Uma Aventura das Caldas

16 de março 2014 - 2:39

porMário Tomé

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Capa do "Diário de Notícias" do dia seguinte ao golpe das Caldas - Imagem recolhida no blogue abril-de-novo.blogspot.pt

Sobre a “intentona das Caldas”, que marcou o dia 16 de Março de 1974, ainda pesam algumas dúvidas, reticências e cautelas interpretativas. Por Mário Tomé para esquerda.net

 

O facto de 40 dias depois se ter desencadeado o golpe militar vitorioso do 25 de Abril que abriu as portas ao império da desobediência e ao movimento popular revolucionário , não é de todo estranho àquela acção militar desencadeada à revelia da Comissão Coordenadora do Movimento e que poderia ter tido consequências funestas para o Movimento dos Capitães (MOCAP), depois Movimento dos Oficiais das Forças Armadas (MOFA) e, finalmente, Movimento das Forças Armadas (MFA).

E isto porque a orientação maioritária saída das sucessivas reuniões que foram encorpando a decisão de derrubar o regime fascista de Marcelo Caetano tinha, como ponto fulcral, a criação das condições para a digna transmissão de poderes da potência colonial para os movimentos de libertação no reconhecimento da sua vitória militar e política sobre o exército colonial.

A 22 de fevereiro de 1974 sai o famoso livro do General António de Spínola, “Portugal e o Futuro” que, erradamente,houve quem considerasse o factor fundamental para o desencadeamento do 25 de Abril.

De facto o livro teve três consequências principais: a primeira separar águas nas próprias Forças Armadas colocando Marcello Caetano, pressionado por Américo Tomaz, na necessidade de convocar os comandos militares para lhe prestarem vassalagem, o que aconteceu como seria de esperar com a ausência ostensiva de Costa Gomes, Chefe do Estado Maior General das FA’s e de Spínola, Vice-Chefe e ainda do Almirante Bagulho.

Primou também pela ausência o general Kaulza de Arriaga mas por razões opostas: conforme tinha sido denunciado por Carlos Fabião dois meses antes, na Escola de Altos Estudos Militares,em Pedrouços, Kaulza preparava um golpe ultra-fascista que ficou no ovo, mas à espera de oportunidade que nunca chegou.

A segunda, óbvia, a de consolidar as suspeitas de Marcello de que as acções reivindicativas dos capitães estavam a gerar capacidade política interventiva o que, na situação de descalabro que já dificilmente se podia fingir ignorar, tinha todas as condições para se transformar em acção de força - militar, pois claro.

A terceira, permitir que muitos capitães, pouco confiantes nas suas próprias capacidades e na força imparável do movimento, aderissem com mais ou menos entusiasmo a uma solução violenta contra o regime, certos de contarem com um comandante, como estavam habituados.

Com “Portugal e o Futuro” Spínola aparecia objectivamente como o possível congregador de uma eventual acção contra o regime

Perante o livro do mais prestigiado general operacional que advogava uma solução política e não militar em contradição com a política oficial do regime, Marcello terá proposto a Spínola e Costa Gomes que assumissem o governo, o que ambos recusaram, e apresentou a sua demissão que não foi aceite pelo PR, Américo Tomaz.

A atribuição aos dois generais dos mais altos cargos nas FA’s tinha sido a forma de tentar mantê-los com rédea curta e comprometidos organicamente com o regime afastando-os do movimento sedicioso que pressentia, impotente.

Agora mais impotente ainda perante um livro que confrontava a sua política, escrito pelo vice-chefe de Estado Maior General e cuja publicação fora autorizada pelo Chefe do Estado Maior General das Forças Armadas. Isto num país em guerra era o sinal do fim do tempo.

Spínola pela sua personalidade, pelo facto de ser um comandante operacional reconhecido e pela forma como comandava, mantendo a disciplina através do exemplo nas situações mais difíceis e concitando fidelidades incondicionais que sabia gerir como poucos, suscitou as esperanças de sectores do Movimento hesitantes ou mesmo contrários à fractura irremediável do Portugal imperial.

