, foi a capacidade que investigadores tiveram de poder cruzar informações, de investigações já previamente feitas, foi isso que essa abertura permitiu. O secretismo em ciência nunca foi sinónimo de progresso. E, portanto, não posso estar de acordo que sejam fundamentais as patentes para alavancar a investigação. Eu não quero retirar às farmacêuticas a parte em que elas têm um papel determinante, e têm, mas esse papel resulta de muitos fatores, de muitos atores, do muito envolvimento de muita gente, muitos países, e portanto, não é normal que num processo tão plural, tão cooperante, seja apenas uma parte a retirar os dividendos, isso é que não é aceitável.

A ONU fez inicialmente um apelo à partilha de tecnologia e informação, por via de um mecanismo que criou, a que nenhuma farmacêutica recorreu. Sem sucesso, acabou a canalizar os esforços para o Covax (ainda que recentemente tenha vindo, também, criticar abertamente as patentes neste processo). O Covax é suficiente?

Se o Covax continuar a ser boicotado, não chega. É uma boa ideia, mas que só vive e só pode ter sucesso se nós mudarmos radicalmente de paradigma que tem estado subjacente até aqui na criação e produção da vacina. O Covax parece-se mais com uma espécie de caixa dos restos, ou de gaveta dos restos, do que propriamente central na intervenção e isso o que determina tudo. E isso é o que determina que agora possamos, por exemplo, estar a discutir questões como a dos passaportes sanitários, que é absolutamente vergonhoso. Sobretudo quando os países tem acessibilidades tão distintas à vacina. E portanto, não chega apenas os países com mais recursos estarem a concentrar a vacina, sem nenhuma preocupação, que funcionem mecanismos que permitam distribuição da vacina por todo o mundo, como depois são esses países que tiveram acesso, que têm mais recursos, que bloquearam acesso doutros, que se sentem no direito de poder fechar as fronteiras ao mundo não vacinado, ao mundo ao qual não chegou a vacina, por muita responsabilidade, obviamente, destes governos e destas instituições. O Covax, se for uma declaração de intenções, nunca vai funcionar e para que funcione e chegue a todos tem de parar de ser boicotado.

Concordas com quem diz que seria sempre complicado que não fossem as farmacêuticas a ter este papel na produção?

É verdade que as unidades de produção estão muito concentradas nas farmacêuticas e no setor privado, tudo isso é verdade. Mas também é verdade que esta podia ser uma oportunidade para revitalizar setores de produção de medicamentos na esfera pública e não está a ser, pelo contrário. Está a reforçar-se cada vez mais a capacidade privada às custas de impedir que o setor público o possa fazer. O fundamental para a produção é que quem detém a produção e tem todos os direitos, condições e garantias não esteja tão protegido do ponto de vista da regulamentação e que essa regulamentação permita desencadear mecanismos em que a produção pública de medicamentos volta a estar no centro da agenda. Porque é que isto é tão fundamental e não é só apenas uma questão da vacina contra a Covid. É fundamental porque há setores inteiros da saúde aos quais a indústria e setores privados não chegam. Por exemplo, a questão das doenças raras. Falamos de 300 milhões de pessoas que não têm medicamento adequado porque nunca na vida vão ser lucrativos para serem produzidos pelas farmacêuticas. E, portanto, tem de ser uma responsabilidade pública, porque quando não há mercado nem setor público, ninguém se encarrega. E por não haver mercado, porque estamos a falar de milhares de doenças raras, e como não há produção de resposta de medicamentos, para esses setores também seria fundamental procurar renovar e voltar a tornar o setor público de produção de medicamentos central na nossa sociedade. E obviamente que nós temos uma situação crítica, de urgência, extrema e portanto se não é nestes quadros em que não há uma quebra de patente e uma prevalência do interesse comum, não há nenhum critério que a partir daqui isso aconteça. E o que nós vimos acontecer por exemplo em relação ao VIH, o que foi preciso lutar, andar, para que houvesse quem tivesse a coragem para romper com as patentes e tentar avançar com alguma investigação... nós não temos esse tempo em relação à Covid. E sobretudo há uma garantia para esta indústria de que os recursos nunca vão faltar. Não só não há o tempo, como não há o interesse. Nem sequer vai haver um abrandamento a não ser que a legislação permita essa partilha de conhecimento e a partilha também da produção. O processo de produção da vacina é muito complexo, depende de muitos elementos, de milhares de ingredientes, de uma cadeia muito complexa também, do sistema de produção, do sistema de armazenamento e conservação das vacinas. E tudo isso que tem sido avançado para não libertar a patente, a mim só me faz pensar que são precisamente essas razões que nos deveriam obrigar a libertar a patente. Porque têm de ser as entidades públicas a ter essa capacidade de gestão e de manuseamento, porque senão estamos a criar um monstro para além dos monstros que já existem. E de facto não é o caso de todas as farmacêuticas, mas algumas estão já a fazer distribuição de dividendos, aumentaram imenso os lucros, não apenas com a vacina mas com toda a situação da pandemia. E isso tem de nos fazer pensar da forma como está organizado o setor público da farmácia, que praticamente não existe.

