Está aqui

Mais habitação ou o Estado refém do mercado?

O conjunto de medidas apresentado pelo Governo é de uma injustiça flagrante, porque continua a tomar as rendas excessivas vigentes como referência, traduzindo-se numa transferência de receitas públicas e de rendimentos do trabalho para os proprietários. Artigo de Ana Cordeiro Santos.
Foto de Paulete Matos.

Ao contrário do que se alega, o que as medidas anunciadas pelo Governo para resolver a crise habitacional revelam é um Estado refém do mercado. Como é sabido, o sistema de provisão habitacional nacional é caracterizado por um parque público diminuto e, portanto, pela circunstância de termos um bem essencial totalmente dependente de um mercado financeirizado e rentista.

Esta situação é resultado de escolhas políticas que sempre privilegiaram, ao longo de décadas, a intervenção através do mercado. Escolhas essas reforçadas, nos últimos anos, com a intervenção da troika e a sua influência austeritária posterior, gerando uma contração do investimento público e promovendo ativamente a especulação imobiliária, em sua substituição.

A venda a fundos abutres de bens imobiliários a preço de saldo, no rescaldo da crise financeira, a liberalização do mercado de arrendamento, que acelerou a cessação dos contratos, e a aposta desproporcionada no turismo contribuíram, no seu conjunto, para a retirada de imóveis do mercado de arrendamento. Esta situação foi ainda potenciada pela promoção de um mercado imobiliário, concorrencial ao setor da habitação, virado para uma procura externa, cujo poder de compra é muito superior ao dos salários desvalorizados de quem trabalha no país. A crise inflacionária foi apenas a gota de água de uma situação que já se sabia, há muito, ser insustentável.

Neste sentido, a parte mais significativa das medidas incide no mercado de arrendamento e visa trazer de volta os alojamentos que irresponsavelmente, por ação e omissão, se permitiu que fossem canalizados para outros usos. Porém, ao invés de atuar sobre as verdadeiras causas do problema, as medidas anunciadas procuram tornar ainda mais atrativo um mercado de arrendamento sobreaquecido, com rendas que a generalidade da população não consegue suportar.

De facto, uma boa parte das medidas que procuram aumentar a oferta de imóveis para arrendamento consiste em incentivos fiscais de eficácia duvidosa e de injustiça social garantida. Entre estes encontra-se a isenção de imposto de mais-valias a quem venda ao Estado qualquer tipo de habitação, estimulando por esta via a venda de quem tenha casas que não pretende usar e a sua colocação em arrendamento acessível. Trata-se, portanto, de uma medida de compra do património extraordinariamente valorizado nos últimos anos, com arrecadação do valor integral da mais-valia por parte dos proprietários.

A isenção do pagamento de IRS dos imóveis em alojamento local que retornem ao mercado de arredamento vai no mesmo sentido, dispensando a tributação dos rendimentos prediais. Aqueles que sejam alocados ao arrendamento acessível beneficiam ainda da isenção de IMI, por três anos, de IMT se adquiridos para reabilitação e ainda uma taxa de IVA reduzida de 6% para as obras de reabilitação. Os demais imóveis arrendados beneficiam de uma redução da taxa de IRS, que varia com a duração dos contratos. Como estas medidas apenas visam estimular a oferta do mercado de arrendamento, não atuando sobre o valor das rendas através da fixação de tetos máximos em zonas de maior pressão, o Estado propõe-se ainda subsidiar as rendas dos agregados familiares de menores rendimentos.

Em suma, as principais medidas anunciadas estão orientadas para estimular o mercado de arrendamento por via do aumento dos rendimentos prediais, esperando que desta forma a oferta aumente e haja uma redução dos valores incomportáveis das rendas.

Por outro lado, o subarrendamento por parte do Estado de casas detidas por privados, como forma de “reforçar a confiança dos senhorios”, também tem o mesmo propósito: garantir rendimentos prediais, substituindo-se ao inquilino no pagamento e ao senhorio na cobrança da dívida. No entanto, importa lembrar que o risco de incumprimento a que os senhorios se sujeitam se deve ao valor excessivo das rendas que eles próprios definiram.

