Há dois mitos notórios sobre o cessar-fogo em Gaza que entrou em vigor a 20 de janeiro. O primeiro mito atribui o acordo à pressão de Donald Trump, que tinha manifestado o seu desejo de o conseguir antes de tomar posse, chegando mesmo a ameaçar trazer o “inferno” (como se o que a população de Gaza viveu durante 471 dias não tivesse sido um inferno) se o cessar-fogo não acontecesse na data desejada. É claro que a equipa de Trump exerceu uma pressão real para chegar a uma trégua (que é o nome apropriado do que começou no domingo), mas o mito está em retratar essa pressão como consistindo em torcer o braço de Netanyahu, ao ponto de Trump ter sido apresentado por várias fontes como um herói que iria conseguir uma paz justa para o povo palestiniano.
A verdade é que este mito é um completo disparate! Como se o Presidente dos EUA que prestou o maior serviço a Israel antes de o seu sucessor, Joe Biden, ter completado o seu ato, e que agora regressou à presidência rodeado por um grupo de sionistas cristãos e judeus, alguns dos quais estão quase à direita de Netanyahu; como se este homem, o líder da extrema-direita global e um político mergulhado numa política reacionária sem fundo, se tivesse magicamente, ou talvez divinamente, transformado num anti-sionista e num apoiante do povo palestiniano.
A realidade é que era claro para todos - e para Biden em primeiro lugar, que recriminou publicamente Netanyahu por isso depois de o ter recebido em Washington em julho passado - que a recusa do primeiro-ministro israelita em avançar com o acordo que a administração dos EUA tinha elaborado com a ajuda do Cairo e de Doha desde a primavera passada, era principalmente para privar Biden, bem como Kamala Harris depois de o ter substituído como candidata do Partido Democrata, de uma conquista de que se pudessem orgulhar na corrida presidencial. Ficou também claro que Netanyahu, que visitou Trump na sua mansão da Florida após a sua visita a Washington, prometeu a este último que lhe garantiria uma trégua se ganhasse as eleições. Após o seu encontro com Trump, Netanyahu declarou aos jornalistas que estava “certamente empenhado” em chegar a um acordo, acrescentando: “estamos a trabalhar nisso”.
Na verdade, Netanyahu utilizou o mito da pressão exercida por Trump sobre ele - que o representante deste último no Médio Oriente, Steve Witkoff, um sionista por excelência, fez questão de fundamentar - para convencer os seus aliados da extrema-direita sionista a aceitarem o acordo. Enquanto os meios de comunicação social se calaram, ou quase, sobre a pressão real exercida sobre o Hamas através do Egito e do Qatar, por insistência do representante de Trump, o mito prevaleceu de uma forma que convinha a Netanyahu. Mesmo assim, prometeu a Smotrich e Ben-Gvir que o acordo não passaria da primeira fase. Smotrich aceitou a promessa, enquanto Ben-Gvir se demitiu do governo, dizendo que continuaria a apoiar Netanyahu no Knesset e que regressaria ao governo assim que a guerra em Gaza recomeçasse.
Os comandantes das forças armadas sionistas fizeram lóbi a favor do acordo, em resposta à pressão da opinião pública israelita para libertar os reféns detidos na Faixa de Gaza. O antigo ministro da Defesa, Yoav Gallant, até se demitiu em protesto contra a demora de Netanyahu em aceitar o acordo. Todos eles sabem que este acordo não passa de uma trégua temporária que permitirá a libertação dos reféns civis e que, depois disso, o exército prosseguirá a sua campanha. Evidentemente, o aparecimento ostensivo de homens armados por parte do Hamas, com muito zelo, tentando mostrar que ainda controla os habitantes da Faixa, é o maior incentivo possível para que o exército e a sociedade sionistas continuem a guerra e a ocupação! Quem quer que acredite que as presentes tréguas se transformarão numa cessação definitiva da guerra, acompanhada de uma retirada total do exército sionista da Faixa de Gaza, está a dar-se ao luxo de sonhar acordado.
