Wagnerização: como Putin degradou o Estado russo

16 de julho 2023 - 22:10

Das corporações de Estado, feitas para escapar ao controlo público e à disciplina do mercado, às empresas militares privadas, como a Wagner, o regime russo criou toda uma zona de cinzenta que depende do relacionamento pessoal com Putin. Por Ilya Matveev.

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Trabalhadoras removem os logotipos da Wagner da sede da empresa após o motim. Foto de ANATOLY MALTSEV/EPA/Lusa.
Trabalhadoras removem os logotipos da Wagner da sede da empresa após o motim. Foto de ANATOLY MALTSEV/EPA/Lusa.

Fundada em 2014 como uma empresa militar privada de propriedade do empresário russo e confidente de Putin Yevgeny Prigozhin, o Grupo Wagner atuou pela primeira vez a ação no Donbas, onde ajudou as forças separatistas contra o exército ucraniano. Posteriormente, foi mobilizado para a Síria, a Líbia e vários outros países africanos, oferecendo geralmente à Rússia uma negação plausível para as suas intervenções e a flexibilidade militar que o Exército não poderia fornecer.

O seu pico de fama, contudo, ocorreu após a invasão da Ucrânia pela Rússia de 2022. Tendo crescido desde então graças a generosos pacotes de recrutamento (oficialmente avaliados em 850 mil milhões de rublos ou 10 mil milhões de dólares, embora seja pouco claro por que período) e promessas de liberdade para presos russos que adiram, foi apontada como uma das unidades de combate mais eficazes do lado russo, graças, em grande medida, ao facto de os seus comandantes não se importarem com as baixas.

Mais recentemente, Prigozhin e o seu império mediático tinham vindo a criticar a condução da guerra a partir de um ponto de vista de direita e entraram num conflito crescente com a liderança do exército russo, que culminou em 24 de junho de 2023 na “Marcha sobre Moscovo” da Wagner, ou o golpe Prigozhin”.

As tropas da Wagner chegaram a 200 km a sul de Moscovo, antes de Prigozhin cancelar o seu golpe, deixando a maioria dos observadores a esforçar-se por explicar os acontecimentos desse dia. O LeftEast tem o prazer de apresentar a análise político-económica de Ilya Matveev sobre o fenómeno Wagner, publicada originalmente em russo na plataforma Важные истории.


No seu artigo “A Rússia na viragem do milénio”, publicado em dezembro de 1999, Vladimir Putin escreveu: “A Rússia precisa de um poder estatal forte e deve tê-lo”. Ele argumentava que o gosudarstvennichestvo (estatismo) é orgânico na história e sociedade russas e que a restauração do Estado era a sua principal tarefa. Desde então, o “poder estatal forte”, ou a “verticalidade do poder”, têm-se tornado uma das ideologias mais duradouras do governo de Putin, e o termo gosudarsvtennik (estatista) tornou-se uma palavra de ordem através dda qual a elite do Kremlin reconhece os seus.

É assim ainda mais estranho que, no 23º ano da governação de Putin, o papel fundamental na guerra desencadeada por ele tenha sido interpretado por uma empresa militar privada, com os seus números a atingir entre 40 a 50 mil pessoas – quase um terço de toda a força que invadiu a Ucrânia em 24 de fevereiro de 2022. Além disso, no final, o PMC Wagner Group tentou um golpe de Estado; um grande centro regional foi capturado pelas tropas rebeldes; colunas armadas marcharam para Moscovo; vários helicópteros e um avião do Ministério da Defesa foram abatidos; pelo menos 13 pessoas morreram. O monopólio da violência, através do qual o Estado tem sido definido desde o tempo do sociólogo alemão Max Weber, foi visivelmente desafiado, e a notória “verticalidade do poder” acabou por se revelar tão frágil quanto uma chávena de porcelana. Desta vez, a chávena não quebrou mas ficou cheia de rachas – a imagem de Yevgeny Prigozhin repreendendo o vice-ministro da Defesa Yevkurov e o avanço sem obstáculos das colunas através das regiões russas quase até à própria Moscovo, deixou uma impressão nas elites russas; foram tiradas conclusões. A fragilidade do poder é uma profecia auto-realizável.

No seu discurso de emergência de 24 de junho, que durou apenas cinco minutos, Putin conseguiu trazer outra lição histórica, como ele geralmente tem tido tendência a fazer nos últimos anos. Desta vez, foi sobre a revolução de 1917. Fica-se com a impressão de que, para Putin, os problemas periódicos são uma característica da história da Rússia, são inevitáveis, como a mudança das estações, e a função do Estado russo e do seu líder está em eterna oposição a estes. Na realidade, a questão é mesmo sobre a história – mas apenas a história dos últimos 23 anos. A fragilidade do Estado russo revelada por Prigozhin é o resultado das próprias ações de Putin – foi ele quem criou este mesmo Estado.

