Desde o início da pandemia Covid-19, há quase um ano, ficou claro que nosso mundo enfrentava muito mais do que uma emergência de saúde pública. A maior crise internacional em várias gerações, rapidamente se transformou numa crise económica e social. Um ano depois, outro facto gritante se torna tragicamente evidente: o nosso mundo enfrenta uma pandemia de violações dos direitos humanos.
A Covid-19 aprofundou divisões, vulnerabilidades e desigualdades preexistentes e abriu novas fraturas, incluindo falhas nos direitos humanos. A pandemia revelou a interdependência da nossa família humana - e de todo o espectro dos direitos humanos: civis, culturais, econômicos, políticos e sociais. Quando qualquer um desses direitos está sob ataque, os outros correm perigo.
O vírus prosperou porque a pobreza, a discriminação, a destruição de nosso ambiente natural e outras falhas nos direitos humanos criaram enormes fragilidades nas nossas sociedades. As vidas de centenas de milhões de famílias ficaram viradas do avesso - com empregos perdidos, dívidas esmagadoras e quedas acentuadas nos rendimentos.
Trabalhadores da linha de frente, pessoas com deficiência, idosos, mulheres, meninas e minorias foram especialmente atingidos. Em questão de meses, o progresso na igualdade de género retrocedeu décadas. A maioria dos trabalhadores essenciais da linha de frente são mulheres e, em muitos países, frequentemente de grupos marginalizados racial e etnicamente.
A maior parte do crescimento da carga de cuidados em casa é assumido pelas mulheres. A violência contra mulheres e meninas em todas as suas formas disparou, desde o abuso online até a violência doméstica, tráfico, exploração sexual e casamento infantil.
O vírus prosperou porque a pobreza, a discriminação, a destruição do nosso ambiente natural e outras falhas nos direitos humanos criaram enormes fragilidades nas nossas sociedades. A pobreza extrema vem aumentando pela primeira vez em décadas. Os jovens sofrem dificuldades, muitos fora da escola e com acesso limitado à tecnologia.
O mais recente ultraje moral é o fracasso em garantir equidade nos esforços de vacinação. Apenas 10 países administraram mais de 75% de todas as vacinas Covid-19. Enquanto isso, mais de 130 países não receberam uma única dose.
Se se permitir que o vírus se propague como um incêndio pelo sul global, sofrerá mutações inúmeras vezes. Novas variantes poder-se-ão tornar mais transmissíveis, mais mortais e potencialmente ameaçar a eficácia dos diagnósticos e das vacinas atuais. Isso poderia prolongar a pandemia significativamente, permitindo que o vírus voltasse para assolar o norte global - e atrasar a recuperação económica mundial.
O vírus está também a infetar os direitos civis e políticos e a reduzir cada vez mais a esfera pública. Por vezes, o acesso às informações que salvam vidas da Covid-19 foi ocultado, enquanto a desinformação mortal foi ampliada - mesmo por aqueles que estão no poder.
Extremistas - incluindo supremacistas brancos e neonazistas - exploraram a pandemia para aumentar as suas fileiras por via da polarização social e da manipulação política e cultural.
A pandemia também tornou os esforços de paz mais difíceis, restringindo a capacidade de conduzir negociações, exacerbando as necessidades humanitárias e minando o progresso noutros desafios de direitos humanos relacionados ao conflito.
A Covid-19 reforçou duas verdades fundamentais sobre direitos humanos. Primeiro, as violações dos direitos humanos prejudicam-nos a todos. Em segundo lugar, os direitos humanos são universais e protegem-nos a todos.
Uma resposta eficaz à pandemia deve ser baseada na solidariedade e na cooperação. Abordagens divisionistas, autoritarismo e nacionalismo não fazem sentido contra uma ameaça global. Com a pandemia a expor claramente os direitos humanos, a recuperação oferece-nos uma oportunidade para impulsionar a transformação. Para ser bem sucedida, as nossas abordagens devem ter a lente dos direitos humanos.
Os objetivos do desenvolvimento sustentável - que são sustentados pelos direitos humanos - fornecem a estrutura para economias e sociedades mais inclusivas e sustentáveis, incluindo o imperativo da saúde para toda a gente.
A recuperação também deve respeitar os direitos das gerações futuras, reforçando a ação climática para alcançar a neutralidade de carbono até 2050 e proteger a biodiversidade. O meu Apelo para Ação pelos Direitos Humanos descreve o papel central dos direitos humanos na resposta à crise, na igualdade de gênero, na participação pública, na justiça climática e no desenvolvimento sustentável.
Este não é um momento para negligenciar os direitos humanos; é um momento em que, mais do que nunca, os direitos humanos são necessários para navegar por esta crise de forma a permitir atingir o objetivo de alcançar o desenvolvimento inclusivo e sustentável e uma paz duradoura.
Estamos todos juntos nisto. O vírus ameaça todos. Os direitos humanos erguem-nos a todos. Respeitando os direitos humanos neste tempo de crise, construiremos soluções mais eficazes e equitativas para a emergência de hoje e a recuperação de amanhã.
Estou convencido de que é possível - se formos determinados e trabalharmos juntos.
António Guterres é Secretário-Geral das Nações Unidas. Publicado originalmente no The Guardian, a 22 de Fevereiro de 2021. Tradução esquerda.net