E o problema dos preços das vacinas que estão a vender aos países que não são da UE...

Claro, já para não falar disso nos esquemas que foram montados em vários países. Fala-se de muitos, mas o caso de Israel é muito crónico em relação a isso, compra de vacinas muito para além das suas necessidades, que obviamente não incluem a população da Palestina, impedindo a entrada de outras, o que é uma violação dos direitos humanos e direitos internacionais, mas usando a vacina como uma arma política nas eleições, nomeadamente da troca de vacinas a troco, passe a redundância, de passar as embaixadas desses países para Jerusalém. E isso é uma afronta com a conivência total da Pfizer. Mas a Pfizer está envolvida em vários esquemas destes, não só com Israel. E claro que têm todo o poder para poder ir gerindo como bem entenderem, tendo em conta aquilo que conhecemos dos contratos.

Previamente aos contratos com os governos, aconteceram negociações entre laboratórios e farmacêuticas para compra de patentes. Como viste esse processo?

Esses acordos ocorreram porque, de facto, são as farmacêuticas que detém a capacidade, à partida, de produzir esses medicamentos. Mas não foi simples e sem tensões, ao contrário do que se diz. Por exemplo, a negociação da AstraZeneca com Oxford foi extremamente difícil. A AstraZeneca só conseguiu chegar a acordo depois de garantir que cobraria a preço de custo enquanto durasse a pandemia, exigência dos cientistas de Oxford. No entanto, o contrato que assinou com a Comissão Europeia só garante esse preço até Junho de 2021. Obviamente, ninguém acredita que a pandemia vai acabar em Junho... Mesmo que houvesse a vacinação de toda a população europeia, o mundo é mais que a Europa... Agora, nós estamos numa situação que, por todas as razões, teria de ter servido como catalisador para desenvolver áreas de serviço público, como a produção de medicamentos, que estão muito fragilizadas por causa do sobrepeso das farmacêuticas no setor da saúde pública. E o que estamos a fazer é a reforçar esse peso, exatamente o contrário. E durante muito tempo se disse que esse peso derivava do investimento ser totalmente privado, do esforço e do risco ser assumido pelas farmaceuticas: neste momento, não há risco assumido pelas farmacêuticas porque o investimento é maioritariamente público. E portanto, as farmacêuticas conseguem continuar a fazer a mesma política de medicamento, a mesma política de concentração, a mesma política de escolha a quem tem e não tem direito a viver melhor por causa dos medicamentos que são produzidos, sendo que o investimento que está a ser injetado é maioritariamente público, nada mudou na lógica das farmacêuticas, só reforçou.

Concordas com os que dizem que estas criticas às farmacêuticas podem ajudar o movimento de desinformação anti-vax e tornar mais problemático o processo de vacinação?
 