As empresas militares privadas (PMC) como forma de governar o país

Em 2008, o sociólogo político russo Vadim Volkov publicou um artigo intitulado “Corporações de Estado: outra experiência institucional”. O seu raciocínio era o seguinte: em meados dos anos 2000, o aumento dos preços da energia tinha permitido que o Estado russo acumulasse reservas significativas e a questão era como gastá-las. Putin estava ciente da tarefa de modernizar a economia russa mas ele não confiava nos negócios privados ou, principalmente, no próprio Estado para realizar essa tarefa. Como resultado, nasceram as corporações de Estado. Essencialmente, são os veículos para gastar dinheiro público, protegidos tanto da concorrência do mercado quanto das inspeções e do controlo do governo. As corporações de Estado têm ficado numa zona cinzenta, o que levou os especialistas e até os membros do governo a debater: como, afinal, caracterizar a consolidação de ativos na sua estrutura – como uma nacionalização rasteira ou como uma privatização oculta? O próprio Volkov propôs o termo “propriedade de Estado personificada”: “Esta propriedade permanece propriedade do “Estado na medida em que é controlado pelo chefe de Estado”.

Nesta zona cinzenta, protegidas da disciplina do mercado e do controlo formal do Estado, o principal instrumento de governança é o relacionamento pessoal de Putin com os chefes das corporações estatais e das grandes empresas públicas que neste sentido não diferem das corporações de Estado. O Estado de Putin é um coletivo de “estadistas”, selado pela confiança pessoal de Putin, e não por relações legais formais. Consequentemente, o “estatismo” na versão de Putin não é um compromisso com o ideal de Weber de um corpo racional e meritocrático de burocratas mas uma ideologia de “interesses nacionais” alcançados por quaisquer meios necessários, sem preocupações com as formalidades. E como o “interesse nacional” é um conceito extremamente vago, não é de surpreender que “estadistas” o substituam com sucesso na prática da governança quotidiana pelo seu próprio interesse privado, envolvendo-se em ganhos pessoais nos seus cargos.

Ocasionalmente, o ceticismo de Putin sobre as instituições estatais formais (apesar do seu compromisso declarado com o “estatismo”) irrompe publicamente. A história da empresa Rosneftegaz, que recebe dividendos de Rosneft e em parte da Gazprom, é bastante característica a esse respeito. Esta empresa misteriosa não apenas acumula quantias enormes de dinheiro, mas também investe em projetos em todo o país; quem estava por trás da escolha dos alvos de investimento não foi explicado à população durante muito tempo. Finalmente, Putin respondeu a uma pergunta direta da jornalista do Vedomosti, Margarita Papchenkova, durante a sua conferência de imprensa em 2016: “Sim, existe uma reserva como o dinheiro da Rosneftegaz. (…) E financiamos algumas coisas a partir de lá quando o governo se esquece que há prioridades que precisam de receber atenção.” Isto equivalia a admitir que o “estadista” Putin simplesmente não acreditava no seu próprio Estado, preferindo, no cenário de um déficit orçamental induzido pela crise, ter um segundo orçamento paralelo, que está na zona cinzenta das suas relações pessoais com Igor Sechin e, possivelmente, outros atores (Putin não especificou quem era o “nós”). O grupo Wagner encaixa-se bem neste modelo de gestão. Se há um orçamento paralelo, por que não criar um exército paralelo?

Os habitantes desta zona cinzenta já tinham participado de motins – embora não armados – contra o poder executivo oficial, o governo da Federação Russa. Por exemplo, os chefes das empresas estatais (Caminhos de Ferro Russos, Rosneft, Gazprom) recusaram-se a publicar os seus salários, apesar do pedido de Dmitry Medvedev, então primeiro-ministro. Como resultado, em 2015, o governo teve de rever a sua própria decisão, inscrevendo de facto na lei a sua impotência face aos poderosos amigos de Putin. As empresas estatais também são conhecidas pelas suas constantes disputas com o Ministério das Finanças sobre a parte dos seus rendimentos que será transferida para o orçamento.

