Política polifónica na Kantata do Tecto Incerto

porJorge Costa

Quiseram “responder à desfiguração das nossas cidades - gentrificação, especulação imobiliária, turistificação”. E fazê-lo cantando com quem vive essas políticas, sofrendo-as, denunciando-as. Muitos tendo sonhado respostas à crise da habitação sem nunca terem sonhado cantá-las em palco. Próxima paragem: Grândola, Encontro da Canção de Protesto. Entrevista com Pedro Rodrigues, Ana Gago e Antonio Gori.

06 de setembro 2022 - 16:08
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3 de julho, Largo da Achada, Lisboa. Foto de Jorge Costa.

Alguns dos temas da Kantata do Tecto Incerto podem ser ouvidos ao longo deste texto ou do podcast desta entrevista.

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De onde vem esta ideia? Como é que a Casa da Achada juntou estas pessoas e como iniciaram o debate político e artístico que resultou neste espetáculo?  

Pedro - Esta Kantata do Tecto Incerto partiu de uma série de conversas sobre habitação com pessoas despejadas ou em risco de o serem, pessoas que ocuparam ou iam ocupar casas, pessoas que lutam sobre este assunto ou se preocupam há muito com o direito à habitação, pessoas que travaram lutas (o exemplo mais conhecido é o das mulheres da Rua dos Lagares, algumas das quais participaram na Kantata), pessoas de Lisboa, mas também dos arredores (estas por vezes com dificuldade em manter a sua participação no processo por outras razões que também importa discutir…).

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Houve conversas sobre o que é a casa para ti, o que significa o direito à habitação. E depressa percebemos que este espetáculo havia de cruzar-se com outras questões, como o racismo ou o facto de serem muitas vezes mulheres que se colocam à frente nas lutas, formando algo mais profundo. O texto que a Regina escreveu - um texto dela mas com estas vozes múltiplas - foi o ponto de partida para a criação artística.

O antecedente mais direto foi em 2013, a Kantata de Algibeira, uma criação comunitária, com texto e música, pessoas sem experiência de palco e com vontade de provocar gente importante - já então o teatro São Luiz, onde também agora fizemos esta Kantata do Tecto Incerto. Naquela altura, era sobre dinheiro - um tema também material mas um bocadinho mais abstrato que o da habitação. Foi uma experiência transbordante, também com texto da Regina Guimarães, dirigida pela Margarida Guia e com música do João Paulo Esteves da Silva. Depois dessa experiência, na Casa da Achada já sabíamos que era possível fazer.

Ana - Eu lembro-me de o Pedro ter a ideia desta Kantata porque já estava - ele e outros - envolvido em lutas sobre este tema. Sobre os despejos, o festival HabitAcção… Penso que foi esse envolvimento que deu origem a esta experiência.

 

O que é uma Kantata com K?

Pedro - Uma cantata é uma sequência de textos ditos, cantados, recitados, não encenados, com coros e solos. Adotamos a designação como referência a essa história anterior, a da cantata barroca, mas com K para nos distinguirmos dela. 

Ana - Será que vem do “oKupa”?

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Como trabalharam? Quais foram as diferenças na participação em função da situação social e individual das pessoas?

Pedro - Este espetáculo foi feito com base num crowdfunding lançado ainda antes da pandemia. Tínhamos pedido subsídios aqui, acolá e acolí, não conseguimos nada, avançamos e conseguimos o apoio de 192 pessoas. Foi bonito. As conversas só puderam começar um ano depois do previsto, por causa da pandemia. Em primeiro lugar, foi um trabalho de produção, de resolver necessidades de transporte, alimentação… Depois, a grande maioria das quarenta pessoas que atuaram não tinha qualquer experiência artística anterior. Foi preciso contactar e manter, as pessoas respondiam “ai, eu não sei cantar”. Coube-nos explicar que não se trata disso, que é um coro, são vozes, mas que o importante é a diferença dos timbres e dos percursos de vida e trazê-los para uma criação artística. Sem necessidade de “saber cantar” ou “ser ator”, nada disso. 

 

Como foi o processo de produção do texto?

Pedro - A Regina esteve presente em algumas dessas conversas, noutras foi o Luiz Rosas, um amigo brasileiro que vive em França e que é de uma associação, a Cardan, que trabalha sobre questões de literacia. Defende que aqueles que hoje não participam na Cultura (com maiúscula institucional) devem poder participar numa cultura vista como emancipação, como libertação dos “de baixo”. Ele esteve presente, puxando as palavras destas pessoas, as conversas foram gravadas. A partir desses registos, a Regina pôs-se a escrever, tentando ser justa com essas conversas, mas também, claro, com as reflexões e com a poesia dela. Uns textos são mais diretos, outros menos.

 9 de julho, Teatro São Luiz, Lisboa (foto: Mário Raínha)

 

Como era um ensaio típico da Kantata?

