EUA

Trump, um golpe de baixa intensidade

20 de novembro 2024 - 21:48

Os indivíduos nomeados por Trump para posições-chave na administração dos EUA revelam uma realidade ainda mais assustadora do que poderíamos temer.

por

Daniel Tanuro

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Donald Trump
Donald Trump. Foto de Allison Robbert/EPA/Lusa.

Um governo de iluminados fanáticos

Robert Kennedy Jr., confirmado como Secretário da Saúde, é um notório ativista anti-vacinas e anti-ciência, e um opositor declarado do direito ao aborto (mesmo em casos de incesto ou violação).

Ninguém esperava a nomeação de Tulsi Gabbard, desertora do Partido Democrata e amiga fiel de Vladimir Putin e de Bashar Al Assad. Ativista anti-Woke, Gabbard transmitiu as piores mentiras de Putin (incluindo os “30 laboratórios secretos de armas químico-bacteriológicas dos EUA na Ucrânia”) e fez uma visita amigável a Al Assad (depois de este ter usado armas químicas contra o seu próprio povo). O facto de ela ser a responsável pelos serviços secretos dos EUA (CIA, FBI, NSA) é verdadeiramente alucinante.

Também ninguém estava à espera que Trump escolhesse o apresentador da Fox News Pete Hegseth para Secretário da Defesa. O tipo pode ter servido no exército (ao contrário de Trump, que conseguiu evitar o Vietname!), mas estava nas fileiras intermédias e não tem qualquer conhecimento de questões geo-estratégicas. Anti-“wokista” virulento, Hegseth tornou-se recentemente famoso ao declarar que era necessário despedir pessoal no Estado-Maior (visando particularmente os negros e as mulheres). Tem apelado repetidamente para que o exército seja encarregado da deportação em massa de migrantes prometida por Trump. Um incompetente e ignorante à frente do exército mais poderoso do mundo: é a isto que o imperialismo americano chegou!

Esta deportação e a gestão das fronteiras foram confiadas a Tom Homan. O seu plano está pronto: Homan é um dos autores do capítulo sobre o assunto no “Projeto 2025” da Heritage Foundation. Recentemente, perguntaram-lhe como evitar tragédias humanas na deportação de “ilegais” que têm filhos nos EUA (tendo estes, portanto, o direito de residir no país). Resposta: “É simples, deportamos toda a família”… É a isto que este quase-fascista chama uma “solução humana”.

Outra enorme e escandalosa surpresa (a mais escandalosa, talvez?) é a nomeação de Matt Gaetz para Procurador-Geral (uma espécie de ministro da Justiça). O tipo, um misógino declarado e canalha (“só as mulheres feias” lutam pelo aborto), consumidor de drogas, é conhecido por agressões sexistas e por comprar serviços sexuais a raparigas menores (escapou por pouco à condenação depois de uma testemunha não se ter apresentado, mas está agora a ser investigado pela Comissão de Ética do Senado dos EUA). Gaetz trabalhou como advogado apenas durante alguns meses. Numa entrevista, chamou “baratas” aos funcionários do Departamento de Justiça.

Marco Rubio, o futuro Secretário de Estado (uma espécie de ministro dos Negócios Estrangeiros), parece quase “normal” no meio deste bando de iluminados fanáticos. Mas, também aqui, as coisas são claras: Rubio, tal como o novo embaixador dos Estados Unidos em Israel, nunca menciona a Cisjordânia: para ele, é a Judeia e a Samaria… Para estes sacanas, a Palestina não existe, assim como os palestinianos. Mas não se enganem: são tão violentamente anti-semitas como pró-sionistas (as suas histórias conspiratórias sobre o papel de Soros são disso testemunho).

Enquanto se esperam que um negacionista do clima seja nomeado para a política energética (porque não a lunática da Marjorie Taylor Green?!), a cereja no topo do bolo é, obviamente, a nomeação de Vivek Ramaswamy e Elon Musk como responsáveis pela simplificação da governação. Os dois capitalistas ultra-libertários pretendem desregulamentar à vontade e cortar, ou mesmo abolir, departamentos governamentais que são uma dor de cabeça para os patrões (nomeadamente a Agência de Proteção Ambiental, EPA). E aproveitarem-se disso no processo! Musk investiu mais de 100 milhões de dólares no trumpismo e espera um “retorno do investimento”.