Os “centuriões” transformaram-se em “pretorianos” usando a terminologia de Jean Lartégui nos romances em que cantava os derrotados páras e legionários, heróicos e torcionários, do império perdido da França colonial. Os homens que formaram a equipa sólida e irredutível de Spínola, desde o seu comando de batalhão em Angola até ao comando-chefe e governo da Guiné, integravam o Movimento na perspectiva política defendida em “Portugal e o Futuro” e, portanto, de assegurarem que Spínola seria o chefe supremo acompanhado pela sua equipa de fiéis incondicionais, transferindo a mística militarista da guerra colonial para o futuro “governo da nação” democrática integrando a grande comunidade indissolúvel dos povos autodeterminados, já que não tinham conseguido submetê-los na guerra.

O golpe das Caldas de 16 de Março de 1974, uma verdadeira e irresponsável aventura em termos militares, saldou-se por um falhanço monumental.

No entanto é necessário enquadrá-lo para determinar quais as condições que levaram 200 militares do Regimento de Infantaria 5 a marchar sobre Lisboa.

A demissão de Costa Gomes e Spínola no dia seguinte à sua não comparência em 14 de Março ao beija-mão da Brigada do Reumático (todos os generais das FA’s coloniais) exigido por Marcello Caetano, provocou uma forte comoção nos membros do Movimento que decidiram, primeiro concentrarem-se no Terreiro do Paço fardados e ostentando as condecorações, por alvitre de Spínola; depois, desistindo dessa manifestação, apresentarem-se formalmente perante os comandantes das respectivas unidades fazendo saber a sua discordância e revolta face à demissão dos seus cargos de chefia suprema das FA’s dos seus dois mais prestigiados generais.

Entretanto, depois do plenário do Movimento a 5 de Março, num atelier em Cascais, cujas salas foram pequenas para acolher as duas centenas de participantes, estavam criadas as condições para um grande salto em frente: nessa reunião foi aprovada a matriz permanente da organização e contactos dos vários núcleos do movimento de Norte a Sul do país, e o manifesto nuclear de todo o processo de aí em diante,”O Movimento, as Forças Armadas e a Nação” que seria a base do programa do Movimento a ser assinado por todos aqueles que se queriam comprometer até às últimas consequências. E foram muitos.

Durante esse plenário decisivo, depois de muita discussão e confrontação, ficou clara a orientação para se ir até à liquidação do regime fascista e a total confiança na Comissão Coordenadora para decidir e dirigir os passos seguintes. Aí também ficou decidido preparar a resolução do problema que estivera na base dos primeiros actos do movimento, o diferendo “corporativo” entre oficiais do Quadro Permanente e Quadro Especial de Oficiais (os oriundos de milicianos) a que simpaticamente se designava por “espúrios”.

A dinâmica política limpava o horizonte e, a partir daí, só se pensava no derrube do regime para pôr fim à guerra colonial.

Nessa mesma reunião, intervenções de “pretorianos” de Spínola avançaram, definitivas, que já havia chefes, Spínola e Costa Gomes e que Spínola já se havia definido fazendo depender a sua disponibilidade da resolução do problema dos “espúrios”.

O Manifesto foi assinado por 111 dos cerca de 200 iniciais, sendo que na altura alguns já tinham recolhido a penates. Mas, a partir daí, Marcello estava condenado e a grande contradição persistente seria entre os que achavam, embora assinando o Manifesto, que o verdadeiro programa que interessava estava em ”Portugal e o Futuro” de Spínola, ou seja entre conseguir mudar o regime (ou derrubá-lo se necessário…) para alcançar uma “solução política para o Ultramar” que conferisse a Portugal um papel aglutinador e director; e a grande maioria que se revia no programa apontado pelo Manifesto: derrubar o regime para reconhecer o direito à independência das colónias ganho pela luta armada conduzida durante 13 nos pelos movimentos de libertação.

É, em minha opinião, esta a grande questão que prevalece no MFA depois do 25 de Abril até ao 28 de Setembro de 1974. E é esta a grande questão que suscita as intervenções dos “pretorianos” na reunião de Cascais e a precipitação do movimento das Caldas. O principal defensor da chefia do movimento por Spínola, em Cascais, é exactamente quem desencadeou a saída isolada e aventureira da coluna militar do RI5 das Caldas da Rainha.

Mas para se chegar aí houve factores de peso condicionantes da liberdade de acção até aí mantida pelo Movimento.

Em 5 de Março Caetano faz um duro discurso em que coloca Spínola e as suas teses sob fogo cerrado. Spínola é, em substância, encostado ao Movimento.

Em 8 de Março quatro capitães, entre os quais Vasco Lourenço são informados da sua transferência compulsiva, dois para os Açores e os outros para a Madeira e Bragança. Esse facto provoca uma reunião urgente da Comissão Coordenadora do Movimento.

