Gaza

Trump quer limpeza étnica e ocupação dos EUA em Gaza, Governo não comenta

05 de fevereiro 2025 - 13:12

Chovem críticas por todo o mundo às declarações de Trump. Albanese, relatora da ONU, diz que o plano é “ilegal, imoral e completamente irresponsável”. O governo português diz que não comenta a “política interna” dos EUA. Marisa Matias afirma que “o silêncio é uma forma cobarde de cumplicidade”.

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Netanyahu e Trump na Casa Branca.
Netanyahu e Trump na Casa Branca. Foto Shawn Thew/EPA

Em conferência de imprensa esta terça-feira, ao lado do primeiro-ministro israelita Benjamin Netanyahu, o presidente norte-americano voltou a considerar a Faixa de Gaza como “um autêntico local de demolição”, a favorecer o “realojamento permanente” do povo palestiniano. A novidade é que agora diz pretender dominar Gaza diretamente, garantindo que “os Estados Unidos vão assumir o controlo da Faixa de Gaza e vão fazer um bom trabalho com ela”.

Acrescentou ainda que “seremos os proprietários de Gaza e os responsáveis pelo desmantelamento de todas as bombas perigosas não detonadas e outras armas existentes no local, pelo nivelamento do terreno e pela eliminação dos edifícios destruídos.”

Na sua habitual linguagem exacerbada e fora da realidade, considerou que assim se irá desenvolver Gaza e se “criarão milhares e milhares de postos de trabalho”, que a anexação “será motivo de orgulho para todo o Médio Oriente” e que “toda a gente com quem falei adora a ideia de os Estados Unidos possuírem aquele pedaço de terra”.

Já tinha anteriormente gabado a localização junto ao mar do território, agora acrescentou querer aí construir uma “Riviera do Médio Oriente” e não deixou de demonstrar as razões do seu interesse: “isto pode ser algo que será tão valioso”.

À ideia de “limpeza” do território destruído pelos ataques sionistas com o apoio norte-americano junta-se a de uma limpeza étnica claramente enunciada, reiterando que a população palestiniana “só quer voltar para Gaza porque não tem alternativa” e que “se conseguíssemos encontrar o terreno certo, ou vários terrenos, e construir lugares agradáveis para eles, acho que seria muito melhor do que voltar para Gaza.”

A seu lado estava Netanyahu, que preferiria que o papel de ocupante fosse assumido por Israel e se limitou a dizer que Trump era “o maior amigo que Israel já tinha tido na Casa Branca”, que “valia a pena prestar atenção a isto” por ser “algo que poderia mudar a história” e que Trump estava a “pensar fora da caixa com ideias frescas”.

A direita sionista mais extrema ainda do que ele, que se posicionou contra o cessar-fogo colocando em causa a continuidade do seu executivo, parece ser unânime na desistência de Israel controlar por si a Faixa de Gaza. Bezalel Smotrich, o ministro das Finanças que tinha ameaçado sair do executivo caso o exército sionista não continuasse a sua guerra genocida em Gaza, veio agradecer no X a Donald Trump. O seu ex-colega de governo, Itamar Ben Gvir, que tinha a pasta da Segurança Nacional e que saiu precisamente por essa razão fez o mesmo, escrevendo naquela rede social: “Donald, isto parece o início de uma bonita amizade”. Mais a sério, declarou que a nova posição dos EUA confirma que “a única solução para Gaza é encorajar a migração dos seus habitantes”.

Do mesmo lado da barricada, o líder do partido ultra-ortodxo Shas, o rabi Rabbi Aryeh Deri, disse que Trump é um “mensageiro de Deus em apoio ao povo de Israel”.

Supostamente mais moderado, um dos principais opositores de Netanyahu, o ex-primeiro ministro Benny Gantz, também louva o projeto trumpista como “criativo, original” e com “pensamentos interessantes que devem ser analisados em paralelo com o atingir dos objetivos da guerra”.

Palestinianos opõem-se aos planos “absurdos” e “capazes de incendiar a região”

Do lado palestiniano, a rejeição é obviamente consensual. O Hamas condena a ideia de “expulsão da sua terra” dos palestinianos. Um dos responsáveis da organização, Sami Abu Zuhri, diz à Reuters que estes planos são “ridículos” e “absurdos” mas “capazes de incendiar a região”. Outro responsável considerou “racistas” os desígnios de Trump que vão no mesmo sentido da posição da extrema-direita israelita.

O movimento rival, que controla parcialmente a Cisjordânia, a Organização de Libertação da Palestina, também se opõe. O seu secretário-geral, Hussein al-Sheikh, vinca que a OLP “afirma a sua rejeição de todos os apelos ao deslocamento do povo palestiniano da sua pátria.” O presidente da Autoridade Palestiniana, Mahmoud Abbas, da mesma cor política, diz que “não vamos permitir qualquer ataque aos direitos do nosso povo pelos quais temos lutado durante décadas e pagámos um preço elevado”, notando que “estes são apelos a uma grave violação do direito internacional”.