O sintoma da decomposição da classe dominante

Este é o bando de canalhas gananciosos e fanáticos que afirmam estar a combater o “declínio” para “tornar a América grande de novo”. Na realidade, este cesto de caranguejos (prontos a devorarem-se uns aos outros à menor oportunidade) ilustra antes o incrível “declínio” niilista de uma classe dominante tão intoxicada pela sua própria ideologia fantasmagórica e voraz que já nem sequer parece capaz de “dominar” inteligentemente o mundo, a sociedade ou os seus próprios instintos mais vis.

Normalmente, todas estas nomeações teriam de passar pelo Senado, mas Trump está a invocar uma secção da Constituição que permite passar por cima dela (se o Senado ceder) por um período renovável de um ano, em nome da urgência. Vários líderes republicanos apressaram-se a aceitar servilmente este procedimento. Veremos… De qualquer modo, convém lembrar que o Supremo Tribunal ofereceu a Trump imunidade para os atos cometidos no exercício das suas funções.

Este “governo” de comparsas e velhacos (na verdade, uma cleptocracia oligárquica), está unido em torno da lealdade ao líder golpista e às suas mentiras, com um “modo de pensar” reacionário e alguns objetivos bastante claros: usar a justiça para se branquear, branquear os seus amigos e vingar-se dos seus adversários; apoiar o bandido Netanyahu sem a menor limitação, incluindo planos para a anexação pura e simples de Gaza e da Cisjordânia; fazer um negócio com o seu outro amigo Putin à custa do povo ucraniano e dos seus direitos democráticos; atacar brutalmente os sindicatos, os direitos das mulheres, os direitos LGBTQ e o movimento ambientalista; criar uma manobra de diversão, louvando as tendências reacionárias e organizar rusgas contra os migrantes, que são acusados de todos os males. Mas estes são objetivos essencialmente parcelares, não definem uma estratégia a longo prazo para o imperialismo americano.

Será preciso acompanhar atentamente a reação da classe dominante e do seu aparelho de Estado. Aproveitando a crise do sistema bipartidário, Trump apropriou-se do partido republicano para o transformar num instrumento nacional-populista-autoritário, com ligações à extrema-direita (vários autênticos fascistas na sua equipa, como S. Miller). Com base no seu triunfo eleitoral, tenta agora uma espécie de “golpe de baixa intensidade”. E fá-lo com o apoio militante de um sector muito ativo da burguesia (Musk, Koch e as outras cinco grandes fortunas que financiaram o Projeto 2025…). O grande capital acolhe evidentemente de forma favorável muitos dos seus projetos (redução dos impostos, desregulamentação…), mas muitos sectores parecem ter reservas, pelo menos em relação a certos aspetos. O lado cleptocrático do trumpismo (1) inspira desconfiança – Trump é uma mistura de Al Capone e Barry Goldwater no poder. Acima de tudo, a poderosa casta militar está certamente inquieta. Por razões geo-estratégicas óbvias, mas também porque o aventureirismo trumpista está a pôr em causa o consenso sobre o seu papel como braço armado imperialista supostamente não envolvido na política (o “Grande Mudo”).

As tarefas da esquerda

Entretanto, este é um momento muito grave. Provavelmente não estaríamos onde estamos hoje se os poderosos movimentos sociais (feministas, anti-racistas, ambientais, sindicais) que se levantaram contra Trump durante o seu primeiro mandato tivessem sido estruturados e coordenados de forma a poderem resistir a longo prazo. Em vez disso, a maioria deles optou pela oposição democrata no parlamento e depois pelo apoio à administração Biden. Isto foi um erro. É hoje claro que não há outro caminho senão retomar o caminho das lutas, da democracia dentro das lutas e da sua convergência. Nos Estados Unidos e deste lado do Atlântico!


Publicado originalmente pela Gauche Anticapitaliste.