Vacina Covid: quando as patentes só empatam

A atribuição a empresas privadas de direitos exclusivos sobre as vacinas para a covid-19, apesar de todo o financiamento e garantias públicas que viabilizaram o seu desenvolvimento, está a atrasar dramaticamente o ritmo de vacinação. Por José Gusmão.

07 de março 2021 - 16:44
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vacina

Num artigo de 16 de fevereiro, Catarina Maia criticou algumas pessoas que têm defendido o levantamento das patentes e afirmado que as vacinas Covid devem ser bens públicos globais. Uma proposta “sexy” que seria um “exercício de demagogia”, feita para pessoas pouco “familiarizadas com a temática da inovação e da propriedade industrial”.

Para o fazer, enuncia vários factos falsos, incorre em várias contradições, chega a algumas fatalidades e faz uma proposta para resolver o problema.

O primeiro facto falso é o de que a situação atual não constitui um abuso de posição dominante de mercado, ou seja, a exclusão de concorrentes do mercado. Uma tese que a autora justifica com base em três compromissos: o da Moderna para não processar outras empresas, o compromisso da Astrazeneca de não ter lucros e o da Pfizer de fazer chegar 40 milhões de doses a países do 3º mundo. Estas jogadas publicitárias não resistem a um exame mais atento:

a) Como foi prontamente denunciado pelos Médicos sem Fronteiras, o compromisso da Moderna é totalmente vazio, se não for acompanhado da divulgação dos processos necessários à produção da vacina. A Moderna assume um compromisso que sabe ser inútil, como prova o facto de não ter aderido à plataforma de partilha da OMS.

b) A venda de vacinas a preço de custo pela Astrazeneca é uma condição imposta pelos investigadores da Universidade de Oxford que desenvolveram a vacina para a cedência da patente. Este compromisso foi assumido pela Astrazeneca enquanto durar a pandemia, condição definida nos contratos com a UE e Reino Unido a determinar “em boa fé” pela... Astrazeneca.

c) O compromisso da Pfizer para as 40 milhões de doses foi assumido até ao final de 2021, corresponde a 2% das doses previstas pela empresa nesse período. Quem tem observado o desempenho da Astrazeneca em relação a contratos firmados ficará com uma ideia do que vale este anúncio sem nenhum valor legal.

Estes compromissos destinam-se essencialmente a aliviar a pressão de todos os que se comprometeram com a vacina como um bem público global. Estes incluem, para além de Carmo Afonso, Inês Alves Monteiro ou o autor destas linhas, a ONU, UNICEF, OMS, chefes de Estado de 99 países em vias de desenvolvimento e dirigentes das instituições europeias.

Catarina Maia diz que já em março de 2020 havia propostas para suspender o acordo TRIPS que regula a propriedade industrial no âmbito da OMC. Não refere que propostas eram essas. Mas o acordo em causa estabelece nos artigos 30 e 31 uma ampla margem de manobra para que os Estados possam impôr excepções à proteção associada à propriedade industrial. A Declaração de Doha, também no âmbito da OMC (e do TRIPS) confirma e reforça essas exceções em contexto de crises de saúde pública. Em resumo, o acordo TRIPS não precisa de ser suspenso, pelo simples facto de já conter disposições mais do que suficientes para lidar com a atual situação.

O levantamento de patentes e a atribuição de licenças compulsórias não só não é ilegal à luz do direito internacional, como é um poderoso instrumento de saúde pública que deve ser utilizado em situações de necessidade, por via da vontade politica e da legislação interna nos países (como previsto no objetivo 3 dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável da Agenda 2030 da ONU). Prova que assim é já foi dada nesta crise de várias formas. 1) Vários países, logo no início da crise pandémica, reforçaram a sua legislação interna para a emissão compulsória de licenças, caso fosse necessário quebrarem patentes em medicamentos e vacinas. 2) A secção 104 e 105 da Lei das Patentes de Israel, acionada pelo Ministro da Saúde a favor do Departamento de Emergência do seu Ministério da Saúde, a 23 de março de 2020, para emitir uma licença compulsória da importação do anti retroviral Kaletra para o tratamento de pacientes covid-19. 3) Os EUA, num contexto em que não era garantido o sucesso de vacinas a que os EUA tivessem acesso de forma fácil, prometeu acionar licenças para obter vacinas de qualquer forma.

Largas dezenas de países, ricos e pobres, quebraram patentes e já dentro do século XXI. Só os EUA, por exemplo, quebraram quatro vezes nos últimos 20 anos, uma delas sobre o Tamiflu durante a gripe das aves. E, em 2017, promulgaram o Defense Production Act, ao abrigo do qual alargaram a autoridade e os poderes do Governo com vista à expansão da capacidade produtiva em recursos considerados fundamentais para a defesa nacional, entre os quais, especificamente, a emissão de licenças compulsórias para a produção de vacinas. E, claro, todos os países pobres que lutaram ao longo de décadas contra o VIH e os preços dos medicamentos praticados pelas farmacêuticas.

A autora argumenta que o problema não está nas patentes, mas no facto de se ter “encomendado poucas doses, tardiamente, e negociado maus contratos”. Mais abaixo, afirma que “não deixa de ser curioso verificar que as vozes contra as patentes não se levantam para questionar a perspetiva ética da contratualização que diversos Estados fizeram das doses de vacinas, nalguns casos muito acima das suas necessidades.” Em que ficamos? Doses a mais ou a menos? Os factos mudam conforme o argumento. Ora, é pura e simplesmente falso que se tenha encomendado poucas doses (UE, 3,5 doses por habitante, EUA, 3,7, Japão, 2,3, Reino Unido, 5,5), encomendadas ainda antes de a produção ter começado. E é falso que as vozes contra as patentes não se tenham levantado contra esse açambarcamento. Fizeram-no, aliás, praticamente sozinhas.