A seu favor conta com o Egito, cujo ministro dos Negócios Estrangeiros Badr Abdelatty se manifesta a favor de que seja a Autoridade Palestiniana a controlar a Faixa de Gaza no futuro.

O governo saudita, tradicional aliado norte-americano, também fez saber da sua rejeição. O mesmo fez o governo turco, cujo ministro dos Negócios Estrangeiros, Hakan Fidan, classificou à agência noticiosa turca Anadolu a ideia como “inaceitável”, opondo-se a sequer considerar a proposta.

No mesmo sentido se pronunciou a porta-voz do ministério dos Negócios Estrangeiros da China, que vinca que o país se opõe à “transferência forçada” de palestinianos e que “mantém sempre que o princípio básico de governo de Gaza pós-guerra é que os palestinianos governem os palestinianos”.

Os governos europeus não foram tão rápidos a reagir mas há já posições de Espanha, com o ministro dos Negócios Estrangeiros, Jose Manuel Albares, a manifestar oposição e a dizer que “Gaza é a terra dos palestinianos de Gaza e eles devem ficar em Gaza”, apoiando um futuro Estado palestiniano. Também a França reagiu, dizendo que um deslocamento forçado violaria o direito internacional e violaria os direitos dos palestinianos, desestabilizando a região. No Reino Unido, o responsável pela pasta, David Lammy, veio reiterar a solução de dois Estados e que “devemos ver os palestinianos viver e prosperar nas suas casas em Gaza e na Cisjordânia”.

Internamente, nos EUA os Democratas atacam Trump por causa destas declarações. O senador Chris Murphy diz que Trump perdeu “totalmente” a cabeça, outro representante do partido, Jake Auchincloss, diz que é uma ideia “imprudente e irracional” e denunciou a “ligação nepotista e de auto-interesse” de Trump em negócios na zona. E uma das figuras-chave do Departamento de Estado na anterior gestão Blinken, Andrew Miller, assinala a “proposta política literalmente mais incompreensível que já ouvi de um presidente americano”, sublinhando que uma intervenção dos EUA no território “colocaria desnecessariamente em risco as vidas de soldados americanos e representaria um risco de segurança” para o país.

Mais dura, a congressista de origem palestiniana Rashida Tlaib, escreve no X que “este presidente está a apelar diretamente à limpeza étnica enquanto se senta ao lado de um criminoso de guerra genocida”. Fustigando também que ele corta fundos federais aos trabalhadores americanos ao mesmo tempo que “o financiamento do governo israelita continua a fluir”.

Mais timidamente, algumas vozes republicanas juntam-se ao coro de críticas, como o ex-congressista Justin Amash: “se os Estados Unidos enviarem tropas para retirar à força muçulmanos e cristãos – como os meus primos – de Gaza, então não só ficarão atolados noutra ocupação imprudente, como também serão culpados do crime de limpeza étnica. Nenhum americano de boa consciência deveria aceitar isto.”

Muito claramente, a maioria dos seus correligionários coloca-se sem problemas ao lado de Trump. Por exemplo Brian Jack diz acreditar que a “liderança de Trump vai finalmente conseguir paz no Médio Oriente, assim como Beth Van Duyne que usa exatamente as mesmas palavras “liderança” e “paz duradoura”.”

Por seu turno, Francesca Albanese, relatora especial da ONU para os territórios palestinianos sintetiza que o plano é “ilegal, imoral e completamente irresponsável”. Acusa Trump de sugerir o crime de deslocamento forçado ao mesmo tempo que é um “disparate” que vai tornar “a crise regional ainda pior” depois de Israel ter cometido “atos de genocídio”.

A resposta singular do governo português à ideia de limpeza étnica

Entre os governos que preferem o silêncio sobre esta situação está o português. Nuno Melo, o líder do CDS e Ministro da Defesa, recusou comentar a proposta de limpeza étnica e de colonização de Gaza, considerando tratar-se de uma questão de “política interna norte-americana”.

O governante de direita diz tratar-se de “singularidades da política norte-americana” que vai “animando noticiários” e reiterou fidelidade aos EUA, um “aliado fundamental da NATO”, destacando que “Portugal acabará por cumprir os compromissos com a NATO de maior investimento, que permitam maior capacitação das Forças Armadas nos três ramos".

A deputada e dirigente bloquista Marisa Matias respondeu-lhe no X que enquanto “Trump e Netanyahu prometem apropriar-se de Gaza e expulsar o povo palestiniano” há um ministro português que “reage ao plano de limpeza étnica, dizendo que não comenta a “política interna” dos EUA.”

Para ela, “o silêncio é uma forma cobarde de cumplicidade”. Mas “se o governo se cala, que fale o povo”.

No Parlamento, Marisa Matias anunciou que o Bloco vai chamar Nuno Melo a dar explicações sobre as “declarações muito graves” que proferiu. Para a deputada bloquista, o anúncio de Trump “não são questões de política interna, são questões de uma gravidade extrema” que configuram “um ataque ao direito internacional, desta vez anunciado antes mesmo de acontecer”.