Não. Primeiro porque o combate ao movimento anti-vax faz-se com informação, pedagogia, investimento público, conhecimento. Não conheço precisamente os dados do Eurobarómetro mas basta lembrarmo-nos que quando se começou a desenvolver a vacina, a percentagem de pessoas que queria levar a vacina era ínfima e isso alterou-se radicalmente. O que tem também a ver com a sobre exposição às noticias, o que têm o seu lado negativo, mas, às tantas, também permitiu que muita gente fosse informada sobre a pandemia, sobre os desenvolvimentos científicos... Acho que não houve nada nos últimos anos que tornasse tão evidente a centralidade da ciência. E o que gerou nas pessoas foi aceitação, percebem na vacina um fator de proteção contra a pandemia. A aceitação das vacinas não tem a ver com a critica às patentes nem sequer com farmacêuticas, tem a ver com a qualidade das vacinas, com o seu efeito. E a concentração no tempo de uma pandemia, entre o desenvolvimento da pandemia, o desenvolvimento da vacina, a aplicação da vacina, a criação da imunidade de grupo, é a perfeita demonstração de porque é que vale a pena tomar vacinas e proteger-nos a todos. Obviamente que se houver atrasos, nomeadamente resultante das patentes e da propriedade privada... Eu diria que é ao contrário: quanto mais atrasos houver e menos se pressionar as farmacêuticas, mais se cria espaço para voltar haver desconfiança em relação a vacina.

O passaporte parece surgir como o mecanismo que se encontrou para remendar o facto de o mundo poder não vir a ser todo vacinado. Parece-te válido este mecanismo?

Não, de nenhuma forma. Primeiro porque não está provado que não se pode fazer um plano de vacinação que inclua o mundo e que possa ser mais distribuída a vacina e que se possa chegar a um principio de imunidade mais transversal e que permita albergar muita gente que está fora do plano, nada disso está ainda por provar. Mas por outro lado, e se nos orientássemos por mecanismos que vieram da ONU e OMS, se calhar poderíamos ter uma resposta em relação a isso... Mas há aqui, por outro lado, uma dimensão muito perversa e que é muito complicada:  que é dividir o mundo entre aqueles que têm mais recursos e que podem vacinar e os outros. E portanto a Europa já está a cometer um tremendo erro quando atrasa a vacinação nos países europeus por não ter coragem de quebrar as patentes. E o pior que podia fazer a seguir, era depois de atrasar a vacinação das populações na Europa era fechar a porta ao resto do mundo, a quem a falta de coragem para quebrar com as patentes negou o acesso e o direito à vacina, portanto parece-me tudo mal.

Dado esse contexto, achas que seremos obrigados a alterar a perspetiva sobre esta questão da produção?

Não consigo pensar em nenhuma solução real que não passe por quebrar as patentes. Primeiro precisamos que isto funcione e para isso convinha vacinar o maior número de pessoas possível, o mais rapidamente possível, até pela questão da confiança no tratamento. Por outro lado, o mundo não aguenta cavar ainda mais um fosso além dos que já existem nas relações entre os países, as desigualdades e os desequilíbrios a nível mundial. Por isso acho que temos de apontar para fazer um esforço ainda maior, mesmo que isso passe por investir ainda mais dinheiro, para conseguir fazer desta vacina um bem comum. Não estou mesmo a ver como se pode solucionar se não for assim. Haverá sempre países que não poderão aceder. E acho que isso só lá vai mesmo com a questão da propriedade. Da mesma maneira como os investigadores cooperaram, e partilharam informação e se juntaram, permitindo este avanço extraordinário, tem de haver força das instituições europeias e dos governos para impor às farmacêuticas o cumprimento de normas mínimas de proteção daquilo que é um bem comum. Porque quando nós conseguirmos erradicar o vírus ou pelo menos controlar a pandemia (esta, depois não sabemos das outras) obviamente que as farmacêuticas vão deixar de ter interesse. Só enquanto não houver cura é que elas têm interesse.

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