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A Venezuela e a guerra pelo “excremento do diabo”

“As guerras são travadas por poços de petróleo e estações de carvão. Pelo controlo dos Dardanelos ou do Canal do Suez; por colheitas coloniais que se possam comprar barato e mercados conquistados aos quais se possa vender caro. A guerra é o capitalismo, mas sem luvas”. Tom Stoppard.
No final do século XIX, as exigências dos credores internacionais cercaram a Venezuela. As grandes potências da época: Grã-Bretanha e Alemanha, em novembro de 1902, enviaram um ultimato para satisfazer as suas exigências. O governo de Caracas, ao não conseguir mais recursos – mesmo impondo novos impostos e entregando os seus rendimentos aduaneiros – propôs negociações em separado aos credores.
Os credores ignoraram a resposta venezuelana e em princípios de dezembro enviaram as suas frotas. O país foi bloqueado pela frota anglo-germano-italiana até fevereiro de 1903. Resultado: os poucos barcos venezuelanos, destruídos; e Puerto Cabello, La Guaira e Maracaibo, bombardeados. As tropas estrangeiras desembarcaram para proteger os seus cidadãos e os seus interesses da “tirania estrangeira”, como diria – para justificar a ação imperial – o chanceler imperial alemão, o príncipe Bernhard Heinrich Karl Martin von Bülow (tudo isto no contexto do governo do presidente-nacionalista Cipriano Castro, oposto a várias empresas estrangeiras que financiaram uma guerra civil para defenestrá-lo entre 1901-1903; até ser derrubado pelo que foi o ditador que iria inaugurar a Venezuela petrolífera: o “benemérito” Juan Vicente Gómez).
Mais de um século depois, voltam à Venezuela as sombras de uma possível invasão imperial; agressão que, como em outros cantos do mundo, procura se justificar sob o lema de “trazer liberdade e democracia”. O assunto parece local. E é, porque a questão sobre qual é o presidente legítimo de Venezuela diz respeito aos venezuelanos e a ninguém mais. “Uma análise da situação da Venezuela para além dos lugares comuns", como propõe Decio Machado, permite afirmar que internamente, o conflito
“Já há tempos que deixou de ser uma questão de ideologia ou de classe. A Venezuela converteu-se num Estado mafioso no qual a cúpula dirigente se confronta com uma oposição que também responde a interesses claramente espúrios, apoiada por potências que continuam com uma linha de ingerência e reproduzem uma história de séculos de dependência.”
Sobre a Venezuela chocam-se cada vez com mais força “os sabres” e “os livros de cheques” das grandes potências do momento (EUA, China, Rússia e até a União Europeia).
De facto, sobre o país das Caraíbas chocam-se cada vez com mais força “os sabres” e “os livros de cheques” das grandes potências do momento (EUA, China, Rússia e até a União Europeia). Essa ingerência das potências estrangeiras – tanto na oposição quanto no governo – faz com que a explosiva situação interna perca tenebrosamente o seu caráter local.
Sem detalhar o conflito atual e recusando qualquer ingerência imperial – venha de onde vier – cabe o pedido de uma explicação profunda da situação. Nesse longo espaço de tempo desde o bombardeio europeu, e em especial no final da Primeira Guerra Mundial, a Venezuela consolidou-se como periferia petrolífera estratégica (sobretudo para os Estados Unidos). Pior ainda, se tomarmos os dados de Carlos Mendoza Pottellá, atualmente o povo venezuelano carrega sobre os seus ombros a “maldição” de no seu país se encontrarem as maiores reservas de petróleo do mundo. “Maldição” que outros cantos do mundo tristemente sofreram derramando sangue inocente.
A estas alturas, já ninguém dúvida que a tragédia venezuelana encontra muitas explicações nesta dependência do “excremento do Diabo”, como definiu o petróleo o venezuelano Juan Pablo Pérez Alfonzo (1903-1979), um dos criadores da OPEP (Organização de Países Exportadores de Petróleo) e que marcou uma época na gestão petrolífera do seu país. Desde o controlo dos asfaltos, há cem anos, pela “New York & Bermúdez Company”, subsidiária da General Asphalt, com sede em Filadélfia, a voracidade pelos hidrocarbonetos venezuelanos nunca deixou de crescer. E nos últimos tempos surgiu um redobrado apetite tanto multinacional como de máfias locais pelos seus recursos minerais, como acontece de forma terrível na bacia do Orinoco.
