Apoiado num acordo fechado com patrões e UGT na véspera da apresentação do Orçamento do Estado, o Governo prepara-se para consagrar o corte de rendimentos de quem vive do seu salário e da sua pensão em 2023. Isto acontece depois de este ano os funcionários públicos já terem perdido um mês de salário devido à inflação que o mesmo Governo garantia no início do ano ser apenas "transitória" e que entretanto disparou para os 9,3% em setembro. O efeito da subida dos juros nas prestações do crédito à habitação já assusta muitas famílias em Portugal, mas o Governo decidiu não incluir nenhuma medida de apoio na proposta inicial do Orçamento, acenando apenas com a redução da taxa de retenção na fonte do IRS, que não representa um apoio real, e prometendo medidas para as próximas semanas. O impacto orçamental das medidas anti-inflação apresentadas pelo Governo em setembro representam apenas 0,9% em 2023, cinco vezes menos do que este ano.
Quanto aos reformados, a apresentação do Orçamento veio desmascarar a tentativa do Governo de manipular a opinião pública, quando agitou o fantasma da insustentabilidade do sistema da Segurança Social caso aumentasse as pensões em linha com a inflação, como a lei determina. Afinal, não só a almofada das pensões não se esgotaria daqui a poucos anos com esse aumento, como estaria até mais cheia em 2060 do que se encontra agora. Mas a maioria absoluta está determinada em cortar as pensões futuras, limitando os aumentos em 2023 e calculando os seguintes tendo esse corte como ponto de partida.
Quem tem razões para sorrir com este Orçamento são os patrões, que veem os seus benefícios alargados e o surgimento de novas borlas fiscais. Além de verem majorados os incentivos fiscais caso cumpram os aumentos salariais inscritos no acordo de rendimentos, também ganham nos impostos com os novos incentivos à capitalização de empresas por parte dos seus sócios. E a dedução dos prejuízos no IRC passa a ter um prazo ilimitado, depois de em 2015 o Bloco ter imposto no acordo com PS a redução para cinco anos. O próprio Governo não consegue calcular o custo deste apoio fiscal para os contribuintes e Fernando Medina veio admitir que esta borla fiscal aos patrões só é possível por ter alcançado maioria absoluta nas eleições.
Outro motivo de alegria para as empresas que procuram formas de não pagar IRC é a manutenção de um incentivo fiscal que tem estado sob suspeita de fraude. O SIFIDE, que supostamente serviria para apoiar empresas que apostam na inovação tecnológica, permitindo a dedução à coleta do IRC de até 82,5% não apenas da despesa em I&D, mas da participação em fundos de capital de risco criados de propósito para este fim. Apesar de entre 2006 e 2019 este benefício ter custado cerca de 2.800 mihões de euros aos cofres públicos, quase não há escrutínio sobre o impacto real. O que se conhece são manobras contabilísticas em que as empresas investem nos fundos para obter o benefício fiscal e recuperam o dinheiro investido na forma de empréstimos sem juros ou injeções de capitais por parte desses fundos - ou outros geridos pela mesma entidade - em subsidiárias suas. Também os especuladores com criptomoedas acabam por ter razões para sorrir, ao verem que o Governo não seguiu a proposta da Autoridade Tributária e irá taxar apenas os lucros obtidos com criptoativos detidos por menos de um ano, isentando os restantes.
Para combater o aumento do preço da energia, o Governo apresentou o que disse ser a "maior intervenção de sempre" com a injeção de "3.000 milhões de euros adicionais" para reduzir a fatura energética, em particular das empresas com consumo elevado. Mas a realidade é que metade desse valor corresponde não a uma opção do Governo mas ao decurso das regras que já vigoram. Do Orçamento sairão apenas mil milhões pra reduzir o custo das empresas com gás natural e os outros 500 miçhões para a redução tarifária na eletricidade corresponde ao aumento da parte das receitas do mercado de carbono aplicadas no sistema elétrico para este fim.
Na Saúde, o debate orçamental surge numa altura em que seis maternidades estão em risco de encerramento, congelado pelo ministro até ao final do ano. Como explica Moisés Ferreira, além do que pode vir a ser o maior encerramento de serviços do SNS desde os tempos da troika, não há reforço dos cuidados de saúde primários e a generalização do médico de família paree ser um objetivo abandonado por este Orçamento. Quanto ao investimento, boa parte da verba inscrita no Orçamento e anunciada como um aumento de 140%, refere-se aos mesmos projetos que constavam no Orçamento para 2022, em que mais de metade da verba orçamentada não foi executada. Mas a falta de execução do investimento público não é um exclusivo da Saúde. No total, o Governo calcula agora que a verba para investimento público executada em 2022 fique pelo menos mil milhões de euros abaixo do orçamentado.
Na Cultura, o Governo anuncia o maior Orçamento de sempre, mas um olhar para o que tem sido a execução orçamental dos últimos anos é suficiente para desconfiar do anúncio, como escrevem Amarílis Felizes e Tiago Ivo Cruz.. Este ano, dos 620 milhões previstos só se vão gastar 480. E nos últimos cinco anos, todos os aumentos orçamentais anunciados ficaram por cumprir, muito graças às cativações que fazem depender da assinatura do ministro das Finanças uma parte das despesas de cada Ministério.