Os compromissos de compra foram uma das várias medidas destinadas a eliminar o risco das farmacêuticas. O açambarcamento dessas doses é um crime contra a humanidade. Mas não se percebe muito bem em que é que o volume total de doses afeta o ritmo de produção. O facto é que esse ritmo está a léguas das necessidades.

Depois de dizer que o problema foi a falta de encomendas, a autora chega à conclusão de que o problema é mesmo a capacidade de produção, mas não se pode produzir mais, porque todas as vacinas assentam em métodos inovadores. Uma parte da justificação é falsa e a outra não é justificação. A vacina Astrazeneca é baseada num vector adenoviral, tecnologia que não é uma novidade absoluta. A tecnologia do RNA modificado, sim, é uma inovação radical, mas baseada em investigação fundamental bastante antiga e mais disseminada do que argumenta a autora. Foi uma empresa portuguesa a produzir os primeiros lotes mRNA para a Moderna, há 5 anos. O secretário de Estado da Internacionalização está, de resto, a procurar incluir o país na cadeia internacional de produção das vacinas. O argumento de que as vacinas precisam de ser conservadas a temperaturas muito baixas é falso para algumas e, para aquelas em que é verdadeiro, é precisamente um argumento a favor da descentralização da produção.

A autora reconhece que essa descentralização é necessária, enunciando dois acordos entre empresas para produzir a vacina. E daí parte para a sua proposta para resolver o problema:

“o foco internacional deve ser em reduzir barreiras contratuais e aduaneiras para que a AstraZeneca, a Moderna e Pfizer/BioNTech possam aumentar as suas parcerias de fabrico – expandindo para onde ainda é possível - e fortalecer as suas cadeias de abastecimento transfronteiriças, produzindo mais doses e fazendo-as chegar a mais pessoas.”

Portanto, depois de um artigo inteiro a dizer que não é possível produzir mais, a autora conclui com uma proposta para se produzir mais: “reduzir barreiras contratuais e aduaneiras”. Uma proposta em piloto automático, cujo único problema é não ter nenhuma relação com o debate atual. Quais são as barreiras contratuais e aduaneiras que estão a impedir as desejadas parcerias? A única barreira contratual são mesmo as patentes detidas pelas empresas farmacêuticas. E nenhuma barreira aduaneira será obviamente imposta a absolutamente nada que tenha a ver com a produção de vacinas. A única barreira real é a barreira política, autoimposta pelos Governos contra o licenciamento público de vacinas que foram desenvolvidas com quantidades industriais de dinheiros públicos.

Curiosamente, a autora quase tropeça na solução real ao tentar ridicularizar a ideia de uma patente pública e aberta:

“Aqui chegados, é fácil compreender que os Estados não têm, eles próprios, capacidade de produção destas vacinas, e que teriam sempre de recorrer às empresas farmacêuticas para o fazer. Portanto, na perspectiva da patente pertencer ao Estado, este teria de a licenciar a empresas para as produzir e comercializar. Ora, se o negócio não for atrativo, não há quem produza.”

Ora, este é o núcleo do argumento a favor de uma patente pública e partilhada. O problema não é haver empresas privadas a produzir a vacina ou a ter lucro com essa atividade. O problema é haver empresas privadas ou públicas às quais não é permitido produzir a vacina, para que algumas possam beneficiar de um monopólio pago com dinheiros públicos. A posição dos liberais é, portanto, triplamente paradoxal: estão a apoiar a proteção de um oligopólio (1), assente em financiamento público (2), que está a atrasar a retoma da normalidade do conjunto da economia (3).

A exceção prevista no Acordo TRIPS e na Declaração de Doha permite precisamente que os Estados emitam licenças compulsórias a todas as empresas que se possam envolver no processo de produção das vacinas (ou em parte dele), esgotando a capacidade produtiva instalada e viabilizando o seu alargamento. A emissão de licenças compulsórias nem sequer é incompatível com o pagamento de uma compensação razoável às empresas detentoras da propriedade industrial, naturalmente deduzida dos abundantes subsídios públicos já transferidos.

A Economia da Inovação há muito tem investigado o papel de regimes bem equilibrados de propriedade industrial e também a complexidade dos sistemas de inovação, nomeadamente o papel do Estado enquanto promotor da ciência fundamental e de muitas das inovações mais radicais.

É por isso que os sistemas de propriedade industrial realmente existentes são muito menos extremistas do que é o discurso dos liberais a este respeito. Quer os sistemas nacionais quer o acordo TRIPS reconhecem e consagram as múltiplas razões e bens jurídicos que podem levar à quebra de patentes, com ou sem compensação. Razões económicas, de concorrência ou de proteção da inovação incremental, entre muitas outras.

Hoje, situamo-nos perante aquela que é a mais evidente de todas. A atribuição a empresas privadas de direitos exclusivos sobre as vacinas, apesar de todo o financiamento e garantias públicas que viabilizaram o seu desenvolvimento, está a atrasar dramaticamente o ritmo de vacinação. Esse atraso custa milhares de vidas todos os dias. Compromete a sua própria eficácia ao dar tempo a que surjam variantes resistentes às vacinas produzidas. E condena grande parte do planeta à tragédia humanitária. António Guterres chamou a este falhanço um ultraje moral. Este falhanço pode ser impedido. Estas vidas valem mais do que uma patente.

Artigo publicado em expresso.pt a 25 de fevereiro de 2021

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