A única medida que procura de algum modo conter o valor das rendas é a que visa regular a sua evolução futura, em que o Estado passa a limitar o crescimento das rendas dos novos contratos, devendo estas “resultar da soma da renda praticada com as atualizações anuais e do valor da subida da inflação fixada pelo Banco Central Europeu”. Contudo, esta medida aplica-se apenas aos contratos que sucedam a outros celebrados nos últimos cinco anos, assumindo mais uma vez como referência a renda vigente. Ou seja, para as casas que só agora cheguem ao mercado de arrendamento não haverá quaisquer limites de renda.

Apesar destes incentivos, a sua eficácia não está garantida. Os onerosos estímulos fiscais à compra de casas por parte de residentes não habituais e à atração dos nómadas digitais continuam a constituir uma alternativa aliciante ao mercado de arrendamento.

O conjunto de medidas é, em suma, de eficácia duvidosa, como o fracasso dos vários programas de rendas acessíveis já demonstrou. E é de uma injustiça flagrante, porque continua a tomar as rendas excessivas vigentes como referência, traduzindo-se numa transferência de receitas públicas e de rendimentos do trabalho para os proprietários.

Por sua vez, as medidas que visam mitigar os efeitos da subida da taxa de juro também não alteram nada de estrutural. Por exemplo, o estímulo à amortização do crédito à habitação (do próprio ou de um descendente), através da isenção do imposto das mais-valias da venda, beneficia quem já se encontra numa situação privilegiada para suportar esse encargo. Por outro lado, o mérito da introdução da taxa fixa no crédito imobiliário dependerá das condições que forem definidas pelos bancos.

Em conclusão, perante uma crise habitacional que resulta de novas formas de procura, nacionais e internacionais, as quais, em muitos casos, encaram a habitação como ativo de investimento financeiro, e de um forte estímulo ao investimento imobiliário que não se destina à satisfação de necessidades habitacionais, o Estado opta por redobrar os estímulos ao mercado de arrendamento, com vista a tornar mais rentável o arrendamento urbano num contexto de subidas históricas dos preços de venda e das rendas.

É certo que o impacto das medidas anunciadas dependerá do seu detalhe, que ainda se desconhece. A violenta reação dos representantes dos proprietários, do setor imobiliário e do turismo a medidas que poderiam ter um maior efeito sobre as causas do problema – como o arrendamento compulsivo de casas devolutas ou a suspensão de novas licenças de alojamento local – é reveladora da dificuldade associada à implementação de algumas medidas, mais orientadas para uma regulação robusta do mercado. Porém, é claro que a resolução do problema da habitação dependerá do papel que estas medidas venham a ter no reforço do parque público e do papel de setores, como o cooperativo, que melhor cumprem a função social da habitação que a Lei de Bases consagrou.

Ana Cordeiro Santos é economista e Investigadora do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra. Artigo publiado a 20 de fevereiro de 2023 no jornal Público.

política: 
Habitação
(...)

Neste dossier:

Mobilização pelo direito à habitação

O salário de quem trabalha já não chega para garantir um teto. Perante a falta de medidas concretas do Governo para reverter este cenário, estão marcadas manifestações para o dia 1 de abril em Lisboa, Porto e Coimbra. Dossier organizado por Luís Branco.

Casa para Viver: Coimbra junta-se à mobilização para 1 de abril

Além de Lisboa e Porto, Coimbra também vai sair à rua no dia 1 de abril pelo direito à habitação e contra a especulação nos preços das casas e arrendamentos. Movimento Vida Justa também apela à participação nos protestos.

Governo quer facilitar despejos por falta de pagamento

Entre as medidas propostas no pacote atualmente em discussão pública, está a que permite iniciar o despejo sem que o inquilino tenha sido notificado pelo senhorio da cessação do contrato.

Contribuintes pagaram a conta da perda de moradores do centro de Lisboa

Investigadores das Universidades de Lisboa, Leeds e Barcelona analisaram o processo de turistificação da capital na última década. Em particular o papel do Estado, que permitiu aos promotores privados arrecadarem os lucros da reabilitação urbana paga com dinheiros públicos.

Despejos voltam a aumentar, movimentos preparam resposta nas ruas

O número de despejos em 2022 voltou a atingir os níveis pré-pandemia, com Lisboa a ultrapassá-los. Manifestações "Casa para Viver" saem à rua no dia 1 de abril.