António - As pessoas chegavam e havia sempre um tempo de convívio antes, um cigarro, mas esse espaço era fundamental, muita gente não se conhecia. Depois das comunicações logísticas, de produção, etc, começava-se um aquecimento, um treino de como estar dentro da kantata, não só ao nível da voz, mas também da interpretação corporal. No meu caso, esta foi uma primeira experiência e os exercícios propostos pelo Nicolas Brites ajudaram bastante (não só na kantata: já percebi que consigo utilizá-los noutros contextos). A segunda parte do ensaio, nem era só cantar, era muito ouvir-se, compreender os ensinamentos do Pedro Rodrigues e do João Caldas, começar a ler os textos que iam chegando da Regina e ir criando, descobrindo os textos. Há partes que remetem para um certo imaginário infantil e que poderiam parecer pelo menos estranhas, mas depois cantava-se, fazia-se pausas, olhava-se…

Ana - Eu não percebo nada de música e nunca tinha cantado. Só à segunda insistência do Pedro é que aceitei. Eu estava interessada no assunto, participei nas conversas, mas não queria (e achava que não podia) cantar. Não me apanhas nisso! Depois aceitei ir a um ensaio e percebi que podia aprender a cantar, sim, mas que era sobretudo a criação de uma ferramenta de contacto, de luta, incluindo uma reflexão sobre outras formas de habitar: há canções que são mais lamento, outras que são de luta, de punho erguido, outras que são hipóteses de soluções, outras quase infantis, sobre como os animais vivem (toda a gente adora esta, é muito linda!). Neste espaço, mesmo não dominando eu o vocabulário musical para me expressar precisamente sobre música, sobre algo que eu sinta não estar bem, houve espaço para construirmos algumas partes musicais em conjunto, ouvindo e opinando. Achei isso lindíssimo. 

Antonio - Isso foi dos aspetos mais interessantes para mim, que já participei em muitas lutas, na associação Habita, no coletivo StopDespejos, em muitos momentos políticos. Este foi um dos momentos mais políticos que experimentei. Foi inédito para mim combinar desta forma o individual e o coletivo, ao nível político e emotivo. Isso é sempre procurado quando se faz uma assembleia mas é alcançado de forma única num processo como o da kantata.

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Como acham que funciona este processo em termos da construção de uma consciência política para a ação? O grupo é composto por pessoas muito diferentes, incluindo quem tenha uma vivência direta do seu problema sem nunca o ter estudado e quem, como vocês, tenha uma experiência ativista neste tema. 

Antonio - Pronunciar palavras que não são tuas já é, só por si, uma revolução. Isto molda as consciências. O modo de trabalhar, aprender as técnicas de construção de um espetáculo, isso ensina a ouvir o outro, respeitar o espaço físico, interrogar-se acerca disto. Já é um crescimento político. Fazer política é comunicar e ser presente para o outro. Vi pessoas que não seriam ativistas a cantar reivindicações, homens a interpretar mulheres, tudo isso é um ganho enorme para quem participou. Além disso, é uma maneira de criar comunidade. Algumas pessoas já faziam parte da minha “bolha”, mas muitas outras não e isso ajuda-nos a sair dessa metáfora das bolhas. 

Ana - Eu nunca tinha estado num palco nem visto um público a partir dele e achei que a Kantata deu poesia e filosofia a quem nos viu. Às vezes falta algo a quem anda de punho erguido. Vi pessoas emocionadas, a rir e a chorar, e senti nelas vontade de “juntarem-se à Kantata”. Adorei, nunca tinha sentido isso em manifestações, por exemplo.

 

E a subida ao palco? O Largo da Achada é um espaço público, popular, que talvez seja sentido ao alcance de todos. O Teatro São Luiz não o é. Como foi vivida a ocupação de um palco municipal, de um teatro da Câmara (de cuja política de habitação alguns são vítimas diretas)? 

Ana - Nunca falei sobre isto com o resto da malta.  No São Luiz achei que tinham o dever de nos receber e que devíamos tomar o espaço. Senti uma responsabilidade muito maior no Largo da Achada, estava mais nervosa, estávamos a apresentar uma possível ferramenta - isso foi mais difícil. Depois fizemos uma versão mais pequena, a que chamamos “fatia de Kantata”, na associação Sirigaita, onde foi já quase um workshop, uma ferramenta assumida. Muita gente gostou de ter um cântico original, que não vem dos anos 60 ou 70, para a nossa luta agora.

Pedro - Desde o início que a Regina Guimarães falou de termos um “kit” de possibilidades, algumas sequências permitiam formatos mais pequenos, mais transportáveis para a rua, para a ação (isso também determinou a escolha dos instrumentos empregues). Podemos fazer um espetáculo inteiro, com certas exigências, ou uma “fatia”, que pode ir a uma associação de bairro, ou uma canção que sobrevive e se liga a lutas concretas.

 

Quais os planos? O que gostavam de fazer agora?

Pedro - A Regina Guimarães vive no Porto. Atuar lá vai depender da nossa capacidade de juntar de novo as pessoas ou grande parte delas. No Casal da Boba, na Amadora, fizemos uma das nossas conversas e temos uma relação com a malta de lá, que é um bairro de realojamento de gente que foi tirada de onde estava para uma vida com grandes problemas, também na habitação. Faria sentido irmos lá. 

 

Já depois de gravada esta entrevista, foi anunciada a exposição "Pelo Fio da Kantata", na Casa da Achada, com fotografias, textos e documentos de apoio deste processo, patente até 26 de setembro. Foi também marcada entretanto a próxima apresentação da Kantata do Tecto Incerto: 18 de setembro, às 16 horas, em Grândola, no âmbito do Encontro da Canção de Protesto (entrada gratuita).

 

 

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