Nessa reunião é constituída uma comissão política, que integra o Coronel Vasco Gonçalves, que foi encarregada da elaboração do que viria a ser o Programa do MFA. A Comissão Coordenadora decidiu ainda que os transferidos não iriam sê-lo e, para tal, decidiu-se “raptá-los” e ainda fazer uma demonstração de força que teria a forma de uma concentração maciça no terreiro do Paço.

Mas as autoridades militares antecipando-se decidem decretar o estado de prevenção rigorosa o que veio dificultar os movimentos dos capitães. A concentração não se realizou e a Comissão Coordenadora foi obrigada a resolver de outra forma a situação dos dois capitães com ordem de transferência para os Açores e que tinham sido interceptados antes do “rapto” pelos camaradas. Foram então entregues no Quartel da Região Militar de Lisboa, tendo sido presos os raptados e o encarregado de os “devolver”.

A situação suscitou grande indignação no Movimento e impeliu os capitães a preparar, a partir de 12 de Março, uma acção de força para dia 14 com o objectivo de libertar os camaradas presos e de impor condições tais que só poderiam ser satisfeitas com o derrube do Governo. Como é evidente tal acção decidida precipitadamente e portanto mal preparada e coordenada, corria todos os riscos de ser um falhanço colossal com consequências gravíssimas para o futuro imediato do Movimento. Por isso foi decidido adiar qualquer acção de força.

Além disso, havia a exigência de algumas unidades afectas ao Movimento de definir com clareza qual o general que comandaria o golpe contra o regime e um expressivo sector, a que não era estranha a movimentação dos”pretorianos”, a colocar o nome de Spínola como o preferido.

Este facto pesou seriamente na decisão da Coordenadora de adiar qualquer acção pois não era aceitável fazer depender o Movimento de um chefe e ainda mais limitado às posições expressas em “Portugal e o Futuro”.

Neste interim, deu-se no entanto um passo em frente: a Marinha que se tinha mantido como mera observadora nas reuniões e tomadas de decisão, tomou uma posição de solidariedade explícita com os camaradas presos. De notar que a posição de “observador” da Marinha decorria do facto de, nesse ramo das FA’s, haver já desde há muito um núcleo estruturado politicamente, de acordo aliás com a sua tradição histórica, de resistência ao Governo. Por isso as cautelas no empenhamento num movimento de que ainda não conheciam os verdadeiros contornos e objectivos.

O Governo decide atacar em todas as frentes e provoca a situação já descrita de colocar Costa Gomes e Spínola perante o dilema de integrarem a brigada do reumático e desqualificarem-se face ao Movimento, ou demarcarem-se do beija-mão e o Movimento perder o apoio com que poderia contar dos dois mais altos cargos das Forças Armadas. Foi esta última a opção dos generais.

A demissão que se seguiu veio reforçar a revolta geral que grassava entre os integrantes do Movimento e radicalizar posições nomeadamente quanto à necessidade de acção.

O sector spinolista em aliança com os “espúrios” era o mais impetuoso, na perspectiva de, tomando a iniciativa da acção, condicionar todo o movimento e ter o papel decisivo, apoiado no Chefe, na torção do programa do MFA quanto à posição sobre a independência das colónias.

A situação evolui rapidamente e cria-se um ambiente quase caótico quanto às intenções de várias unidades – Lamego, Viseu – que se declaram prontas para sair e que depois, quando o RI5 se organiza para avançar para Lisboa dizem que não avançam. Por outro lado as Escolas Práticas de Infantaria, Cavalaria e Artilharia avisam que não têm condições materiais para alinhar, assim como os paraquedistas de Tancos. Pelo contrário são colocadas pela Chefia do Exército na situação de intervirem contra quem saísse.

Naturalmente que, quer a Escola de Cavalaria com Salgueiro Maia à cabeça, quer os paraquedistas mobilizados para enfrentar os revoltosos das Caldas estão na intenção declarada aos seus comandados de, se forem mandados sair, não intervirem contra os camaradas mas, pelo contrário, pelo menos quanto aos páras se colocarem do lado do “inimigo”.

Otelo, por seu lado, é pressionado por “pretorianos” de alto coturno, acabados de chegar da Guiné “com o fogo no rabo”, para elaborar rapidamente um plano de operações o que ele faz em cima do joelho na véspera do 16 de Março.