A par do desespero por aceder a esses recursos – ou, melhor dito, pela mão dessas apetências –, os governos venezuelanos retiraram alguma parcela para o país. No entanto, obtendo ou não uma maior participação na renda petrolífera, esses governos em vários momentos (ou quase sempre), consciente ou inconscientemente, agiram de acordo às exigências de alguma facção do poder económico internacional. O governo de Hugo Chávez, que há vinte anos despertou alguma esperança de mudança dessa realidade, ao menos no discurso, também caiu na armadilha da “maldição da abundância” e da satisfação dos interesses de grandes capitais multinacionais (entre russos, chineses e outros, e até norte-americanos).
A gestão política inicial do governo de Chávez, junto com os enormes recursos obtidos com as exportações petrolíferas, que pouco depois aumentaram a par do crescente preço do crude, permitiram-lhe afastar e evitar a permanência de grupos e frações do poder que tradicionalmente tinham lucrado com a riqueza petrolífera e que controlavam mesmo a gestão desta atividade até à Grande Greve Petrolífera de 2003. Foram destinados volumosos recursos para a ampliação da cobertura social – a partir de uma lógica compensadora e clientelar – em vários âmbitos, tendo em vista setores tradicionalmente excluídos. De passagem, justificavam-se com estes investimentos sociais as “vantagens indiscutíveis” dos extrativismos, que se aceleraram ao mesmo tempo que foi adiada a superação do – já de si limitadíssimo – desenvolvimento industrial e mesmo agrícola do país.
Esta disputa voraz por aproveitar o rendimento da Natureza e sustentar o poder obrigou o governo a atribuir volumosas somas de dinheiro para reforçar os seus controlos internos.
Esta disputa voraz por aproveitar o rendimento da Natureza e sustentar o poder obrigou o governo a atribuir volumosas somas de dinheiro para reforçar os seus controlos internos, incluindo a repressão aos opositores, travando e enfraquecendo as iniciativas comunitárias dos primeiros anos. Dentro dessa jogada, grupos das Forças Armadas do país beneficiaram-se dos rendimentos petrolíferos em troca de manter o seu apoio ao regime. Em especial com Maduro no poder, depois da morte de Chávez, a repressão adquiriu um cariz brutal que, junto com a queda dos rendimentos petrolíferos, transformou o “clientelismo” político num grosseiro uso da força e da chantagem. Assim, ao afogar a participação cidadã, o madurismo, sobretudo, acabou por esvaziar a democracia, tendência irreversível por mais que ele repetisse as consultas ao povo nas urnas.
Em semelhante cenário, em vez de gerar alternativas autenticamente democráticas, as oposições, na sua maioria obtusas e entreguistas, aprofundaram o clima de violência política existente. De facto, tanto governo como oposição não hesitaram, em seu momento, de utilizar o próprio povo como carne para canhão no meio de disputas políticas violentas que cada vez se aproximam mais de um confronto civil.
Com isto chegamos a uma explicação profunda: na periferia capitalista, o hiperextrativismo – e a consequente ausência de transformação estrutural – caminha de mãos dadas com o hiperpresidencialismo, que cobiça e alimenta o autoritarismo e a corrupção. Ou em palavras de Eduardo Gudynas, “as diferentes associações entre extrativismos e corrupção articulam-se entre si, derivando em situações que enfraquecem a qualidade da democracia”,1 aprofundando a violência consubstancial aos extrativismos (situação vista também noutros países extrativistas, com governos conservadores ou progressistas, como é o caso do Equador e as suas patologias da abundância).
Para além de uma ou outra ação e discursos soberanistas, definitivamente, a dependência do petróleo e dos minerais na periferia capitalista costuma engendrar governos caudilhistas. Isto enfraquece as instituições do Estado encarregadas de fazer respeitar as normas e fiscalizar o governo; arruína as regras e a transparência, incentivando a arbitrariedade na gestão dos recursos públicos e dos bens comuns; exacerba os conflitos distributivos pelos rendimentos entre grupos de poder, consolidando a longo prazo o rentismo – e patrimonialismo –, subordinando clientelarmente ainda mais os setores populares excluídos e sem poder de negociação às rendas extrativas; incentiva as políticas de curto prazo e pouco planificadas dos governos, diminuindo o investimento e o crescimento económico; e até distorce a estrutura produtiva interna, com patologias económicas como a "doença holandesa"2 ou outras.