Um confronto com atores da zona cinzenta pode acabar mal para o governo. Assim, uma tentativa de impedir a Rosneft de adquirir os ativos de outra empresa petrolífera, a Bashneft, custou a liberdade ao ministro do Desenvolvimento Económico, Alexei Ulyukaev, apesar da sua posição ser totalmente coerente com a anterior diretiva de Putin no sentido de impedir um maior crescimento da propriedade estatal. A detenção de Ulyukaev, efetuada por Sechin com a ajuda de oficiais da FSB destacados para a Rosneft, indicou a privatização de elementos do aparelho de poder por um ator político que utilizou este recurso para atacar o ministro federal (ou seja, o próprio Estado) para os seus próprios fins e interesses pessoais. Não houve confrontos violentos nessa altura – afinal, Ulyukaev era o ministro do Desenvolvimento Económico e não da Defesa - mas, tipologicamente, esta situação é semelhante ao motim de Prigozhin.

A “verticalidade do poder” contra o Estado

Porque é que Putin criou esta zona cinzenta e permitiu as suas práticas, como a privatização dos lucros e a socialização dos prejuízos, e que envolvem todo o aparelho do Estado? Uma resposta é que tal sistema é funcional. O cientista político Vladimir Gelman indica que a corrupção é uma das maneiras de resolver o problema de agência (em termos gerais, o problema de garantir que os subordinados sigam as ordens dos superiores). A possibilidade de ganho pessoal cria um incentivo para agir no interesse do diretor (chefe). Assim, no geral, o “sistema russo”, como o falecido Gleb Pavlovsky o denominou, é governável. Permite que Putin atinja os seus objetivos – mas apenas dentro de certos limites. Os custos podem ser medidos em dinheiro (saqueados e perdidos para o Estado); na qualidade dos gestores públicos (extremamente baixa devido ao domínio do princípio “interessa quem tu conheces, não o que sabes”); na incapacidade de seguir um rumo político consistente (que é inevitavelmente diluído sob a influência de vários interesses privados aos quais o próprio Putin deu livre rédea); e que, finalmente, abre rachas no próprio fundamento do sistema do Estado (que foram reveladas pelo motim do ator da zona cinzenta Yevgeny Prigozhin).

Putin criou este tipo de Estado porque a sua principal tarefa é manter o regime de poder pessoal. Afinal, o problema da agência pode ser resolvido a um custo muito menor, com a ajuda da responsabilidade democrática, o que garante o controle da população sobre representantes do Estado em todos os níveis. Sob os termos de um autoritarismo, esse mecanismo é, por definição, inacessível, o que significa que permanecem apenas duas outras opções: a monitorização vertical através de indicadores formais (que, como o próprio Putin reconhece, são cumpridos apenas no papel) e a corrupção, que serve como lubrificante para a enferrujada máquina do Estado. Além disso, as tentativas de uma “restauração da ordem” vigorosa dentro do âmbito de uma ditadura são perigosas, pois minam as próprias fundações do poder pessoal de Putin, já que se baseia na lealdade dos seus associados de alto escalão. Essa lealdade não é de forma alguma incondicional e as tentativas para substituir amigos corruptos por gestores competentes poderiam levar à situação em que os amigos de Putin substituiriam o próprio Putin. Daí o famoso credo de Putin da “estabilidade do pessoal” e a sua falta de vontade de alterar o naipe das pessoas influentes.

Paradoxalmente, o fortalecimento do regime político (isto é, o regime de poder pessoal de Putin) leva ao enfraquecimento do Estado e as medidas para fortalecer o Estado podem levar ao enfraquecimento e até ao colapso do regime político. Esta dinâmica foi bem captada pelo investigador Neil Robinson, que distingue entre construção do estado e construção de regime. Até certo ponto, o ditador está interessado em fortalecer o Estado: por exemplo, restaurar a funcionalidade das polícias permite que ele lide com mais eficácia com opositores políticos. Além disso, um Estado capaz aumenta a legitimidade de um regime aos olhos da população – nenhuma ditadura pode confiar apenas nas baionetas. No entanto, ao fortalecer o Estado, o ditador atinge rapidamente o teto – uma campanha massiva contra a corrupção e purgas de pessoal sem democratização levam a uma diminuição na governabilidade e a uma erosão da base política da ditadura. Assim, a formação de um regime de poder pessoal, que pode coincidir inicialmente com um aumento na capacidade do Estado, começa muito rapidamente a interferir nessa capacidade: a preservação da ditadura degrada as instituições estatais. É por isso que exemplos de ditaduras de sucesso são muito raros. O economista Dani Rodrik observou: “Para qualquer país autoritário que conseguiu crescer rapidamente, há vários que se afundaram. Para qualquer presidente Lee Kuan Yew, de Singapura, existem muitos como o presidente Mobutu Sese Seko, do Zaire (agora chamado de República Democrática do Congo).”