Quando Otelo sai de madrugada para ir ao encontro da “coluna do Norte” – Viseu, Lamego, Caldas… - como ele esperava, depara-se com o dispositivo da GNR e DGS (PIDE) montado pelo Governo para travar a coluna que vinha sobre Lisboa.

Como é óbvio, Otelo assobiou para o lado e aproveitou para observar o dispositivo táctico tomando nota para o ter em consideração para quando, tinha a certeza, o Movimento avançasse devidamente organizado e preparado num muito próximo “dia inicial”, o 25 de Abril.

A coluna das Caldas retrocedeu, regressou ao quartel que foi cercado e os participantes na aventura presos. Os dois “pretorianos”, que haviam pressionado a acção aproveitando o estado de tensão e revolta que caracterizava os militares do RI5, reforçado pelos outros spinolistas de facto ou de jure que pertenciam ao regimento, recusaram escapulir-se como lhes foi proposto, dado serem exteriores ao regimento, assumindo corajosa e dignamente a sua responsabilidade e sendo também feitos prisioneiros. O que, diga-se friamente, não deviam ter feito pois faziam mais falta na rua do que na prisão da Trafaria, donde seriam todos libertados aos primeiros alvores do 25 de Abril, ainda a tempo de, no posto de comando da Pontinha, terem tentado colocar Spínola como chefe incontestado do movimento, o que só aconteceu porque Costa Gomes declinou, só ele sabe porquê, a indigitação maioritária do Movimento.

E lá tivemos que apanhar com Spínola o tão celebrado general que no seu currículo só somava derrotas: a derrota geral das forças coloniais, a derrota do movimento das Caldas e as derrotas em todas as aventuras que inspirou ou patrocinou, desde o 7 de setembro de 1974 em Moçambique, o 28 de setembro de 1974, o 11 de março de 1975 e o grupo bombista do MDLP. Pessoalmente, foi premiado com o bastão de Marechal.

O 16 de Março não teve qualquer influência na disposição do Movimento para derrubar o fascismo e acabar com a guerra colonial, objectivo supremo. Pelo contrário,mostrou a fraqueza total das forças do regime que apenas conseguiu mobilizar as forças repressivas, GNR, PSP, DGS e Legião, enquanto as forças militares não comprometidas no golpe e potencialmente repressoras, mostraram que Marcello não podia contar com elas.

A Comissão Coordenadora fez sair um comunicado denunciando a repressão sobre camaradas do Movimento mas deixando claro que o melhor estava para vir. Nele se referia sarcasticamente à utilização da GNR, DGS e Legião: “será porventura ocasião de esperar que o governo e os chefes militares tenham finalmente encontrado na Legião Portuguesa, na DGS e na GNR os valorosos combatentes de que carecem para prosseguir em África a sua política ultramarina?!”

E terminava com a orientação para a acção: “Apelamos finalmente para que se mantenham firmes em relação aos já anunciados ojectivos do Movimento. É necessário mantermos a coesão e reforçarmos as nossas estruturas, conscientes de que, se soubermos ser coerentes e lúcidos, em breve alcançaremos o que nos propusemos.”

A aventura irresponsável do 16 de Março só não foi desastrosa porque o regime estava falido política e militarmente e porque a maioria “coerente e lúcida” lá estava para resolver.

E resolveu, com o 25 de Abril.

NOTA: esta abordagem de factos históricos e irrefutáveis é marcada por um pendor interpretativo que considero, pessoalmente, ajustado. Por isso apenas refiro nomes incontornáveis. A bibliografia indicada abaixo permitirá um quase exaustivo conhecimento dos factos, muito especialmente o livro de Dinis de Almeida “Origem e Evolução do Movimento dos Capitães”

Artigo de Mário Tomé para esquerda.net


Bibliografia:

Dinis de Almeida, “Origem e Evolução do Movimento dos Capitães”, Edições Sociais

Vasco Lourenço entrevistado por Manuela Cruzeiro, “do Interior da Revolução”, Centro de Documentação 25 de Abril da Universidade de Coimbra/Âncora Editora

Otelo Saraiva de Carvalho, “O Dia Inicial” com prefácio de Eduardo Lourenço, Objectiva

Mário Tomé
Sobre o/a autor(a)

Mário Tomé

Coronel na reforma. Militar de Abril. Escreve com a grafia anterior ao acordo ortográfico de 1990