E são estes governos hiperpresidencialistas que atendem de maneira paternalista e clientelar às exigências sociais, obtendo recursos da ampliação dos extrativismos, configurando o caldo de cultura para novas conflitualidades sociopolíticas e ecológicas. Como se constata com o fim do recente ciclo de governos progressistas, não foram estruturalmente enfrentadas as causas da pobreza e da marginalidade, menos ainda a matriz produtiva primária exportadora e dependente (mais ainda quando se leva em conta que muitos sectores burgueses que se ligam ao projeto clientelar lucram de facto da dependência e do status quo). Da mesma forma, os significativos impactes ambientais e sociais, próprios destas atividades extrativistas de grande escala, aumentam a ingovernabilidade, o que por sua vez exige novas respostas repressivas...
O atual conflito venezuelano emerge neste contexto. As pressões e interesses do imperialismo Ocidental chocam-se com os do imperialismo do Oriente, como a Rússia e sobretudo a China. Como afirma Emiliano Terán Mantovani, “a China é também responsável pela crise venezuelana atual”; a Rússia também não fica atrás, com os multimilionários empréstimos concedidos (e inclusive com as importantes vendas de armamento ao país das Caraíbas). Nas palavras de Emiliano, a longa trajetória de reformas legais, normativas, políticas e medidas económicas na Venezuela ampliou as fronteiras da extração petrolífera e mineira (sobretudo para benefício dos capitais chineses), dando cada vez mais espaço a formas de acumulação neoliberal, que ele chama de Longa Viragem.
Dito isto, é evidente que a crise de Venezuela serve às potências dos múltiplos imperialismos que hoje disputam o mundo (no que poderia ser uma “nova guerra fria”). Assim, por trás dos discursos pela “democracia”, a “liberdade e o "bem-estar" do povo venezuelano estão os velhos e porcos interesses imperiais, favorecidos – ainda que não de maneira expressa – por governos extrativistas. Até se poderia pensar que a ação dos governos “progressistas” acabou por se tornar parte de todo um processo de entreguismo ao imperialismo de Oriente, tal como fizeram em seu momento os governos neoliberais em benefício do imperialismo de Ocidente.
Semelhantes caminhos fazem-nos regressar ao ponto de partida. Enfrentamos um assunto glocal: tanto local como global. A resposta local requer a livre determinação do povo venezuelano – como defende, no meio de uma situação cada vez mais conflitiva e polarizada, entre outros agrupamentos, a Plataforma Cidadã em Defesa da Constituição. Ação local que precisa combinar-se com uma ação global de solidariedade internacional que facilite esse processo interno, afastando as tenazes imperialistas em marcha – como pede um forte e destacado grupo de intelectuais e organizações sociais de diversas partes do planeta. Definitivamente, precisamos de uma ação glocal que permita reconstruir, por dentro, sem ingerências imperiais, bem como sem governos fantoches ou usurpadores – a democracia, a esperança e a paz na Venezuela.
12 de fevereiro de 2019
Alberto Acosta é um economista equatoriano e professor universitário. Ministro de Energia e Minas entre janeiro e junho de 2007. Presidente da Assembleia Constituinte em 2007, foi candidato à Presidência do Equador nas eleições de 2013 pela Unidade Plurinacional das Esquerdas, uma coligação de partidos políticos e organizações sociais.
Publicado em Aporrea.
Tradução de Luis Leiria para o esquerda.net
1Ver Extractivismos y corrupción en América del Sur: http://ambiental.net/wp-content/uploads/2017/11/GudynasExtractivismosCorrupcionReviise2017.pdf
2Em economia, conhece-se como síndrome holandesa, também chamada de mal holandês ou doença holandesa, os efeitos perniciosos provocadas por um aumento significativo nos rendimentos em divisas de um país.
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