O segundo mito está de certa forma relacionado com o primeiro, ao descrever a atual trégua como uma grande vitória alcançada pelo Hamas. No sábado passado, o movimento emitiu um comunicado de imprensa em que afirmava: “A Batalha do Dilúvio de Al-Aqsa aproximou-nos do fim da ocupação, da libertação e do regresso, se Deus quiser”. Este é um novo exemplo do pensamento mágico irracional que acompanhou a operação de 7 de outubro de 2023, que constituiu o prelúdio do capítulo mais horrendo e terrível da longa tragédia sofrida pelo povo palestiniano. Esta operação conduziu também ao colapso dos aliados do Hamas no “Eixo da Resistência”: O Hezbollah sofreu um golpe decisivo no Líbano, o regime de Assad entrou em colapso na Síria e o regime iraniano ficou aterrorizado, de modo que apenas os Houthi Ansar Allah do Iémen permaneceram em campo, explorando o lançamento de mísseis no seu conflito sectário com os outros iemenitas e o reino saudita. Os Houthis são melhor representados pelo seu porta-voz militar Yahya Saree, que se tornou um novo símbolo da fanfarronice árabe, depois de Ahmed Said [radialista egípcio do tempo de Gamal Abdel-Nasser] e de Muhammad Saeed al-Sahhaf [porta-voz de Saddam Hussein], e que os ultrapassa mesmo em termos de ridículo.
Perante o formidável genocídio a que foi submetida a população de Gaza (não há dúvida de que o número total de mortos, incluindo os que morreram devido às condições criadas pela invasão, ultrapassa os duzentos mil, para não falar do número de afetados com todo o tipo de lesões físicas e psicológicas permanentes, que é certamente maior); a reocupação da Faixa de Gaza pelo exército sionista, após quase vinte anos da sua retirada, permitindo assim a autoadministração de Gaza; a sua destruição de uma forma que a história não testemunhou em nenhum outro lugar a esta escala desde a Segunda Guerra Mundial; a destruição do seu ambiente e de outros requisitos de vida; a libertação de centenas de detidos nas prisões israelitas, coincidindo com a detenção ou nova detenção de milhares de pessoas; e a escalada da ofensiva fascista do governo sionista e dos colonos na Cisjordânia e a sua anexação progressiva - perante esta enorme catástrofe, afirmar que o que aconteceu é uma vitória do povo da Palestina que o colocou “mais perto do fim da ocupação, da libertação e do regresso” é um disparate, uma manifestação de falta de vergonha e de decência.
É provável que Trump retome o “Acordo do Século” que o seu genro sionista formulou durante o seu primeiro mandato presidencial, e que a própria Autoridade Palestiniana, sediada em Ramallah, rejeitou pela sua grande injustiça para com os direitos dos palestinianos. Uma fórmula semelhante relativa a Gaza está a ser preparada para ser acrescentada ao “acordo” com a ajuda dos Emirados Árabes Unidos, que se preparam para enviar tropas para a Faixa de Gaza para reforçar o papel de Mohammed Dahlan como seu supervisor. [Dahlan é um antigo chefe de um dos serviços de segurança da OLP e o principal organizador da tentativa falhada de supressão do Hamas em Gaza, em 2007, apoiada pela administração americana de George W. Bush. Acabou exilado nos Emirados Árabes Unidos]. Quanto ao objetivo de Trump, é completar a liquidação da causa palestiniana para abrir caminho a uma normalização global entre o Estado sionista e os restantes Estados árabes, em primeiro lugar o reino saudita, e maximizar os seus interesses pessoais e familiares em verdadeiros “negócios do século” no setor imobiliário e financeiro com os países petrolíferos árabes.
Tradução inglesa no blogue do autor a partir da versão não editada do original árabe publicado pelo Al-Quds al-Arabi em 21 de janeiro de 2025. Traduzido por Luís Branco para o Esquerda.net