Esta lógica também é totalmente aplicável à Rússia. No início dos anos 2000, Putin alcançou o fortalecimento do Estado: as receitas dos impostos aumentaram, o financiamento dos órgãos estatais foi restaurado e foi estabelecido um espaço legal único para todo o país. Porém, o progresso parou rapidamente, dando lugar a raros sucessos locais em contraste com o pano de fundo da estagnação geral e, em alguns lado, até a regressão. O objetivo da construção de regime ganhou precedência sobre o objetivo da construção do Estado. Foi assim que surgiu a zona cinzenta de organizações nem bem públicas nem bem privadas. Até recentemente, Yevgeny Prigozhin era um dos seus habitantes.

Putin cercado de Prigozhins

No caso do Grupo Wagner, as características do “sistema russo” sobrepunham-se às características típicas das empresas militares privadas. As PMC, empresas militares privadas, no seu conjunto, gravitam à volta da zona cinzenta dos contratos públicos corruptos, das redes dos velhos amigos, do aventureirismo internacional e das operações secretas sob a capa da negação plausível. Este tipo de zona cinzenta também existe nas democracias, embora a sua importância seja muito menor do que na Rússia.

Assim, as atividades subversivas do Grupo Wagner em África não são muito diferentes das apostas imprudentes da PMC britânica Sandline e dos seus fundadores Tim Spicer e Simon Mann. Com o início da invasão da Ucrânia, o grupo Wagner começou a desempenhar outra função, mais caraterística das PMC americanas: recrutar soldados para as grandes guerras imperialistas sem efetuar uma mobilização geral. A Rússia tinha falta de soldados na Ucrânia da mesma forma que os EUA tinham falta de soldados no Iraque e no Afeganistão; em ambos os casos, as PMC tornaram-se a solução para a questão do pessoal.

O próprio modelo das PMC (que é contrário à caraterística fundamental dos Estados modernos – a centralização e monopolização da violência) é orgânico ao estilo de governação de Putin. Não é surpreendente que tenha sido a PMC a desempenhar um papel crucial na guerra russo-ucraniana. É claro que o Grupo Wagner tem características únicas: em nenhum outro país, as PMC cobrem todos os ramos das forças armadas, incluindo a aviação – nem recrutam prisioneiros com a promessa de perdão após o termo do contrato; nenhuma outra PMC é financiada por contratos estatais corruptos, em resultado dos quais são entregues pequenos-almoços podres nas escolas e nos quartéis dos soldados; nenhum outro proprietário de PMC se envolve em tantos tipos de provocações ao mesmo tempo – gere uma fábrica de trolls, gere uma rede de meios de comunicação tablóides utilizados para ataques políticos, etc. Neste sentido, Prigozhin e o Wagner são produtos do Putinismo, e não apenas das tendências internacionais para a expansão do papel das PMC.

Mas, mais importante, o próprio ambiente político em que Prigozhin atuava também foi criado por Putin. O motim da Wagner expôs a fraqueza do Estado russo. Por detrás da fachada monolítica do putinismo, há clãs, redes e corporações que perseguem os seus próprios objetivos. São perfeitamente capazes de levar o país ao colapso e à guerra civil. Até as forças de segurança estão separadas não só por linhas corporativas, mas também por linhas de clã-patrocínio. Basta dizer que o motim de Wagner era suposto ser reprimido… pelo batalhão “Akhmat” de Ramzan Kadyrov. Podemos facilmente imaginar uma situação em que as próprias tropas de Kadyrov organizam um motim e o exército regular é enviado para o reprimir. Subitamente, seria revelado que o próprio exército regular é constituído por formações regionais de voluntários, unidades de outras PMC que o Ministério da Defesa controlou, etc.

Uma transição democrática na Rússia, que não seja acompanhada por uma desorganização do Estado semelhante à dos anos 90, será um verdadeiro milagre. E, no entanto, só uma transição democrática pode, em última análise, conduzir à emergência de um Estado forte e capaz na Rússia. O modelo de Putin de construção de um Estado autoritário mostrou os seus resultados ao fim de 23 anos: o bombardeamento da autoestrada perto de Voronezh, os pilotos mortos, o vice-ministro da Defesa a ser repreendido por um antigo criminoso que agora lidera um exército de criminosos. “A Rússia precisa de um poder estatal forte e deve tê-lo.”


Ilya Matveev é um investigador e docente em São Petersburgo, na Rússia. É editor fundador do Openleft.ru e membro do grupo de investigação Laboratório Público de Sociologia. Artigo publicado no LeftEast. Traduzido por Carlos Carujo para o Esquerda.net.