Habitação: Governo dá borlas fiscais à especulação dos fundos imobiliários

Fundos imobiliários e empresas sediadas em offshores que adquiriram imóveis durante a crise e viram o seu preço disparar também ficam isentas de mais-valias caso os vendam ao Estado ou autarquias.

Habitação: novo pacote, novo falhanço

António Costa quebrou todas as suas promessas para a habitação e volta agora a desdobrar-se em anúncios, tentando travar o protesto. Mesmo que seja aplicado, este pacote mantém o negócio fabuloso e a catástrofe social. Mais devagar mas sempre pior, a crise continua. Por Vasco Barata.

Apelo à ação da Coligação de Ação Europeia pelo direito à habitação e à cidade

De 25 de março a 2 de abril de 2023, saímos à rua por toda a Europa pelo direito à habitação, pelo direito à cidade e para denunciar o custo de vida exorbitante e sufocante.

Helsínquia: rendas controladas e iniciativa pública fazem a diferença

Helsínquia já passou por graves crises de habitação. Mas hoje em dia quase um quinto das habitações pertence ao município, que as disponibiliza em regime de arrendamento de longa duração com o objetivo de assegurar a o direito à habitação e a diversidade social no seu território.

Mais habitação ou o Estado refém do mercado?

O conjunto de medidas apresentado pelo Governo é de uma injustiça flagrante, porque continua a tomar as rendas excessivas vigentes como referência, traduzindo-se numa transferência de receitas públicas e de rendimentos do trabalho para os proprietários. Artigo de Ana Cordeiro Santos.

Ana Drago: como resolver a crise da habitação?

Neste episódio do podcast Contra Regra, Catarina Martins convida a antiga deputada bloquista Ana Drago para uma conversa sobre respostas à crise na habitação.

Habitação a custos controlados: o bom exemplo de Viena

O modelo implementado pela social-democracia há cem anos foi prosseguido nas últimas décadas. Ao contrário de outras cidades europeias, em vez de se desfazer do seu património habitacional, a autarquia aumenta-o todos os anos. Essa foi a forma de manter as rendas a preços que as pessoas podem pagar.

Amesterdão quer mais casas com limite ao preço máximo das rendas

No documento estratégico para responder à crise da habitação, a cidade de Amesterdão quer alargar a regulação do  arrendamento para agregados com rendimentos médios e combater as casas devolutas e o alojamento local.

Jornadas parlamentares do Bloco encerram com propostas para responder à crise da habitação

Garantir habitação a custos controlados no momento do loteamento, exigir pelo menos 25% de habitação acessível na nova construção e criar um mecanismo de controlo do preço das rendas são as três propostas que o Bloco põe à discussão pública e pretende levar em abril ao debate parlamentar.

Devemos proibir a venda de casas a não residentes?

O nosso país tornou-se um inferno para quem procura casa para viver e é hoje um paraíso para fundos imobiliários, vistos gold, nómadas digitais e residentes não habituais, com regimes de desigualdade e de privilégio de consequências desastrosas.

Controlo de rendas: o que se passa na Europa?

Para fazer face à especulação no mercado de arrendamento, os mecanismos de controlo de rendas são uma realidade em 13 dos 27 países da União Europeia.

Comunidades religiosas nas periferias propõem Carta da Habitação

O documento subscrito pela Comissão Justiça, Paz e Ecologia da CIRP, a Pastoral dos Ciganos e a Obra Católica Portuguesa de Migrações dirige-se a autarcas e à sociedade em geral para dar uma resposta à "realidade desconcertante dos bairros e comunidades" mais vulneráveis.

Política polifónica na Kantata do Tecto Incerto

Quiseram “responder à desfiguração das nossas cidades - gentrificação, especulação imobiliária, turistificação”. E fazê-lo cantando com quem vive essas políticas, sofrendo-as, denunciando-as. Muitos tendo sonhado respostas à crise da habitação sem nunca terem sonhado cantá-las em palco. Próxima paragem: Grândola, Encontro da Canção de Protesto. Entrevista com Pedro Rodrigues, Ana Gago e Antonio Gori.

Bruxelas. Foto do BRAL.

“Mais habitação não vai fazer baixar os preços”

A partir do caso de Bruxelas, o professor de Geografia Social e Económica Manuel Aalbers explica o que se passa com a financeirização do mercado da habitação e defende a necessidade de uma intervenção governamental mais forte a favor da habitação a preços acessíveis.